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Bruno Wendel
Publicado em 31 de julho de 2023 às 05:10
Tiros dos mais diversos calibres, inclusive de fuzil, cortam o céu constantemente, e moradores vivem dias de terror com a escalada da violência em Salvador e região metropolitana. Isso porque de janeiro até o dia 28 deste mês, foram registrados 939 tiroteios, segundo o Instituto Fogo Cruzado. Uma média de 4,5 confrontos por dia entre traficantes e também em ações policiais. Desse total, 711 pessoas morreram.
Ainda de acordo com os dados, 900 pessoas foram baleadas e apenas 189 sobreviveram. Dos 939 confrontos, 341 ocorreram em ações policiais. Já no primeiro semestre deste ano (até junho), o Fogo Cruzado registrou 792 tiroteios com 759 vítimas. Em média, foram 132 tiroteios por mês e aproximadamente quatro por dia entre janeiro e junho de 2023.
“São bairros violentados, e a gente precisa ver que existe uma mobilização de organizações ligadas ao tráfico de drogas e de armas do Sudeste para o Nordeste, a Bahia, em particular, e uma pulverização desse comércio, o que tem ampliado o número de conflitos. Em paralelo, o Estado continua optando pela mesma lógica de incentivo ao confronto, ter uma polícia muito letal e que participa de cerca de 35% dos tiroteios que a gente monitora, além da ocupação de territórios negros e periféricos”, declara o sociólogo Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra, organização da sociedade civil parceira do Fogo Cruzado na Bahia.
O instituto usa tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada, fortalecendo a democracia. Com uma metodologia própria, o laboratório de dados da instituição produz 40 indicadores inéditos sobre violência nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife, Salvador e, futuramente, Belém.
Segundo Ribeiro, para se ter um ambiente seguro, é preciso prevenir a violência. Neste caso, o Estado deve investir na formação dos agentes de segurança pública e, principalmente, nas comunidades e nas pessoas que sofrem essa violência. “ O primeiro ponto é acreditar que se faz segurança pública com ciência. A gente precisa produzir melhores dados. A Bahia está entre os piores do Brasil na produção e transparência de dados. Se se faz boas políticas públicas se a gente sabe onde está incidindo. É preciso entender que as políticas de segurança não precisam ser feitas somente pelas polícias. O Estado precisa entender que as secretárias ligadas à educação, cultura, trabalho e justiça têm um papel a cumprir na segurança pública”, declarou Ribeiro.
Para o coordenador do Ideas (Assessoria Popular), Wagner Moreira, a violência “tem se dinamizado nos últimos anos e compreendê-la é importante para construir novas estratégias na política de segurança mais inteligentes e menos engessadas”. “Não é a primeira vez que ocorre alta da violência letal associada à disputa de facções nacionais em territórios soteropolitanos. A guerra entre facções ‘atrai’ resposta institucional. E passamos a ver no mesmo território a guerra entre o ‘mundo do tráfico’ e em paralelo a guerra entre a polícia e o tráfico. Estas guerras respondem a parte significativa da violência territorial. É imprescindível discutir o fracasso do modelo de ‘guerra às drogas’ e seu impacto nos territórios negros”, pontou.
De acordo com o levantamento, o bairro de Tancredo Neves é o mais violento, até o momento. Foram registrados 33 tiroteios, com 32 baleados, 20 mortos e 12 feridos. Os dados são resultado de uma série de casos de violência registrados no bairro. “A situação aqui está um terror. Ninguém mais vive em paz. A polícia não revolve e é a gente quem sofre, porque não tem pra onde ir. Quando começa [o tiroteio] é só rezar pra bala não invadir e matar um de nós”, disse uma idosa que vive com os netos na localidade de Buracão.
No começo de abril, a região virou palco de uma guerra entre as facções do Comando Vermelho (CV) e do Bonde do Maluco (BDM), que disputam para atuar com o tráfico de drogas na área. De lá para cada, só piorou, com os conflitos ainda mais acirrados e respingando em regiões próximas, como Engomadeira, Narandiba e Sussuarana.
“Tancredo Neves, o antigo Beiru, historicamente sempre apresentou muitos problemas de segurança. Isso não é só na Bahia, é no Brasil inteiro. Por exemplo, localidades onde têm o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) muito baixo, a tendência é prevalecerem os crimes contra a vida e contra a integridade física. Os que têm IDH alto apresentam os crimes contra o patrimônio. Tancredo Neves é um bairro densamente povoado, com mais de 50 mil habitantes, o que é superior a muitas cidades do nosso estado. Então, inteligência e tecnologia são vitais, mas, no primeiro momento, segurança pública se faz com presença física. A polícia precisa reconquistar e se manter esse controle das áreas”, diz o coronel Antônio Jorge, coordenador do curso de Direito do Centro Universitário Estácio Fib da Bahia e especialista em segurança pública.
E a forma mais comum da violência que incide sobre a população está nos casos de cárcere privado, onde moradores são feitos reféns em suas próprias casas por criminosos em fuga. “Eu já estava com dificuldade pra vender e agora que não consigo mesmo, porque ninguém quer se arriscar vir pra cá. Eu não vou esperar eles entrarem aqui e fazer isso comigo e minhas filhas. Pretendo largar tudo e ir morar com meus pais, no interior”, relatou outra moradora do Buracão, que desde o ano passado vem tentando vender a residência.
E o caso mais recente de cárcere privado aconteceu no último dia 18, quando onde um homem invadiu uma residência e ameaçou matar uma idosa e um adolescentes na localidade. O criminoso acabou se entregando.
“Ao longo do último ano, que a gente tem monitorado em Salvador e Região Metropolitana, mudam os bairros que se destacam, isso porque se tem uma distribuição em muitas regiões os casos de tiroteios. Nesse momento, Tancredo Neves está mais visível. A quantidade de confrontos existentes no território, isso faz com que tenhamos mais episódios como estes, que essas pessoas têm suas casas invadidas e se tornam reféns. Muitas vezes eles têm feito isso, na nossa avaliação, porque temos a força se segurança mais letal do Brasil e, muitas vezes, essa opção tem a ver com autoproteção, com a preservação da vida”, explicou Dudu Ribeiro.
Além de Tancredo Neves, outros bairros também foram destaques no levantamento do Fogo Cruzado. A segunda posição ficou com Fazenda Grande do Retiro, com 25 confrontos registrados. Logo após, vem Federação, com 22 casos de disparos de arma de fogo. Lobato e Pernambués empatam em 20 tiroteios. Com o somatório da primeira a quinta posição, foram 120 registros – os demais, 816, estão distribuídos em mais de 200 localidades na capital e RMS.
O CORREIO questionou os números à Secretaria de Segurança Pública (SSP) , à Polícia Civil (PC) e à Polícia Militar (PM), mas não obteve resposta.
Mais uma vez a Bahia está no topo do ranking nacional da violência, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado no último dia 20 com base em dados de 2022. O estado possui o município campeão em assassinatos por grupo de 100 mil habitantes e, das cinco cidades com as maiores taxas de mortes violentas, quatro são baianas. Entre as dez, tem seis. Se o recorte for ampliado para 25, são 12, cerca de metade da lista. O estado é também o líder em números absoluto de homicídios, à frente do Rio e de São Paulo.
Com um total de 6.659 mortes intencionais em 2022, a Bahia é o segundo estado mais violento do país, atrás apenas do Amapá. Conforme o Anuário, são utilizados dados das secretarias estaduais de segurança, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Para compor a taxa de Mortes Violentas Intencionais, são somados os números de vítimas de homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais dentro e fora de serviço.
Ainda de acordo com o Anuário, a Bahia foi também o quinto estado com menor gasto per capita em segurança pública no Brasil. Entre 2019 e 2022, o investimento do estado na pasta caiu 1,6%. Das despesas totais do estado, o índice voltado para a segurança pública equivaleu, em 2022, a 7,4% das despesas, uma variação de -25,4% em relação a 2019.