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Fernanda Santana
Publicado em 13 de agosto de 2023 às 05:00
No caminho até uma sala do Teatro Castro Alves (TCA), o maestro Carlos Prazeres, 49 anos, parece ansioso para falar. Era a primeira vez que o músico compartilharia detalhes sobre o futuro na Orquestra Sinfônica da Bahia depois de um edital eleger um novo gestor para o grupo. A associação que administra a Osba questionou critérios do certame em recurso. "Tenho muita coisa a dizer", antecipa o músico.
Prazeres conversou com o CORREIO a três dias do CineConcerto, que acontece neste sábado e domingo, na Concha Acústica do TCA. "Querendo acreditar que não seja meu último", diz. A Secretaria de Cultura da Bahia tem até 25 de setembro para responder se a Associação Amigos do Teatro Castro Alves fica ou se assume o Instituto de Desenvolvimento Social pela Música (IDSM), escolhido pelo governo em julho.
A escolha pelo instituto, que já administra o Neojiba, mobilizou o público, a atual administração e músicos da Osba. Para a maioria deles, Ricardo Castro, que rege o Neojiba e é ligado ao IDSM, tem uma visão "eurocêntrica" sobre concerto. Castro tem criticado repetidamente os projetos populares da Osba - entre eles, o Osbrega.
Em dezembro de 2022, o pianista, que regeu a Osba entre 2007 e 2010, foi taxado como "elitista" depois de criticar o concerto criado por Prazeres para apresentar clássicos da música romântica brasileira. Segundo Castro, o concerto "poderia ser tocado melhor por Lairton e seus teclados".
Prazeres conta que preferia não comentar as críticas, que "surgiam sempre depois de um concerto de sucesso", até que achou que estava "na hora de me posicionar". "O pior foi ele ter criado a falácia de que viramos uma orquestra popular. Ele cria essa fake news e se propõe como solução para combatê-la [...] Vou cunhar um termo para o que está acontecendo: coronelismo sinfônico”.
A aproximação da sociedade baiana com a música de concerto era, de fato, o sonho do carioca ao assumir a Osba em 2011. O CineConcerto, em que músicos fantasiados tocam trilhas sonoras de filmes, foi criado com esse propósito dois anos depois. Mas, em 92% do tempo, a Osba toca música clássica, segundo a orquestra.
Os ingressos para o concerto neste fim de semana esgotaram em quatro horas, o que faz duvidar que um dia a Osba bateu recorde de público negativo na Concha. "É uma história bonita de superação", avalia Prazeres, que também é maestro da Orquestra Sinfônica de Campinas.
Por duas horas, ele falou sobre democratização dos concertos, futuro, a luta para ficar na Osba e compartilha que, seja como for o futuro, quer ficar na Bahia: "Estarei aberto a propostas, mas o edital não acabou e não estou achando que vou sair da Osba".
Pode ser um dos seus últimos CineConcerto à frente da Osba. Como você se sente?
Estou querendo acreditar, em virtude do recurso que a gente impetrou, que não seja um dos meus últimos concertos e nem um dos últimos CineConcerto. Importante a gente frisar também que o CineConcerto, para existir do jeito que ele é, precisa desses fatores: a orquestra precisa estar em harmonia, porque os músicos se vestem por conta própria, eles não têm nenhum apoio monetário. E vocês veem que não são fantasias simples.
Existe isso e existe o stand up comedy, uma criação minha para criar uma interação. Então, o CineConcerto não simplesmente um concerto que alguém chega e fala 'vamos ali fazer um CineConcerto, se veste aí'. Se a orquestra estiver em desarmonia, a gente não sabe se esse concerto existiria.
Então pode, de fato, ser um dos últimos CineConcerto do jeito que a gente acredita. Concerto de música de cinema é claro que pode ter, em qualquer gestão. Só é simplesmente o novo maestro colocar um repertório de música de cinema e os músicos vão tocar.
Mas o CineConcerto, do jeito que ele é, só acontece na sinfonia da Bahia. Eu não consigo fazer em outros lugares, por exemplo, é muito complicado.
Foi uma ideia sua o CineConcerto?
Estava aqui há dois anos na Osba, buscando uma integração com a sociedade, buscando conhecer novos espaços.
Um músico das antigas que é Heinz Schwebel, trompetista, disse: 'vale a pena fazer música de cinema porque aqui já fez muito sucesso, o pessoal gosta muito, sobretudo nas férias'. Na época, dois fatores pesaram: era uma moda, que eu sempre questionei, ficar tocando com o filme atrás. É muito questionável. E a gente não podia licitar o telão em janeiro. A administração pública não tinha como licitar.
Aí o Arthur Lauton, violinista, deu uma ideia: 'e se a gente vier fantasiado de personagens de cinema?' Juntei essas duas ideias e fomos fazer esse concerto. Decidi dar o nome de CineConcerto, não queria 'concerto de trilhas sonoras de cinema'.
Fui músico de orquestra, na Osba. E um dos problemas que acho psicológico no meio orquestral sempre foi a falta de protagonismo do músico em detrimento da superexposição do maestro. Não é um problema, mas se os outros não aparecem nada, são uma massa amorfa, eles começam uma relação de disputa de poder.
Pensei nesse protagonismo do músico, que ir falar com cada músico, nessa pegada de ter o músico como protagonista, iria ajudar. Em pouco tempo, esses músicos estavam sendo reconhecidos na padaria, no mercado. Em 2013, fizemos nove cineconcertos, hoje a gente faz uma vez por ano.
O CineConcerto muda a cara da Osba a partir de 2013. Me lembro que muitas vezes eu ia fazer entrevista e em off os jornalistas perguntavam: 'como é que está lidar com esses' – vou utilizar a palavras que usavam - ‘véios aí'? Eu dizia: 'isso não está certo, tem muita gente jovial na orquestra'. A orquestra tem muita gente jovem e os próprios velhos são muito joviais também.
Quando eu falava isso com os jornalistas eu ao mesmo tempo falava para mim: 'a gente precisa mudar a imagem pesada disso aqui'.
Mas por que você acha que Osba tinha essa imagem?
Não sei te responder ao certo porque eu ouvi essa pergunta de pelo menos uns quatro jornalistas. Por outro lado, vamos pensar aqui: a gente tinha o programa Neojiba acabando de ser criado, com quatro anos de idade. O Neojiba encantava a Bahia, o Brasil e depois o mundo.
Não tenho problema de contar essa história: tinha um músico, trompetista, que tinha um apelido. Ele falava assim: eu sou ‘gagajiba’. Dentro de todo esse universo, você começa a perceber que todas as atenções estavam voltadas, na época, para um outro programa [o Neojiba]. O próprio Ricardo Castro recebeu a incumbência de reger a Osba porque ele tinha o Neojiba.
O secretário de cultura da época, o Márcio Meirelles, disse: ‘tome conta da Osba’. A primeira coisa que ele [Castro] disse aos músicos da Osba, no primeiro dia, foi: 'eu não estou aqui por causa de vocês, estou pelo Neojiba'. Isso já deixou o ânimo dos músicos baixo. Só que a Bahia, é a Bahia. A Bahia produz alguns milagres.
O CineConcerto veio para de repente: 'uau' Eu me lembro de o Moacyr Gramacho [diretor do Teatro Castro Alves] chegar falando: 'tem cambista para a Osba!' Quando a gente já tinha batido recorde na Concha Acústica de público negativo. Posteriormente batemos recorde de público positivo no CineConcerto .
Essa é uma história muito bonita de superação de um grupo que ousou. Não sei se em São Paulo, Rio, Minas, isso poderia ter acontecido. Mas na Bahia foi possível.
Lembro de um meme: 'Que droga, a Osba agora é mainstream, não consigo mais ingresso'. Quem entende de branding, de marca, sabe que é claro que isso influencia a frequência dos nossos concertos tradicionais. Porque ainda que você não tenha ido ao CineConcerto, você estava ouvindo falar dessa marca 'Osba' como uma marca que estava trazendo algo novo.
Claro que tem muita gente migrando pela marca, e muita gente migrando pelo CineConcerto, porque ele também tem uma pegada didática. Te ensina sobre os instrumentos, os naipes, fala sobre tudo.
Já era sua intenção, quando você assumiu, agregar esse ‘branding’ com a Osba e o que ela poderia ser?
Na Petrobras Sinfônica, fui assistente oito anos de Isaac Karabitchev, um dos maiores maestros que o país já teve. Como assistente dele, tive a oportunidade de aprender muita coisa, de me colocar na frente de muitos desafios.
Mas eu tinha milhões de coisas no meu caderninho de anotações, pensando assim: 'se um dia eu fosse maestro eu ia fazer esse caminho diferente, eu ia fazer isso aqui, ia pensar nisso daqui'.
E o que aparecia nesse caderninho?
Por exemplo, o protagonismo do músico, conseguir mexer na cara que a orquestra tem numa sociedade, a mistura de artes, tipo englobar o que Wagner chamava de "Obra de arte total", que ele usou obviamente para ópera, que engloba teatro, cenografia, tudo.
Pensa nesse conceito passado para uma realidade baiana: temos a poesia, a dança, teatro. Misturar essas linguagens sempre foi uma vontade minha. E também que a orquestra gerasse uma sensação de pertencimento, que fosse um reflexo da sociedade. É isso que vai diferenciá-la de outras orquestras.
A Filarmônica de Berlim é a melhor orquestra do mundo, mas ela não tem o borogodó baiano. Se passo minha vida tentando copiá-la, não temos o nosso valor daqui, nossa parte do país, que é a Bahia, que é tão vanguardista.
Quando peguei a Osba, fiquei em dúvida se largava [a Petrobras], e o meu professor, Karabitchev, falou: 'vai seguir suas ideias'. Acho que nada acontece por acaso. O sonho que eu tinha era de mudar os paradigmas da música de concerto. A música de concerto precisa que a gente mude os paradigmas. Até Igreja católica se atualiza, uma das instituições mais tradicionais, se atualiza: o padre rezava a missa de costas para o público em latim e agora reza de frente para o público com a língua local.
E você fica de frente também às vezes nos concertos, como se regendo o público?
Pois é [risos]. Na verdade, a gente precisa descobrir os nossos elementos de mudança. Acho que aí, quando a gente fala de popularização da música clássica, alguém pode dizer: então você está dizendo que a gente não tem que fazer, Beethoven, Vila Lobos? Não. Essa foi a fake news que criaram.
A popularização da orquestra quer dizer que a música clássica tem que chegar a todos, principalmente se ela vem de uma orquestra pública.
É injusto você aportar um volume desse de dinheiro, num estado que tem problema de dinheiro, para [atrair] só meia dúzia de gato pingado, meia dúzia branca de uma elite da Graça, do Corredor da Vitória.
Democratizar não é cobrar cinco reais de ingresso só. Democratizar é gerar no público uma sensação de pertencimento, de que ele entende aquela orquestra e vê: 'isso não vai me ferir, eu entendi, eu senti, eu chorei, me emocionei'.
Cada concerto tem que ser pensado como uma experiência sensorial. E não simplesmente entregar um belo repertório e: 'não entendeu? Estude, vá entender, seu burro'.
A Osba fez um levantamento ano passado que mostrou que 92% dos concertos eram de música clássica. Mas todo mundo fala da Osba como muito revolucionária. Você acha que a Osba foi revolucionária de fato ou foi uma ideia criada?
Te falo o porquê de Osba ter sido e estar sendo revolucionária. Eu acredito que desde o nosso concerto da nossa série principal até nossos concertos populares, a Osba tem um diferencial.
Por exemplo: nossa série Jorge Amado, um dos programas mais difíceis e complicados. Comecei em 2011 a conversar com o público sobre esse programa. Quando vamos fazer uma sinfonia de Shostakovitch [o compositor russo Dmitri Shostakovich, 1906 – 1975], por exemplo. A música é amarga, não soa docinha. Só que ele viveu no período de Stalin, estava sob as vistas de uma ditadura, ele muitas vezes se sentiu ameaçado de morte.
É aquela sensação que a gente vai passar para o público. A gente criou, por exemplo, o 'Osba tags', mostramos quatro a cinco trechos explicados para o público. E depois vai querer ouvir aquele momento de novo.
Isso é muito importante e caminha nos passos de uma nova concepção de uma música de concerto, que não pode mais ser entregue sem qualquer acompanhamento. Porque as pessoas não entendem mesmo.
A gente tem que lidar com a sociedade que a gente tem, uma sociedade que teve 380 anos de escravidão, profundamente desigual, que é diferente de Viena, Berlim, onde os garotinhos já recebem um programa da orquestra desde criança.
Aí você vê a filarmônica de Berlim mostrando seu programa educacional para aqueles menininhos todos iguais, bem alimentados. Aí você quer transportar esse programa para cá? É diferente. As coisas são diferentes no Brasil e você tem que agir buscando lidar com essas diferenças, não implantando um modelo que você pensa que é uma cultura superior e não é.
O que você queria fazer com a Osba você conseguiu. As pessoas estão brigando para que você continue. Já houve algum desfecho em relação ao recurso que vocês apresentaram?
Ainda não temos um desfecho concreto. Mas a gente está muito confiante de que possamos obter sucesso nesse recurso. O que a gente coloca como contrapartida ao que foi decidido é bem importante.
O que vocês colocam?
A gente coloca o tempo de serviço. A gente tem o tempo de serviço na orquestra publicizada [ao adotar a estratégia da publicização, em 2016, o governo da Bahia não se desvincula à Osba, mas abre espaço para participação privada]. Então porque esse critério nos desfavorece, uma vez que o serviço posto, a publicização da orquestra, só tem seis anos?
Uma outra coisa que a gente quer falar é sobre o monopólio da música de concerto na Bahia. Você entregar todo esse volume de recurso na mão de uma só OS [organização social] faz com que ela passe a ter o monopólio econômico e de pensamento do gestor relacionado a essa OS, leia-se professor Ricardo Castro. Em que pese o fato de ele estar se colocando fora da discussão, todos sabem que ele é a cabeça pensante.
É a mesma coisa que a Osba lançar hoje um evento e eu, Carlos Prazeres, que tenho meu nome muito relacionado à Osba, dizer: 'não estava sabendo, fui só consultado'. Essa possibilidade, na minha opinião, é inexistente.
Essa ideia veio coincidentemente de uma pessoa [Ricardo Castro] que tinha acabado de comprar uma briga muito feia com a orquestra. Há tempos Ricardo Castro vinha atacando os projetos da orquestra. A cada vez que a Osba virava presença constante na timeline, vinham as críticas dele.
Mesmo os elogios eram em forma de crítica. Quando a Osba tocou com Baiana System, ele escreveu: ‘Parabéns Osba pelo evento de marketing’, seguido de uma bronca por estamos usando a Concha, o que iria confundir os gestores, segundo ele, que não iriam criar uma sala sinfônica. O que é um contrassenso, porque o Neojiba se apresentou várias vezes na Concha.
E questionamos também, no recurso, uma divisão que aparece no projeto da IDSM, que implica que os cargos de coordenação seriam divididos entre Osba e Neojiba. Ou seja, a pessoa não estaria ali pensando exclusivamente na Osba. Temos o perigo de ter uma instituição engolida pela outra. Uma instituição com a cara muito parecida com a outra, 'neojibajizar' a Osba.
Todo carinho ao Neojiba, um projeto maravilhoso, mas a Osba tem sua cara e não é a cara do Neojiba. A Osba tem que ser a Osba. Ela não pode ser o produto do Neojiba. A Osba tem elementos do Neojiba, músicos profissionais. O medo é que a gente passe a ser a via final do Neojibá. Isso tem que ser observado pela sociedade.
A priori, um edital é um processo democrático. Vocês avaliam esse processo como não democrático?
Eu sou um artista e a minha verdade é minha partitura. Mas eu acho que o fato de ter sido um processo democrático não inviabiliza correções no caminho, como por exemplo, um edital que considere o fato de essa orquestra ter sido premiada como a melhor do país, que considere questões que mostram a Osba como uma das principais orquestras do país.
Outro dia, uma maestrina de São Paulo me disse: ‘vocês são um divisor de águas, como a Osba passou a ser mudou nosso paradigma do que a orquestra pode ser’.
