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Emilly Oliveira
Publicado em 27 de outubro de 2023 às 08:00
Fadiga, dores no corpo e crises com sequelas irreversíveis são alguns dos sintomas enfrentados por pessoas com anemia falciforme. A doença hereditária é considerada rara, mas registra a maior incidência do país na Bahia e, por enquanto, não tem uma cura acessível. Uma das esperanças mais promissoras atualmente é a terapia gênica, que chega a fase de testes com a previsão de custar US$ 2 milhões por paciente (R$10 milhões na cotação atual).
O procedimento consiste em remover as células-tronco da pessoa com anemia falciforme, modificá-las geneticamente em um laboratório e reinserir as células modificadas geneticamente na circulação sanguínea. O problema é que essas manipulações e edições genéticas exigem equipamentos e insumos modernos que são de alto custo. É por causa deles que o valor do tratamento promete ser exorbitante.
O problema levou o pesquisador baiano, Bruno Solano, aos Estados Unidos, para estudar alternativas de baratear os custos e ampliar o acesso ao tratamento. Neste Dia Nacional de Luta pelos Direitos das Pessoas com Doenças Falciformes, o CORREIO também conta como ele vem trabalhando para isso.
Bruno está revisando essas biotecnologias para encontrar alternativas que reduzam o preço da terapia gênica no tratamento da anemia falciforme. O objetivo é facilitar a inclusão do método no sistema público de saúde. Como alternativa a longo prazo, ele ainda busca maneiras de substituir as etapas de coleta e reinserção das células por um método parecido com a aplicação de uma medicação em dose única, para baratear os custos ainda mais.
O trabalho de Bruno é uma das iniciativas apoiadas pelo projeto Ciência Pioneira do Instituto D’Or. Uma parceria entre o D’Or e o Innovative Genomics Institute (IGI), criado pela ganhadora do Nobel de Química em 2020, Jennifer Doudna, está possibilitando que Bruno faça a pesquisa dele na Califórnia, onde está situada o IGI, que é vinculado à Universidade da Califórnia Berkeley.
Tanto o IGI como a fundadora dela são referências em terapia gênica, já que Jennifer é a criadora do método de edição genética CRISPR, que contribuiu para a descoberta do tratamento.
Esperança de cura
Apesar de ainda ser necessário alguns anos para o tratamento chegar à Bahia, os resultados de pesquisas feitas nos Estados Unidos são promissores. De acordo com Bruno, os dados apontam para uma redução significativa dos sintomas da doença com chances de cura funcional - quando a doença é controlada ao ponto do paciente não apresentar mais sintomas.
“O tratamento deve ser comercializado aqui [nos EUA] dentro de um ano, mas por US$ 2 milhões é inviável e esperamos mudar isso. Não consigo dar um número ainda, mas será uma redução significativa”, almeja ele.
Para o barbeiro Erlanney dos Santos, 46 anos, que tem duas filhas com anemia falciforme, a pesquisa do cientista baiano, mesmo que em fase inicial, já representa a esperança de um futuro melhor para as pessoas com a doença. A escassez de informações fez com que a filha mais velha dele, Emily Ariane, 22 anos, recebesse um diagnóstico tardio. Desde então, ela já sofreu uma embolia pulmonar, crises de pneumonia, perda da vesícula e o encurtamento de uma das pernas
A jovem realizou o teste do pezinho - exame que detecta a anemia falciforme - assim que nasceu, mas a médica informou ter detectado apenas uma anemia comum. O diagnóstico correto só veio quase três anos depois, após a primeira crise. Na mesma época, a ex-esposa dele e mãe de Emily, descobriu que estava grávida da filha mais nova dos dois, Ellen Souza, 20 anos, e que ela também nasceria com a doença.
As crises de Ellen só começaram após a adolescência, mas também trouxeram sequelas irreversíveis, como o encurtamento de um dos braços. “Com tudo que eu já passei com elas, consigo imaginar a dor de outros pais [...] acho viável que os órgãos competentes também possam olhar mais para a doença”, afirma Erlanney.
Rastreio
Dados divulgados pela Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) em março deste ano, apontam que até aquele mês 12,4 mil baianos eram acompanhados em serviços especializados em Doença Falciforme no estado, distribuídos por Salvador e outros sete municípios. O Sistema de Informações Sobre Mortalidade (SIM) ainda aponta que o estado teve 603 óbitos por Doença Falciforme entre 2015 e 2022, sendo 86 apenas no último ano.
Para Jaqueline Itajubá, coordenadora médica do Centro Estadual de Referência às Pessoas com Doença Falciforme - Rilza Valentim e professora do curso de Medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, os números alertam para a importância do rastreio precoce da doença. “A expectativa média de vida desses pacientes é de 50 anos, mas com os tratamentos já disponíveis, conseguimos melhorar a sobrevida deles” alerta ela.
Os pacientes com anemia falciforme sofrem uma mutação nas hemoglobinas, que ficam dentro dos glóbulos vermelhos do sangue e são responsáveis pelo transporte de oxigênio para os tecidos. Com a mutação, os glóbulos assumem o formato de foice, ao invés do formato bicôncavo esperado - daí a origem do nome anemia falciforme.
A hemoglobina anormal faz com que as células grudem nas paredes dos vasos, dificultando a circulação do sangue. Isso provoca crises intensas de dor e complicações relacionadas à obstrução dos vasos sanguíneos, como maior risco de AVC, tromboses, infartos em órgãos como ossos e pulmões e problemas nos rins. Além disso, leva o corpo a destruir as próprias células vermelhas, causando quadros graves de anemia com necessidade de hospitalização
Por ser uma condição genética, é herdada quando a mãe e o pai têm traço falcêmico - condição que não manifesta a doença no indivíduo, mas que unidos podem gerar a mutação no feto. Como o teste do pezinho é obrigatório e gratuito no país há apenas 22 anos, muitos jovens e adultos podem não saber que possuem o traço ou mesmo a doença. Nesses casos, o exame indicado é o de sangue, chamado eletroforese de hemoglobina. Segundo Jaqueline, casais com traço falcêmico têm ¼ de chance de ter filhos com a anemia falcêmica
Falta de alternativas
O único procedimento de cura disponível até o momento no mercado é o transplante de medula óssea, mas a dificuldade de achar um doador compatível e os riscos envolvidos na cirurgia inviabilizam o tratamento para a maior parte da população brasileira, principalmente a baiana. Segundo Jaqueline Itajubá, as chances de compatibilidade não ultrapassam 20%.
Além disso, as duas únicas unidades de saúde que realizam o transplante pelo sistema público na Bahia não têm capacidade para atender a demanda. São o Hospital Universitário Professor Edgard Santos - Hupes e o Hospital São Rafael - Rede D’Or. “Vivemos em um cenário em que um em cada 165 nascidos vivos na Bahia são diagnosticados com anemia falciforme, a maior incidência da doença no país”, afirma Jaqueline.
Isso se deve ao fato da anemia falciforme atingir principalmente a população negra que, segundo dados mais recentes do IBGE, corresponde a 80% dos baianos. Nesse cenário, a terapia gênica é uma novidade considerada promissora, por usar as células-tronco do próprio paciente.
Mas enquanto ela não chega, o Sistema Único de Saúde (SUS) na Bahia oferece tratamento multidisciplinar para bebês e crianças na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e para pessoas de todas as idades no Centro Estadual de Referência às Pessoas com Doença Falciforme - Rilza Valentim.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) para saber o número atualizado de pessoas com anemia falciforme no estado e quantas foram diagnosticadas em cada um dos últimos cinco anos, mas não houve retorno até o fechamento desta matéria.
Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo