Uso de linguagem neutra na Ufba gera denúncias e queixas policiais

CORREIO teve acesso a trocas de mensagens entre os integrantes do centro acadêmico; Ufba diz seguir Acordo Ortográfico

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Publicado em 29 de junho de 2024 às 05:00

Fachada da Ufba
Campus da Ufba em Ondina Crédito: Marina Silva

O uso da linguagem neutra — uma forma de adaptar o português para expressões que não incluam distinção entre gênero feminino e masculino — está no centro de uma queixa policial e outras denúncias enviadas à ouvidoria e ao gabinete do vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Uma das integrantes do Centro Acadêmico Unificado da Escola de Belas Artes da Universidade (Caueba), Tatyana Mercês, afirma ser vítima de uma acusação “injusta” de transfobia por colegas de agremiação após se negar a utilizar a linguagem neutra em uma carta-convite para um evento realizado pelo Centro seguindo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Tatyana também é graduada em Letras e ocupava cargo de representação discente no Caueba como co-fundadora e participante do coletivo Canela Unificado (CaUni), organização composta por mais de 20 centros e diretórios acadêmicos, atléticas e ligas vinculadas à Ufba.

Eleita uma das diretoras do evento Canelada, criado para recepcionar os calouros de 2024, Mercês ficou responsável por redigir a carta-convite aos centros e diretórios acadêmicos. A discussão começou após ela enviar o esboço do documento em um grupo fechado do Whatsapp, dedicado a organizar o Canelada, para avaliação do texto.

Segundo ela, um dos integrantes do grupo questionou a ausência da linguagem "inclusiva/neutra". "Onde se escreve usando tod@s, todxs, todes, elu, dentre outras alterações descoordenadas de um padrão normativo", detalhou Tatyana.

A estudante retrucou os colegas. Para ela, por se tratar de um documento formal, a linguagem sugerida não cabia. "Trouxe outros pontos como o fato de ser questionável a inclusão, uma vez que dificulta o entendimento de todos, inclusive de PCDs [pessoas com deficiência] que precisam, por exemplo, de aparelhos eletrônicos para leitura. Também o fato de precisar haver consenso para que mudanças assim no idioma pudessem ser exigidas", afirmou.

A Ufba informou à reportagem que segue "o acordo ortográfico e as normas de redação do governo federal", e não possui normas ou recomendações sobre a linguagem neutra.

O Caueba emitiu nota à reportagem, em que afirma que pediu a Tatyana apenas “neutralidade” na carta, para incluir a diversidade de pessoas, como uso do termo “pessoas” – leia na íntegra mais abaixo nesta reportagem.

Vazamento da conversa

Na versão de Tatyana, o colega que levantou o questionamento, Lírio Medvedovsky, uma pessoa trans que atende pelos pronomes ele/dele e representava o Diretório Acadêmico do curso de Secretariado Executivo (Dasec) no CaUni, negou o debate, saiu do grupo e afirmou que o coletivo havia permitido transfobia.

O Dasec publicou uma nota de repúdio em que anuncia a sua "descontinuação na construção do Movimento Canela Unificado" e endossa a acusação de transfobia. "Após uma infeliz situação de desrespeito e apagamento das políticas de inclusão relacionadas à transgenereidade, o Dasec compreende que há um desgaste no movimento Canela Unificado e uma falta de real compromisso com as/os/es estudantes e suas demandas", afirma o texto. 

O coordenador geral do Caueba, Rafael Moreno, se reuniu com Tatyana. De acordo com a estudante, ele concordou com a acusação de transfobia e exigiu uma retratação. Àquela altura, prints das conversas entre os colegas já tinham sido vazados. "Vazar os prints com meu nome implicou em me acusar de ter sido a pessoa transfóbica na situação", disse Tatyana.

Depois do ocorrido, houve uma reunião, na Faculdade de Direito da Ufba, em que ficou determinado que todos os documentos gerados pelo coletivo deveriam ser redigidos com a linguagem inclusiva/neutra. "Não houve debate, não houve apreciação pública, não houve consulta de especialistas, dados de pesquisa. Nada", critica Tatyana. 

Em março, Tatyana comunicou seu afastamento por tempo indeterminado de todas as funções exercidas por ela, devido ao assédio moral que ela diz ter sofrido ao ser acusada pelo crime de transfobia e por reivindicar o direito de usar a "língua padrão". 

"Estava muito abalada, ainda precisava processar tudo o que estava acontecendo e tomar providências. Isso em absoluto não quis dizer que eu abriria mão do meu espaço como representante estudantil", disse. Tempos depois, ela foi informada que havia sido expulsa e, portanto, não teria mais a possibilidade de voltar a participar e tomar decisões como integrante do CA.