Bom, o que vale? Vale só fazer um projeto de excelência? A gente quer excelência, mas queremos excelência acoplada com a sociedade. O que adianta eu só chamar os melhores gringos do mundo, que têm muito mais tradição em música de concerto? Aí você chama alemão e americano para cantar e desestimula os estudantes de canto do nosso país, porque não há algo acoplado à sociedade.
Você quebra [economicamente] as pessoas que trabalham com produção cultural aqui. Uma orquestra precisa estar conectada com a economia da sociedade. Por exemplo, as pessoas que estão iluminando, o fotógrafo, isso gera grana. Aí falam: 'não, eu vou chamar o melhor fotógrafo de orquestra do mundo'. Cara, muito legal, mas você só faz isso? Uma vez tudo bem, mas não tem ninguém aqui para isso?
Cadê esse fio interligado com a sociedade? Aí acaba perdendo essa sensação de pertencimento e o reflexo disso é perder público, porque aquilo não reflete a sociedade, entende?
E já há prazo de resposta?
Isso, realmente, não sei te responder [o contrato da Associação Amigos do Teatro Castro Alves com o Governo da Bahia vai até 25 de setembro].
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, a ATCA não apresentou os documentos necessários no edital. Vocês acham que falharam em algum ponto do edital, que não precisavam se preocupar muito?
Acho que não pode ser vista como incompetente uma associação que tem um índice de aprovação do público de 95%. Não pode ser considerada incompetente uma orquestra que foi considerada a melhor do país.
Nem pode ser considerada incompetente uma orquestra que durante a pandemia foi convidada a participar de um fórum em Abu Dhabi sobre como a Osba migrou sua programação para o digital durante a pandemia. Fomos considerados um case de sucesso.
Enquanto isso, nosso querido professor Ricardo Castro escrevia que não sabia o que se passava na cabeça de governantes para manter em seus quadros músicos em casa, sem produzir nada de relevante. O que é uma covardia com quem é músico numa pandemia, porque ele não sabe se a profissão dele vai continuar.
Imagine você ler uma coisa desse de uma pessoa que com 18 anos foi para Europa com recursos próprios e incentiva que governos mexam com o emprego de músicos que estão em casa, ainda que estivessem sem produzir nada, o que não foi o caso. É uma crueldade isso.
Tentaram transformar essa briga entre Castro e Prazeres?
Estou calado até agora, é a primeira vez que me manifesto sobre isso. Acho uma grande injustiça quando colocam a Osba como uma disputa de ego ou poder entre dois maestros, duas pessoas, porque nunca houve uma disputa.
O que acontece há anos é que todo e qualquer concerto que a Osba faz, e que tenha sucesso, é seguido por um post do professor Ricardo Castro ou desmerecendo o concerto – como quando chamou um concerto de evento de marketing – ou falando mal mesmo. Isso gerou debates no Brasil, quando o maior debate até agora não veio e espero que venha: a ética.
Por que um gestor que ganha verbas do próprio governo da Bahia não para de atacar um outro projeto do estado da Bahia? Aí você vai me falar: ‘ah, talvez ele tenha um desejo de que esse projeto mude de rumo’. Por que não veio me procurar? Porque não me passou um email, propôs um café, porque não veio aqui assistir um ensaio nosso falar que achava que não deveríamos fazer isso.
Em entrevista recente, foi perguntado se ele tinha me colocado aqui dentro. Ricardo de fato teve sua participação. Eu fui uma indicação de músicos que ele acatou.
Mas ele foi cuidadoso em ver que eu não era um picareta, foi me ver reger em Jaraguá do Sul, e acatou a sugestão dos músicos. Em entrevista recente, ele fala: 'como pai da criança'. Não aceito esse rótulo.
E eu refuto de forma veemente esse rótulo porque se ele fosse de fato uma pessoa preocupada em corrigir os rumos dos processos, ele, que já foi gestor aqui, poderia falar. Sempre ouvíamos essas críticas pelo Facebook dele, posteriores aos nossos concertos. Eram críticas que mexiam com o ânimo dos músicos.
A equipe já colocava, como brincadeira, na nossa programação: chegada do caminhão 15h, ensaio 16h, concerto 18h, 19h post do Ricardo Castro, 20h saída do caminhão. Porque a gente sabia que era só fazer sucesso [que teria post]... Essa história que começou bem-humorada tomou contornos trágicos no Osbrega.
