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Nilson Marinho
Publicado em 24 de novembro de 2024 às 22:39
Não se sabe como aquela ave, que costuma medir 45 cm de comprimento, possui uma espécie de “bigode” sob o bico e apresenta hábitos noturnos, foi parar na cidade de Luís Eduardo Magalhães, no oeste baiano. Seu avistamento na natureza, por si só, já é um fato raro, mas ainda mais incomum foi encontrá-la em uma área urbana de um estado que sequer faz fronteira com aqueles em que já foi registrada por observadores: Amazonas e Roraima, ambos na região Norte do país.
Os guácharos, também conhecidos como ave-das-cavernas, pássaro-do-petróleo e pássaro-oleoso, são a única espécie de ave com hábitos noturnos que se alimenta exclusivamente de frutas. Habitam cavernas do norte do Brasil, mas também ocupam cavidades rochosas na Bolívia, ilha de Trinidad, Guiana, Peru, Venezuela, Colômbia e Equador. Assim como os morcegos, utilizam ondas sonoras para se localizar na escuridão. Seu canto peculiar, que lembra homens agonizando, fez com que fosse apelidado de diablotin em Trinidad, derivado do francês para “diabinho”.
No último dia 14 de novembro, a chef de cozinha e observadora de pássaros Débora Francisco, de 36 anos, estava em mais um dia de trabalho e se preparava para uma viagem à Chapada dos Veadeiros, quando recebeu fotos e vídeos de um casal de amigos. As imagens mostravam uma ave de cor canela com pequenas manchas brancas na plumagem, desconhecida tanto para o casal quanto para Débora.
Naquele dia chuvoso e ventoso no oeste baiano, os amigos da chef acreditam que a ave tenha colidido com o vidro da residência, caído na garagem e, em seguida, voado para uma árvore próxima. “Como meus amigos sabem que sou observadora de aves, sempre me avisam quando encontram alguma espécie diferente. Foi o que aconteceu”, explica Débora.
Embora tenha começado a observar pássaros recentemente, Débora conta com a experiência dos pais, também observadores. Sem conseguir identificar a espécie, ela recorreu ao grupo da família no WhatsApp, onde pediu ajuda aos pais e ao irmão, engenheiro ambiental.
“Quando recebi as fotos, não consegui identificar a ave, então enviei para o grupo da família. Meu pai, que já registrou mais de mil espécies, também não soube dizer qual era. Naquele momento, percebi que poderia ser uma ave rara. Ele cogitou inicialmente que fosse um guácharo, mas descartou a possibilidade por ser improvável encontrar um na nossa região”, conta ela.
Débora não perdeu tempo: saiu do trabalho e foi ao encontro da ave. Com uma câmera profissional, conseguiu registrar o guácharo, embora com certa dificuldade devido ao vento forte que soprava em sua direção. A chef notou que, apesar de a ave aparentar estar cansada, também parecia relativamente adaptada à árvore onde havia escolhido repousar.
As fotos tiradas foram editadas e compartilhadas no WikiAves, uma plataforma online colaborativa dedicada ao registro e estudo das aves brasileiras. “Logo percebi que havia poucos registros dessa espécie no Brasil, apenas no Norte, em Boa Vista e Manaus, além de algumas fotos feitas fora do país. Fiquei emocionada com a descoberta”, relata.
Débora viajou para cumprir seu compromisso na Chapada dos Veadeiros, mas pediu a um amigo que continuasse monitorando a ave durante sua ausência. Outros observadores ficaram sabendo da presença do guácharo em Luís Eduardo Magalhães e também registraram imagens dele, incluindo a mãe da chef de cozinha. O pássaro desapareceu da árvore onde foi visto inicialmente, mas logo foi encontrado em outra, próxima.
O ornitólogo Carlos Pereira afirma que Débora teve a sorte de encontrar o guáchara, especialmente em uma região tão distante de seu habitat natural e em uma área urbana. Ele acredita que o pássaro pode ter se afastado do seu bando durante uma possível migração. A chef compartilha dessa ideia, mas vai além: em São Desidério, cidade vizinha a LEM, há diversas cavernas e paredões rochosos.
“Essas aves são sociais e vivem em grupos, formando bandos com outros da mesma espécie. Elas habitam cavernas e, na falta desses refúgios, podem ocupar desfiladeiros ou grutas. É importante investigar a presença dessa espécie na região, para entender se sua aparição é resultado de um desequilíbrio ecológico ou se ela já estava nas proximidades, mas esse fato permanecia desconhecido até agora”, destaca o especialista.
Débora começou a observar aves em 2019, incentivada pelos pais. Desde então, participou de workshops e registrou outras espécies raras, como o macuquinho-baiano, em Itacaré, no sul da Bahia. Ela afirma que essa atividade, mais do que um lazer, é essencial para a ciência e a preservação da biodiversidade. O guáchara em LEM tem sido monitorado por ela desde então.
“Espero que mais pessoas se interessem por esse universo, desenvolvendo um olhar atento para a fauna e ajudando a descobrir novas espécies e populações. Sou grata aos meus amigos pela curiosidade que possibilitou o registro dessa ave rara. A disseminação de informações sobre a observação de aves é fundamental para que mais pessoas contribuam com essa importante atividade científica”, conclui.