O outro lado

Em resposta, o Caueba publicou um posicionamento onde afirma que, houve uma forte resistência de Tatyana em "adotar a linguagem inclusiva (erroneamente reduzido pela mesma ao uso de tod@s, todxs ou todes), argumentando sobre acessibilidade e norma culta, algo que, apesar do erro, foi compreendido pelos colegas do grupo, mas que em seguida, ao ser sugerido que fosse usada uma linguagem que não flexionasse o gênero de tal forma, e fosse utilizada uma linguagem inclusiva como usar 'pessoas', 'representantes da comunidade' etc (mantendo a neutralidade), DE FORMA INJUSTIFICADA, a colega PERMANECEU INTRANSIGENTE à adoção da linguagem inclusiva, argumentando defender a norma culta e a gramática, sendo que isso não estava mais nem em pauta, visto ser totalmente possível se ter a linguagem inclusiva sem flexionar o gênero".

O texto diz ainda que "o que torna bastante curiosa a insistência de defesa da norma padrão da colega, foram diversos passagens no documento redigido pela Ex-vice coordenadora geral, apontadas por uma colega do CAUEBA, que estavam fora dessa norma padrão, erros esses com os quais ela não se preocupou tanto quanto com negar o uso da linguagem inclusiva".

Segundo o comunicado do Caueba, em uma reunião realizada com a presença de Tatyana para tratar do assunto ela afirmou “que por motivos legais estaria gravando a reunião, o que fez com que, para nos resguardar, também gravássemos a reunião".

Nesse encontro, Tatyana se referiu a um homem trans, que quer ser chamado pelos pronomes masculinos (ele, o, etc), como "a colega", de acordo com essa versão. Ao ser corrigida, continua o comunicado, Tatyana resistiu a adotar o pronome solicitado. 

"Eu tenho 47 anos de vida, fui treinada pra rapidamente identificar quem é homem quem é mulher, inclusive por questão principalmente de segurança”. Ao ser questionada se estava errando o pronome de propósito, Tatyana respondeu que "às vezes sim, às vezes não", segundo a versão do Caueba. 

Em relação à sua expulsão do CA, o Caueba afirma que "DECORRIDAS QUASE 2 SEMANAS, APÓS O AUTO AFASTAMENTO DA Ex-vice coordenadora geral do Centro Acadêmico, com a própria não tendo se retirado do grupo operacional da entidade, foi mandada uma mensagem a comunicando que seria retirada do grupo e que se ela ainda tivesse alguma questão poderia mandar mensagem ou procurar qualquer membro do CAUEBA para conversar sobre".

"Assim, fica ainda mais INACEITÁVEL o abaixo assinado divulgado pela mesma que alega ‘expulsão’ e que ela foi ‘excluída das decisões do Centro’ sendo que em nenhum momento ela foi expulsa, ela se afastou por decisão própria e EM TODAS AS OPORTUNIDADES QUE FORAM DADAS à Ex-vice coordenadora geral, a mesma se ausentou e preferiu apresentar ameaças e intimidações jurídicas à todo o coletivo".

Por fim, o Caueba diz que "todas as pessoas que se sentiram agredidas nesse processo já estão buscando os devidos meios legais e reafirmamos que resistiremos enquanto entidade estudantil e comunidade universitária a todos os ataques que vêm sendo promovidos".

O texto completo com o posicionamento do Caueba pode ser lido nas redes sociais do Centro Acadêmico. 

Posicionamento da universidade

Questionada sobre o caso, a Ufba respondeu, por meio de nota, que "enfrenta igualmente todas as formas de assédio, agressão ou linchamento público, vez que afrontam tanto aos princípios e valores de uma educação emancipadora, eixo central da sua missão quanto ao estado democrático de direito."

"Em cumprimento à legislação vigente e, com base nessa, a universidade mantém estrutura, equipe e regulamentos voltados para a apuração de ocorrências registradas, respeitado o devido processo legal e assegurando o amplo direito de defesa", continuou. Procurado pela reportagem, o Ministério da Educação (MEC) informou que não teria porta-voz para falar sobre o tema.

Não é a primeira vez que a Ufba é envolvida em uma polêmica sobre acusações de transfobia. Em setembro do ano passado, uma aluna acusou uma professora da Faculdade de Comunicação da universidade do crime.

A docente, na época, admitiu que interpretou mal a identidade de gênero da estudante durante um debate em sala de aula. Mas que a estudante, de volta, rebateu com ironia e falsas acusações. As duas apresentaram denúncias à Ufba, mas os processos foram arquivados, informou a instituição. 

Jan Alyne Barbosa está afastada das atividades desde março deste ano. No dia 18 de junho, o afastamento foi renovado por 60 dias pelo Serviço Médico Universitário Rubens Brasil (Smurb). Ela sofre de transtorno do stress pós traumático, segundo o laudo psiquiátrico. 

Como surgiu a 'linguagem neutra'?

