Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Bruno Wendel
Publicado em 13 de janeiro de 2025 às 02:00
Sessões de espancamentos, choques elétricos, uso gratuito de spray de pimenta, além de violência psicológica. Estas são algumas das torturas de presos dentro da Penitenciária Lemos Brito (PLB). Ao menos oito casos chegaram ao conhecimento da Frente Estadual pelo Desencarceramento, o Desencarcera Bahia, ocorridos em 2024. Uma inspeção na unidade em 2023 de um órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos já denunciava o problema. Parentes dos internos apontaram que os torturadores são policiais penais, que agiriam com o consentimento da direção.
“Logo no início do ano, meu marido e outros quatro presos foram reclamar da qualidade da comida, que estava muito ruim. Deram um monte de murros e choques neles com um aparelho que os policiais usam para conter os presos. Ele ficou se batendo no chão da quantidade de descarga que levou”, conta a esposa de um dos internos, que prefere não ser identificada.
O episódio aconteceu no módulo II da unidade, em março. “Depois disso, todos foram transferidos para o Conjunto Penal Masculino de Salvador, também no Complexo Penitenciário da Mata Escura”, completa ela.
A PLB é destinada ao recolhimento de presos condenados ao regime fechado e é administrada pelo policial penal Fabrízio Gama. De acordo com dados da própria Secretaria de Administração Penitenciária e de Ressocialização (Seap), a unidade tem 1.328 presos, num espaço projetado para abrigar 900 internos – um excedente de 428 pessoas.
A segunda ocorrência foi ainda no primeiro semestre de 2024, mas desta vez no módulo I. “Três reivindicaram o semiaberto, que já tinha vencido. Eles chegaram na grade e começaram e pedir para serem ouvidos pela direção. Aí, entraram na cela e espancaram e derem choque em todo mundo”, relata uma das representantes do Desencarcera Bahia.
“Os parentes ficaram sabendo e acionaram a Defensoria Pública, que foi lá e conseguiu a transferência dos internos para as unidades de Simões Filho e Lauro de Freitas, que têm semiaberto”, conta a representante.
Ainda segundo o Desencarcera Bahia, a maioria dos motivos das agressões está ligada à violação dos direitos humanos. “Esses casos acontecem muito nos módulos II e V. Se o interno for reivindicar o direito de estudar, de ampliar vagas para escola e para trabalho, isso é uma afronta ao diretor. Desses oito casos, cinco foram arquivados pelo Ministério Público por falta de provas, porque os parentes só ficaram sabendo das agressões dias depois, quando não havia mais as marcas no corpo. Os presos são ameaçados a não contarem nada”, relata a integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento.
Um relatório de inspeção do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (MNPCT), órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos, divulgado em outubro do ano passado, apontou que o problema já existia em 2023.
“Obtivemos informações de que o GEOP - Grupo Especializado em Operações Penitenciárias da Polícia Penal baiana - deflagra suas ações jogando bombas e spray de pimenta sem que esteja havendo nenhuma espécie de insubordinação na unidade que possa justificar essa prática. Obtivemos relatos de que pessoas privadas de liberdade que passaram mais de 20 dias em isolamento, a título de castigo, inclusive sem saber quando iam sair, situação que configura isolamento por tempo indeterminado, uma violação das Regras de Mandela, que postula um período máximo de isolamento de caráter punitivo por até 15 dias”, diz um dos trechos do documento.
O MNPCT trabalha em parceria com o Emler, órgão da ONU voltado para promoção da justiça racial e da igualdade na aplicação da lei.
Apuração
Diante dessa e de outras situações, o MNPCT recomendou à Corregedora-geral de Segurança Pública e ao Ministério Público Estadual (MP) que “sejam apurados os indícios de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes contra as pessoas privadas de liberdade e visitantes, veiculados por este relatório, promovendo-se a responsabilização de funcionários públicos ou profissionais terceirizados responsáveis”.
O relatório diz também que presos são recrutados para exercer as funções de segurança e vigilância com policiais penais e punem outros presidiários na PLB.
“Que seja investigada a prática de pessoas privadas de liberdade participarem, com a polícia penal em procedimentos de revista e vigilância, promovendo a responsabilização dos profissionais de segurança que permitem a participação de pessoas privadas de liberdade em atividades privativas de funcionário público policial penal; que sejam responsabilizados os profissionais que proferem xingamentos e promovem constrangimentos ilegítimos contra visitantes”, diz a recomendação do MNPCT à Corregedora-geral de Segurança Pública, MPBA e a SEAP, que sugere ainda “que sejam responsabilizados os profissionais que proferem xingamentos e promovem constrangimentos ilegítimos contra visitantes”.
Procurado, o Ministério Público do Estado da Bahia informou que “não há fatos relacionados à Penitenciária Lemos de Britto no relatório de 2023 enviado à instituição pelo Mecanismo Nacional de Combate à Tortura. Além disto, até o momento, o MPBA não recebeu o relatório de 2024”. “Importante ressaltar que, por meio da 4ª Promotoria de Justiça de Execuções Criminais da Capital, o MPBA inspeciona regularmente as unidades prisionais de Salvador e apura, com afinco, todas as denúncias de violações de direitos que lhe são encaminhadas, atuando sempre pela preservação dos direitos humanos e respeito às leis que regem o sistema prisional brasileiro”, diz nota.
Em relação ao refeitório da PLB, o MP disse que ajuizou uma ação em 2022 e “está no aguado da decisão da Justiça”. A reportagem pediu um posicionamento à Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SEAPBA) e à Secretaria de Segurança Pública (SSPBA), mas até o momento não há respostas.
A tortura não está restrita à prática de violência. A privação de alimentos, de água, isolamento prolongado também são formas de se torturar. Em razão disso, o MNPCT sugeriu à Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE) que seja providenciado mutirão na PLB com o objetivo específico de detectar faltas com relação a assistências de saúde, psicossocial e atendimento jurídico, formulando eventuais pedidos à autoridade judicial para efetivação desses direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade.
“É uma triste realidade, que está presente nas unidades prisionais do país. Toda vez que chega uma denúncia, a gente apura. Ouvimos os presos, os parentes deles, movimentos sociais. A Defensoria tenta dialogar com o poder público para que isso não ocorra. Inclusive levamos o problema para debater com a Assembleia Legislativa, para também acompanhar esses casos. Mas alguns internos não conseguem fazer as denúncias porque têm medo de sofrer retaliações”, declara o defensor público Bahia Daniel Soeiro, diretor do Núcleo de Atuação Estratégico da DPEBA.
Em dezembro do ano passado, foi protocolado na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) o projeto de lei que institui o Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (SEPCT) e dispõe sobre o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura na Bahia (CEPCT). O objetivo é implementar no estado, por meio da criação do Comitê e do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT), as diretrizes contidas no Protocolo Facultativo à Convenção contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes da Organização das Nações Unidas.
Procurada, a Seap informou, em nota, que diversos itens apontados no relatório, incluindo a superlotação, não condizem com a realidade atual das estruturas e serviços da administração penal presentes na Penitenciária Lemos Brito (PLB). A pasta disse ainda que as sanções disciplinares obedecem a parâmetros da legalidade contidos no Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia. A Seap ressaltou ainda que realiza investimentos em iniciativas voltadas ao respeito da dignidade da pessoa humana e à integridade dos internos.
Confira a nota da Seap na íntegra:
A Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) esclarece que diversos itens apontados no relatório não condizem com a realidade atual das estruturas e serviços da administração penal presentes na Penitenciária Lemos Brito (PLB). As melhorias operacionais e estruturais da unidade são atestadas regularmente pelo Ministério Público do Estado da Bahia (MP-BA) e pela 1ª e 2ª Varas de Execuções Penais, além de um anexo da Defensoria Pública presente na unidade. Além dos órgãos fiscalizadores, a PLB promove constantemente operações de revista, conforme os relatórios operacionais.
Também não são condizentes os números atuais de ocupação da PLB com a superlotação apontada no relatório, considerando que unidade conta com um excesso de 22% a mais da sua capacidade, não caracterizando superlotação em sua distribuição geral de internos.
As aludidas inconsistências não existem mais desde novembro de 2023, estando a PLB com suas instalações em plenas condições estruturais, tendo sua rede hidráulica, elétrica sido renovadas, deixando as celas em plena higidez. Importa ressaltar que o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura (MNPCT) esteve na PLB no mês de abril de 2023, quando as obras do Módulo II estavam em andamento e as intervenções do Módulo V e Módulo III também não estavam concluídas.
A Seap ainda informa que a PLB conta com uma equipe qualificada de nutricionistas, que fiscalizam a elaboração, confecção do cardápio e distribuição das refeições fornecidas aos internos. Os custodiados recebem quatro refeições por dia, sendo desjejum, almoço, jantar e ceia, nos horários regulares, inexistindo intervalos de 16 horas entre refeições.
A Seap também esclarece que todas as revistas da PLB são realizadas com o uso de equipamentos eletrônicos de detecção. O tratamento dado aos visitantes ocorre dentro da urbanidade e respeito, sob a supervisão e acompanhamento da direção. Os visitantes ainda contam com um anexo da Defensoria Pública.
As sanções disciplinares obedecem aos parâmetros da legalidade, com base no Estatuto Penitenciário do Estado da Bahia, o qual prevê 10 dias para isolamento cautelar na fase inicial da apuração de faltas disciplinares e máximo de 30 dias para cumprimento de falta grave comprovada, como pode atestar os procedimentos disciplinares do nosso Conselho Disciplinar.
Por fim, a Seap ressalta que investe diariamente em iniciativas voltadas ao respeito da dignidade da pessoa humana e a integridade dos internos, a partir de ações de ressocialização, por meio de cursos profissionalizantes, incentivo à leitura, atividades culturais, educação escolar, além de oportunidades de trabalho, para a expansão da possibilidade de melhores perspectivas de reinserção social.