Ele utilizou a tragédia dos Yanomamis em um dos posts. Eu nunca o vi como ativista político, mas ele dizia que infelizmente aqueles indígenas ou virariam estatística ou tema de baile concerto. Foi esse o post dele. Isso é de uma falta de ética, que eu não sei como isso não entrou nas esferas de jornal.
Não se fala isso do trabalho alheio, principalmente quando você tem interesse em administrar esse trabalho. O pior de tudo foi ele ter criado sobre a osba a falácia de que viramos uma orquestra popular, quando nós fazemos apenas 8% música popular. Ele cria essa fake news e depois se propõe como solução para combater essa fake news. A gente tem um dos repertórios mais sofisticados do país.
Diretamente, você e ele chegaram a conversar sobre isso?
Não. Já nos primeiros CineConcerto a gente sabia que ele falava que esse não era o caminho, que músico não tinha que se vestir de super-herói. A gente ouvia relatos de músicos que eram reunidos no programa dele no Neojiba, onde ele passava o CineConcerto e dizia: 'estudem para não virar isso aí'.
Esse é um debate importante na sociedade: o que ele está dizendo sobre a Orquestra Sinfônica da Bahia para jovens músicos estudantes da Bahia?
Outra coisa que ele escreve: 'cadê as turnês internacionais da Osba com críticas especializadas?'. Fico pensando nisso. Hoje também sou maestro da Orquestra Sinfônica de Campinas. A realidade em Campinas, cidade do interior de São Paulo, é muito diferente. Todo interior rico de São Paulo tem orquestra. A gente tem no interior da Bahia 417 municípios para servir.
Será mesmo que eu preciso ir de forma recorrente a Paris? Quando a gente vai para Chapada Diamantina, por exemplo, sempre passamos por cidades de beira de estrada, povoados. Aquelas pessoas não têm direito de ouvir uma orquestra?
Elas também pagam imposto. Aí a gente lembra da frase do Gilberto Gil: 'O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe'. Ter possibilidades de tocar nesses lugares é para mim uma preocupação.
Engraçado que na época do Osbrega eu fui acusado até de prevaricação porque fui acusado de que a orquestra estava fazendo o que era do meu gosto.
Mas o meu gosto, pelo meu gosto, estava regendo Mahler, um dos meus compositores favoritos, em Paris, tomando champagne em restaurantes. Não posso colocar no meu currículo: 'já regeu a música Fogo e Paixão, do Wando'. Isso não é uma coisa que me envaidece nesse ponto. O Osbrega me envaidece, mas não nesse lugar.
Carlos Prazeres
Cargo do AutorGerar essa sensação de pertencimento é muito importante. Acho que esse debate ético precisa existir, porque a gente precisa de comunhão e de amor entre as partes para começar essa revolução sinfônica. Sempre cunho esse termo e agora vou cunhar outro para o que está acontecendo: coronelismo sinfônico.
Aí o cara [Ricardo Castro] vai dar entrevista na [Rádio] Educadora e vem dizer que o problema não foi o repertório, mas o nome 'brega'. E ainda vem dar uma bronca dizendo que as pessoas não entendiam português direito. Mas ele teve o ano todo para falar que só ficou chateado com o nome e não falou. Porque ele não falou?
Por que será que esse discurso do nada muda? Porque essa pessoa [Ricardo Castro] está vendo esse nosso projeto como algo revolucionário e ele tem que assinar embaixo. É capaz dele criar um concerto de música brega no futuro com a assinatura dele.
Por isso que nunca me meti nessa seara errada desse debate sobre grande música e música de entretenimento. Um importante professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) veio esses dias com uma que discordo: 'este é um debate entre a música de entretenimento e a grande arte'.
Não, senhor, porque a gente faz entretenimento e grande arte nessa orquestra, com repertório sofisticadíssimo.
Por que você só decidiu falar agora sobre isso que você chama de coronelismo sinfônico?