O uso do gênero neutro na linguagem não é algo necessariamente novo. O latim e, antes dele, o indo-europeu já faziam uso do gênero neutro da linguagem, segundo Juliana Soledade, professora titular do Instituto de Letras da UFBA

Foi na formação da língua portuguesa, explica a pesquisadora, que essa noção de "neutro" se diluiu entre o masculino e feminino. A partir daí, ficou restrito a raros casos, como o dos pronomes demonstrativos - "aquele", "esse", "aquilo".

"Sob a necessidade de categorizar os seres e as coisas que as comunidades primitivas desenvolveram a noção de gênero", acrescenta Soledade. "Masculino, feminino e neutro são os gêneros básicos que apareceram muito remotamente nas línguas, motivados pela observação de que seres sexuados podiam ser diferenciados em duas", acrescenta.

O gênero neutro, no entanto, não pode ser confundido com o que se denomina "linguagem neutra", colocada em prática a partir do início do século 21. "Trata-se de uma demanda pelo uso de marcas linguísticas como -@; -x ou -e em substituição ao -O e ao –A quando marcas de gênero masculino e feminino. Esse é um movimento com vistas a refletir mudanças socioculturais e isso é bastante natural, mais do que se possa imaginar".

"Uma parcela significativa da sociedade acredita que a categorização de gênero em um sistema binário (macho-fêmea), baseado no fator biológico, já não é funcional dentro do contexto social. A solução que propõem e a que têm recorrido é a inclusão do gênero neutro, a fim de contemplar uma gama significativa de sujeitos que não se vêm associados ao gêneros masculino ou feminino".

Já há países que legislaram sobre a chamada "linguagem neutra". O Canadá é um deles. "Lá, é proibido desrespeitar a identidade de gênero dos cidadãos, inclusive deixar de usar os pronomes neutros caso exigido pela pessoa", diz Soledade..

"Em termos gerais, há quem se ressinta dessa proposta como se fosse uma agressão à língua. Mas mudanças linguísticas são espécies de suplementos vitamínicos que mantém as línguas mais vivazes".

A inclusão do gênero neutro, no entanto, "ainda está longe de se estabelecer", na avaliação da professora da Ufba. 

"São muitos contextos distintos, muita variação de usos, muita instabilidade na aplicação de regras. Qualquer normatização ainda que bem descrita, de nada servirá se os falantes dela não fazem uso. Somente o uso faz a língua".

Confira os prints das conversas

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Carta de apoio

A associação Matria - Mulheres Associadas, Mães e Trabalhadoras do Brasil - publicou uma carta de apoio à estudante Tatyana Mercês. De acordo com a associação, "ao acusar Tatyana de 'transfobia', estas organizações estudantis também sinalizam a quem porventura compartilhe da mesma opinião que qualquer divergência do paradigma de certos grupos intelectuais que dominaram a academia, a partir de conceitos importados de países do norte global, será punida, no mínimo, com ostracismo e destruição de reputação".

O documento defende ainda que a universidade seja um espaço de livre debate de ideias, de forma democrática. "Uma universidade pública tem um compromisso ainda maior com a liberdade de pensamento, único campo fértil para uma produção científica rica e plural".

O texto cita ainda outros casos recentes de "perseguições em universidades federais por 'crime de pensamento'", a exemplo das professoras Mara Telles (UFMG), da professora Ana Paula Penkala (UFPel), e das alunas Ana Luiza Dalcanal (UFSM) e Maria Luiza Zaparolli Silva (USP Ribeirão Preto).

"É inaceitável que as universidades federais sigam compactuando com tais acontecimentos sem tomar atitudes rígidas contra os que fomentam livremente essas fogueiras inquisitoriais em pleno século XXI, destruindo carreiras, aspirações, saúde mental, física e sustento financeiro de diversas mulheres por ousarem discordar".

PL dispõe sobre não obrigatoriedade de utilização da linguagem neutra

O deputado federal baiano Pastor Sargento Isidório apresentou na Câmara um Projeto de Lei que dispõe sobre a não obrigatoriedade de utilização da linguagem neutra por parte dos cidadãos em suas falas e escritas.

Em sua justificativa, o projeto diz que tem como objetivo "assegurar a liberdade de expressão dos cidadãos, permitindo que cada um escolha a forma como deseja se comunicar, sem a imposição do uso da linguagem neutra moderna a ponto de serem constrangidos a deformar a maneira natural e cultural da existência das coisas e raça humana".

O texto diz ainda que ao desobrigar o uso da linguagem neutra, reafirma o compromisso com os princípios democráticos consagrados na Constituição Federal, assegurando que cada pessoa tenha o direito de se expressar de maneira autêntica e livre. No momento, o PL 2363/2024 aguarda despacho do Presidente da Câmara dos Deputados.