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Gil Santos
Publicado em 15 de maio de 2020 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Quando a quilombola Rosemeire dos Santos, 41 anos, chega à porta de casa, no Rio dos Macacos, em Simões Filho, ela recorda dos tempos de menina na comunidade em que nasceu e onde sempre viveu. Os moradores têm uma relação afetiva com o local que, desde 2009, passou a ser objeto de disputa entre o povo e a Marinha do Brasil.
“Foi aqui que eu nasci. Foi aqui que meus pais, meus avôs e bisavôs viveram. Mesmo com toda a dificuldade que temos, sem políticas públicas, como falta de água encanada e rede de esgoto, ainda assim, eu não me vejo morando em outro lugar. Essa é a minha terra”, contou, cobrando mais políticas públicas das autoridades para as 110 famílias da comunidade.
Quando as primeiras casas foram construídas no Quilombo do Rio dos Macacos o país ainda era colônia de Portugal. A área pertencia às fazendas Aratu, Meireles e, principalmente, Macacos, que cultivavam cana de açúcar na região, por isso, muitos dos habitantes originais eram negros escravizados.
Em 2013, o CORREIO esteve na comunidade e conversou com a filha da moradora mais antiga do local. Maurícia Maria de Jesus tinha 113 anos. A filha dela, Maria Madalena Messias dos Santos, contou que os avós trabalharam nas fazendas, que os bisavós foram escravos nas propriedades, e que eles receberam o terreno como indenização dos senhores.
O problema é que o proprietário da Fazenda Macacos, Coriolano Bahia, teve as terras expropriadas pelo estado por conta de dívidas. Quando foi obrigado a ceder a fazenda para o município, foi informada a presença dos moradores, mas as doações não foram consideradas no contrato, o que deixou a comunidade vulnerável.
Mais tarde, o município doou as terras da fazenda Macacos para a Marinha. Por quase 200 anos a comunidade viveu isolada na Região Metropolitana de Salvador, até que na década de 1960 a União deu início às obras para a construção da atual Base Naval de Aratu. Na mesma época, a barragem começou a ser levantada.
Queda de braço
Os conflitos entre os quilombolas e a Marinha se acirraram à medida que as obras avançavam e que a comunidade crescia, até que, em 2009, foram parar no tribunal. Em outubro desse ano, a Marinha protocolou a primeira das quatro ações de desapropriação de terra, alegando que a maioria dos moradores daquela área não eram quilombolas e que haviam mudado para o local na década de 1980.
A Marinha conseguiu uma decisão favorável em novembro do ano seguinte. Os quilombolas pediram o apoio de entidades de classe, e com a ajuda do Ministério Público Federal (MPF) recorreram da decisão. A partir daí o conflito se arrastou por dez anos, em meio a decisões, audiências e protestos.
Em outubro de 2011, a Fundação Cultural Palmares publicou no Diário Oficial da União o reconhecimento e a certificação da terra como área quilombola. A conquista foi vista como uma vitória pela comunidade, mas a briga ainda estava longe de acabar.
Apesar do processo ainda estar em curso, o despejo estava agendado para agosto de 2012, mas a Marinha e a Justiça acabaram assinando um acordo para evitar o despejo dos quilombolas, naquele momento.
Enquanto a queda de braço continuava nos tribunais, o Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra) fez um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação(RTID). O objetivo do estudo era determinar se área era mesmo quilombola como os moradores alegavam. O resultado foi publicado em agosto de 2014, comprovando que os primeiros habitantes chegaram ao local fazia séculos.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em fevereiro de 2018, que a demarcação de terras quilombolas era constitucional. Os ministros mantiveram as regras de autodeterminação, pelo qual a própria comunidade determina quem são e onde estão os quilombolas, além do direito à posse das terras que eram ocupadas no momento da promulgação da Constituição.
A última atualização do caso aconteceu em novembro do ano passado, quando a pedido do MPF e da Defensoria Pública da União (DPU-BA), a Justiça Federal confirmou decisão liminar sobre demarcação e titulação das terras. Na sentença é determinado que o Incra conclua o procedimento de demarcação e titulação das terras no prazo máximo de 540 dias.
Briga por terras tem 70 anosDécada de 50 e 60 - A União desapropria as terras que eram de três fazendas para uso do Comando da Marinha do Brasil. O terreno foi doado à União pela prefeitura. O município recebeu as terras como pagamento de dívidas das fazendas.
Década de 70 - A Marinha constrói barragem que hoje é a fonte de abastecimento para os serviços da Base Naval de Aratu. O documento de doação da prefeitura previa que essa barragem, na época, fizesse o abastecimento de água de bairros vizinhos como contrapartida.
Outubro de 2009 - A Marinha do Brasil entra com a primeira de quatro ações reivindicatórias requerendo a desocupação da área militar.
Novembro de 2010 - Primeira decisão judicial (tutela antecipada) determina a desocupação do local. Comunidade e Marinha fazem negociações. Ministério Público Federal (MPF) recorre da decisão.
Dezembro de 2010 - Governo do Estado e Prefeitura de Simões Filho fazem estudos para reconhecimento do local e levantamento de políticas habitacionais para atender às famílias que estavam recebendo ordem de despejo.
Setembro de 2011 - Comunidade é certificada pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo
Outubro de 2011 - Reconhecimento da Palmares é publicado no Diário Oficial da União.
Novembro de 2011 - Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária (Incra) inicia estudos para elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Agosto de 2012 - Primeiro prazo de execução do despejo, mas acordo entre Justiça e Marinha impede retirada dos quilombolas. No mesmo mês, Incra conclui RTID.
Novembro de 2012 - Fundação Cultural Palmares, Ministério Público Federal e Incra formulam pedidos para ingressar no processo, que tramita na 10ª Vara da Seção Judiciária do Estado da Bahia. Ação foi desmembrada em três por causa do número de réus.
Dezembro de 2012 - Secretaria Geral da Presidência da República formula proposta que inclui a construção das casas.
Outubro de 2013 - O MPF realiza a primeira audiência pública sobre o tema para tentar mediar o conflito entre quilombolas e a Marinha.
Janeiro de 2014 - MPF expede nova recomendação à Marinha, na intenção da remoção dos militares supostamente envolvidos em casos de agressão relatados ao órgão. Maio de 2014 - Defensoria Pública da União na Bahia (DPU/BA) e MPF ajuizaram ação conjunta contra o Incra buscando a publicação do RTID. No mês seguinte, a liminar foi concedida pela Justiça Federal.
Agosto de 2014 - Publicado no Diário Oficial da União, pelo Incra, o RTID, identificando 301,3695 hectares de terra quilombola, e regularizando uma área de 104,8787 hectares para a comunidade.
Fevereiro de 2018 - Supremo Tribunal Federal decide manter o decreto presidencial que regulamentou, em 2013, que a demarcação de terras de comunidades quilombolas é constitucional. No mesmo mês o MPF realiza audiência pública para discutir a situação territorial da comunidade, o acesso à área e às águas do Rio dos Macacos, além de encaminhamentos necessários para a titulação do território quilombola.
Outubro de 2019 - A pedido do MPF e da DPU, a Justiça Federal confirmou decisão liminar sobre demarcação e titulação das terras. Na sentença é determinado que o Incra conclua o procedimento de demarcação e titulação das terras no prazo máximo de 540 dias.