Sempre gosto de ficar na minha, saber o que está acontecendo. Só que acho que está na hora de me posicionar. Uma mentira quando é muito divulgada vira uma verdade. Eu atuo em São Paulo também e tenho visto em meios do Sudeste a produção popular da Osba sendo discutida em mesas, como se fosse viável ou não, enquanto todas as orquestras do país fazem música popular, e em número maior, inclusive às vezes um popular que não tem conexão com a sociedade.
O que um Nirvana, Metallica, Coldplay, Backstreet Boys, têm de conexão com a sociedade? Nada contra elas mesmo, porque acho muito legal, já fiz um concerto do Beatles com a Osba.
Mas nenhuma linha foi dedicada a essas orquestras, elas não têm participado desse debate. Às vezes, a Osba faz quatro concertos nessa linha. O CineConcerto não é um concerto popular, é de 'capital misto' digamos assim.
Quando você pega a obra de John Williams, que tocamos no CineConcerto, é música clássica, ele rege filarmônica de Berlim, a maior do mundo... Cinema Paradiso [filme] traz música clássica, os compositores [Ennio e Andrea Morricone] são de música clássica.
Como foi para você se ver nesse lugar de ter que combater isso que você chama de fake news?
Foi muito triste. Minha primeira tristeza foram reportagens que nos colocavam em ringues de boxe, quando nunca dei um jab [movimento de boxe], quando já vinha tomando voadora na cara há muitos anos.
Os músicos da Osba toda vez falavam: 'você não vai responder não?'. Eu dizia: 'não vou dar esse palanque'. Porque a partir do momento que você dá o palanque... É a mesma coisa do terraplanista. Ele quer o debate, mas você não tem que dar o espaço, tem que estar na deep web falando de terraplanismo. Não aqui.
Carlos Prazeres
Cargo do AutorMas o que me deixou mais triste foi a fake news de que a Osba tinha se tornado uma orquestra de música popular ou nos moldes de André Rieu. O André Rieu se utiliza do que virou popular da música clássica e leva para uma esfera da sociedade, geralmente rica, em eventos caros. É exatamente o inverso do nosso trabalho de popularizar a música clássica.
A Osba nunca fez isso, não é nossa intenção, nem a essência do nosso trabalho. Ricardo divulgou essa fake news e ela precisa ser desmentida. Nossa orquestra tem um dos repertórios mais sofisticados do Brasil e ponto.
Sobre a Osbrega, disseram: 'por que vão gastar milhões para esse tipo de música?'. O que é isso? Elitismo, o mais puro elitismo.
Salvador é musical e diversa. Você esperava encontrar esse tipo de debate aqui?
Aí é que entra o coronelismo sinfônico. Pelo coronelismo sinfônico, claro que esperava. De onde vem o debate? Vem de um cara que se entende como verdade, que se ele está trazendo uma visão suíça, essa visão é melhor, e não debatam.
Mesmo que no futuro ele precise mudar o discurso dele. Já imagino esse futuro: o mesmo CineConcerto , o mesmo Osbrega, mas agora com o discurso ‘estou fiscalizando se estão fazendo música clássica. Isso pode. Isso não pode’. Essa é a figura do coronel.
Tem algo mais que você queira falar sobre isso?
Acho que a gente precisa entender uma coisa: não há um debate sobre música de entretenimento e grande arte, não há nem debate sobre o termo 'brega'. Há o debate sobre a ética de uma pessoa que não tem escrúpulo em atacar um trabalho alheio, do estado da Bahia, mesmo quando ela se propõe a assumir esse trabalho. Fica parecendo que a pessoa está querendo criar uma fake news para se propor como solução a ela.
Nossa orquestra é para a nossa sociedade, o fazer sinfônico dela precisa ser acoplado a sociedade. Ou simplesmente temos que pensar na excelência e ponto final? Excelência, sala sinfônica e ponto final?
Eu torço para que o Ricardo conheça melhor o lugar onde ele nasceu, porque eu acho que a partir do momento que ele conhecer, e se ver apaixonado como eu sou pela cultura e pela enorme diversidade que encontro aqui, ele vai conseguir desarmar.
Parece que o marketing acaba sendo tratado do ponto negativo. Você trouxe um trabalho mais forte nesse processo. Por que você trouxe o marketing para orquestra?
