‘Vá pra porra todo mundo’: a história do adeus mais memorável do cemitério

Conheça o artesão Antônio Teixeira e a despedida mais sincera que poderia ser feita

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  • Thais Borges

Publicado em 4 de fevereiro de 2024 às 16:00

Lápide de Antônio
Lápide de Antônio Crédito: Arisson Marinho

Os filhos do artesão Antônio Alexandre Teixeira tinham uma certeza: a frase que seria posta na lápide do pai precisava ser a cara dele. Tinha que representar bem a figura que ele tinha sido em vida. Mas havia uma ponderação. "Se for a cara dele, tinha que ser algo tipo ‘vai para a porra, seu sacana", argumentou o filho mais velho, o artista plástico Alessandro Teixeira, 47 anos. Os presentes concordaram. Escrever ‘saudade eterna’ ou algo do tipo não faria justiça à personalidade dele. Por mais que a saudade fosse real, esse não seria o Antônio que conheciam e que tinha partido naquele último sábado de janeiro, dia 27, aos 68 anos.

E foi assim que o túmulo de Antônio recebeu o que provavelmente são os dizeres mais memoráveis de todo o cemitério Quinta dos Lázaros, onde foi enterrado no domingo (28). "Vá pra porra todo mundo", diz a inscrição. Assim, simples e direta. O medo das críticas apareceu, claro. O funcionário do cemitério responsável pela escrita na lápide chegou a fazer uma edição. Ponderou com a família porque achou que a frase original - ‘vão pra porra, seus sacanas’ - era muito agressiva. O consenso foi o ‘todo mundo’.

A partida foi inesperada. No sábado, às 8h, tinha conversado com um dos três filhos - o que morava com ele. Estava bem, tinha tomado café da manhã. Às 11h, o filho o encontrou caído. Como Antônio era cardíaco, a suspeita da família é de que tenha sido um infarto.

Ainda assim, havia a dúvida: como os presentes no enterro reagiriam? Na hora da despedida, porém, o medo mostrou-se desnecessário. "Eu tive uma grata surpresa que todo mundo riu. Todo mundo gostou, porque é realmente a cara dele. As pessoas riam e falavam: ‘é a última de Antônio", conta Alessandro.

A despedida gerou até um tipo de insegurança. O pensamento geral era: se Antônio mandasse alguém ‘pra porra’ ou para qualquer outro lugar inóspito, só podia significar que ele gostava da pessoa. Era o traço marcante de sua personalidade. Em um determinado momento, um dos amigos que estava no velório indagou, quase que com sentimento de desamparo. "Será que ele me mandaria pra porra?". Uma tia questionou a mesma coisa. Ele nunca a tinha mandado ‘pra porra’. A conclusão de Alessandro, o filho, talvez não fosse a que os envolvidos gostariam de escutar. "Se ele nunca te mandou pra porra, então ele não gostava de você", brincou.

Fosse prova de amor ou não, os dizeres cumpriram outro papel: deram conforto à família. No que poderia ser o momento mais difícil para aqueles que gostavam de Antônio, se tornou um conforto. "Esse final foi como ele. Fiquei pensando depois que era muito ele essa situação. Ele reclamando e você tentando não rir. Ele fazia umas comparações que você não tinha como manter a situação séria", completa Alessandro.

Antônio era conhecido como 'Antônio dos Orixás'
Antônio era conhecido como 'Antônio dos Orixás' Crédito: Acervo pessoal

Trajetória

Nascido em Encarnação, em Salinas da Margarida, Antônio foi, ainda criança morar no Curuzu, em Salvador. Sempre citava a Rua do Progresso no bairro, que havia sido seu lar pelas primeiras duas décadas de vida, antes de seguir para o bairro de Pernambués.

O ofício de artesão foi aprendido com o cunhado, ainda jovem. Quando chegou à fase adulta, lá pelos 18 anos, decidiu fazer o curso de eletricista industrial no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e ficou na área até o início da década de 1990. As dificuldades em encontrar trabalho, porém, fizeram com que ele decidisse voltar às origens como artesão.

Nessa mesma época, ensinou o trabalho aos filhos, que seguiram na arte como ele. "Ele foi se renovando e viu que começou a ter demandas por orixás. Pensou em produzir uma escultura dos orixás e criou um modelo para seu trabalho. Isso se tornou o carro-chefe, enquanto os paramentos são dos mais requisitados em Salvador", diz Alessandro, referindo-se aos acessórios metálicos que fazem parte da indumentária dos orixás. Virou, dessa forma, o Antônio dos Orixás. Foi assim que, pouco depois, recebeu um título da ialorixá Mãe Stella de Oxóssi, sacerdotisa do Ilê Axé Opô Afonjá até sua morte, em 2018.

Como fazia paramentos para muitos filhos do terreiro, Antônio foi chamado por ela de Alakoro, que é um Ogum ferreiro. Esse também passou a ser o nome do ateliê que comandava em Pernambués. Agora, os filhos devem continuar com o projeto.

Ainda assim, para eles, o que era mais marcante em Antônio era sua personalidade. "Minha prima disse que ele é digno de um personagem de Jorge Amado e é verdade", diz Alessandro. A nora e também artista plástica Monica Vieira, 37, explica que o sogro era alguém que podia ir do riso à ira em poucos minutos. "Ele era muito lúdico, mas muito rude, vamos dizer assim na forma de demonstrar afeto por uma pessoa. Não era muito aquilo de ‘eu te amo", brinca.

Sagitariano, costumava fazer piada com o símbolo do próprio signo - o centauro. Quando estava bem, dizia que estava com a parte humana. Quando estava mal, dizia que era sua ‘parte cavalo’ falando. Gostava de fazer graça, inclusive com músicas infantis. "Ele fazia as paródias com músicas da época que existia o programa da Xuxa. Fazia umas paródia bem picantes e depois perguntava: ‘minhas músicas são tão infantis que eu devia ir na Xuxa, né?", lembra ela, que por vezes era confundida com uma das filhas dele. "Ele tinha um coração enorme e amava intensamente", acrescenta.

Antônio (no meio) ensinou o ofício de artesão aos filhos
Antônio (no meio) ensinou o ofício de artesão aos filhos Crédito: Acervo pessoal

Viúvo por duas vezes, Antônio deixou três filhos e quatro netos. A esperança da família é que a lápide - a memorável - consiga trazer algum riso para outras pessoas que porventura precisem ir ao cemitério. "Quem quiser rir com ele, é só ir lá. Ali vai ser uma sequência da história dele, para todo mundo que chegar para fazer um enterro. É uma boa despedida", completa Alessandro, o filho mais velho.