Quando você pega o concerto desse e reduz a um evento de marketing, você está dizendo que o concerto existiu para que as pessoas falassem da Osba e que não houve nenhum elemento musical de importância.
Isso é que eu refuto, não estou querendo endereçar ao marketing uma visão negativa, o marketing poderia ser pejorativo se a Osba vendesse uma assinatura e agisse como uma operadora que liga para vender pacote na hora da reunião. A visão que a gente sempre teve de marketing foi utilizar o marketing em prol de chegar a todos.
Você deu uma palestra sobre economia criativa ontem. Você teve que começar a estudar isso para começar a aplicar?
Foi sempre uma coisa bem intuitiva. Sempre gostei da Apple. Eu lia os livros do Steve Jobs, e me encantava por algumas coisas que eu traçava paralelos entre a música clássica e a tecnologia. A Apple é simples, não te confunde, não te oferece uma infinidade de celulares, é tudo muito simples.
E eu via essa maneira deles divulgarem, essa maneira limpa e simples como um caminho antes da Osba. Muito antes de chegar na Osba eu via como caminho para pensar a simplicidade do acesso à música clássica. Não a simplicidade da música.
Quando as pessoas vêm ao CineConcerto, elas entendem ali. O nome, por exemplo, é meu. Osbrega também. Se a gente colocasse 'Osba apresenta Músicas românticas populares brasileiras'. Talvez não comunicasse. Mas 'Osbrega' [faz um sinal com as mãos como se mostrasse um letreiro]... Esse concerto muito pensando.
Algumas pessoas tem comentado nas suas redes sociais que se você sair da Osba precisa criar algum projeto. Há algo que você pensa para continuar na Bahia caso saia da Osba?
Algumas críticas desse período, principalmente de sommeliers fantasmas, o termo brilhantemente criado pelo meu amigo Gil Vicente Tavares, soaram em torno de me taxar como playboy carioca.
De fato, já disse em algumas entrevistas, cheguei como playboy carioca. Mas a Bahia me deu régua e compasso, me mudou muito. Mesmo que eu possa parecer um playboy, acho que tenho uma consciência que não tinha quando cheguei aqui, de levar essa orquestra a quem também precisa.
Acho que a Bahia me mudou muito, hoje me considero muito mais baiano que carioca. Estou há 12 anos longe da minha terra e a Bahia realmente me mudou, estou sempre nas festas, na essência da cultura baiana, que me deixa muito apaixonado. É claro que se eu sair da Osba estarei aberto a novas possibilidades na Bahia. Mas o edital não acabou e não estou achando que vou sair da Osba.
Depois que tudo isso passar, como você enxerga sua trajetória como maestro?
Mesmo eu não querendo, e sabendo o quanto isso vai me dar dor de cabeça, as pessoas estão começando a relacionar a mim esse mexer na estrutura sólida e pesada da música de concerto. Então, mesmo eu não querendo, dou entrevistas muitas vezes falando sobre essa ruptura, essas transgressões, e muitas vezes me atacam de forma pejorativa por isso.
Outro dia, no Twitter, estava respondendo um sujeito que começou a atacar a Osba de forma muito vil, de que para tocar na Osba teria que fazer malabarismo na prova.
Mas o que ele estava querendo sugerir com aquilo? Ele dizia que achava que não tinha que ter os outros, uma galera imensa acha que tem que ter, mas você acha não, e eu vou mudar todo um projeto por você não suportar o fato de que tem cinco concertos no ano que são assim. As pessoas estão se relacionando a mim [essa mudança nos concertos] e muitas vezes eu fico pensando se quero, porque é um fardo.
E uma dependência?
E talvez uma dependência. É um fardo e uma dependência. Às vezes você quer fazer um concerto super tradicional. É o que faço 90% das vezes e é muito mais simples do que ser erroneamente estereotipado.
Mas de alguma forma estou assumindo que se eu estou com esse wifi do universo ligado e esse wifi está dizendo que tenho que assumir esse papel agora de promover algumas rupturas e quebrar alguns paradigmas que impedem que a música clássica seja democratizada, levada a todos, que eu seja essa pessoa.
O CORREIO mantém o espaço aberto para o pronunciamento do maestro Ricardo Castro.