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Priscila Natividade
Publicado em 1 de outubro de 2023 às 16:00
Muitos conhecem ele como rapper. Outros, como cineasta, ator, escritor e ativista. Ou tudo isso junto. Mas o cantor MV Bill é também empreendedor. “Acho que meu primeiro contato com o empreendedorismo, mesmo sem saber, foi lá no início da minha carreira. Na época, comecei a pegar algumas fitas cassete e a vender nos bailes blacks. Quando vi que eu conseguia vender rapidamente 10 fitas, ao invés de ficar com o dinheiro, eu fui comprar mais. Gravei mais e voltei para os bailes. Assim eu comecei a fazer o meu primeiro dinheiro de fato com o rap e com a venda de conteúdo de música”. >
É esse mesmo Bill que gerencia hoje sua própria carreira. Se tornou seu ceo, sócio proprietário de tudo que faz, desde a produção até mesmo a negociação com marcas. “A arte e a música têm muito isso. Gravadoras, grandes corporações que ficam por trás ditando quais são os rumos artísticos e têm pessoas não ficam felizes com o caminho que as coisas estão tomando. Então, empreender é ter autonomia e liberdade”, afirma. >
Embaixador da favela, em visita recente a Salvador quando participou da Expo Favela Innovation Bahia, no final do mês de setembro, o rapper defendeu que a periferia valorize a economia que movimenta e o consumo local de tudo que é capaz de produzir. “Além da questão da sobrevivência é também, a questão da distribuição da renda. É fazer o dinheiro circular entre nós. A gente precisa aprender a fazer isso, a comprar com os nossos. De nada adianta se tiver todo esse movimento de empreendedorismo dentro da favela se a própria favela não consumir ela mesma”. Leia mais na entrevista. >
Rapper, cantor, escritor, ator e cineasta. Quem é Bill empreendedor? >
O Bill empreendedor é o artista que aprendeu a tomar as rédeas de sua própria carreira. Aprendi a criar minha própria empresa, ser gestor dos meus passos, estar à frente de tudo que eu lanço. Ser dono do meu próprio trabalho. Hoje sou 100% dono das coisas que faço. Estou começando a investir também na parte de criação de eventos para entretenimento. Então, eu passei a ser um artista multifacetado, mas que investe na própria carreira e é gestor dela também. No caso das artes, empreender não é somente pensar no dinheiro, no resultado, mas também no que vai ser entregue. Tive que empreender na minha qualificação, na melhoria da forma com que eu me apresento para eu poder estar em outros lugares também. Ou seja, a entrega é também se qualificar, estudar sobre o que eu vou apresentar ou sobre o que eu quero fazer. >
Como empreender te deu autonomia?>
Empreender me deu total autonomia. Eu sou dono das minhas próprias coisas e não preciso de um tutor, um ceo ou uma pessoa acima de mim para me dizer o quê ou quando eu devo fazer as coisas. Às vezes, empreender é uma necessidade para não ser escravizado na mão de outra pessoa. Empreender no próprio trabalho traz a liberdade que o trabalho formal não tem. Mas também tem gente que empreende e não tem bons resultados por inúmeros fatores. Porém, é um caminho que é muito libertador. >
MV Bill
rapperE o que mais chama a sua atenção nos negócios que nascem, crescem e se consolidam na favela? >
Eu vejo muita dignidade em todas as pessoas que são da favela que tentam empreender de alguma forma, buscar o crescimento, trazer alguma coisa para dentro da favela de novidade que ainda não tem. Eu gosto muito do geral, mas também quando eu vejo, especificamente, o empreendedorismo na área de gastronomia. No Rio de Janeiro, por exemplo, lá na Cidade de Deus, já tem coisa que só tinha na Barra da Tijuca. Acho que hoje em dia tem na própria favela muita coisa sendo feita com a mesma qualidade. Eu fiz muito isso durante a pandemia. Tentava gastar meu dinheiro só no comércio local, fomentando a economia da área e comecei a incentivar as pessoas a fazerem isso também. É importante que as pessoas da própria comunidade olhem para o comércio que tem dentro dela. >
Que experiências inovadoras da periferia que você vê, que conseguiram chegar até o asfalto e se tornar exemplos de sucesso? Onde estão as oportunidades?>
Existem restaurantes na Rocinha, no Morro da Babilônia, que já fazem o trajeto contrário de pessoas do asfalto que sobem até esses lugares para almoçar, jantar, beber um chopp por conta da vista do local. Vejo também muita coisa de moda que desceu o morro e ganhou o asfalto, coisas de cabelo, de trancistas que trabalhavam dentro do gueto e que hoje montaram salões no asfalto nos bairros mais movimentados. Tem uma série de iniciativas aí acontecendo que tem sido bem aceitas no asfalto. Isso é muito importante para o crescimento financeiro das pessoas que estão empreendendo. Não só pelo sucesso delas, mas também porque se transformam em espelho para outros que estão dentro da favela e continuam em dúvida se empreender ou não é um bom caminho. >
MV Bill
rapperPor outro lado, qual o equívoco que ainda se associa o empreendedorismo, sobretudo, para quem busca montar um negócio como uma forma de sobrevivência?>
Tem uma lacuna muito grande para quem quer empreender em várias áreas, mas a gente tem também pessoas de favelas que empreendem de forma compulsória. Mesmo com formação acadêmica, não consegue se inserir no mercado de trabalho – seja por conta da aparência, do local que mora, da origem – e acaba tendo que usar aquilo que aprendeu na faculdade no empreendedorismo. É bom lembrar que muitas pessoas vão para o empreendedorismo porque não encontram espaço nas empresas. O ideal é que esses profissionais também possam ser contratados para trabalhar em grandes empresas, até porque não dá para todo mundo na favela ser empreendedor. E, às vezes, as pessoas confundem quem estar tentando sobreviver com quem está empreendendo. Existe uma diferença aí. >
Qual o recado desta mesma favela que produz, trabalha e movimenta a economia? >
Quando a favela produz, trabalha e entende que está interferindo na economia, ela logo exige que seja tratada da mesma maneira que o asfalto é. Exige os mesmos direitos, uma polícia que respeite o cidadão, entenda que nem todo mundo que está na favela é bandido, a diferença de quem é bandido e quem é trabalhador. A gente exige isso. Ser participativo economicamente e ter essa consciência faz total diferença no nosso comportamento, seja no tratamento via políticas públicas, seja na parte de representação política. Você tem que começar a ser exigente para mudar o quadro. >
Falta investimento, sobra força de trabalho e determinação. Que desafios esse empreendedor enfrenta? >
Empreender na favela é bem diferente para quem está no asfalto e vai começar o seu negócio num shopping center. Por ser da favela já tem as dificuldades naturais. Se o seu negócio for lá dentro, tem um adicional nisso. Ao mesmo tempo, em que tem um mercado que precisa ser atendido, existe uma dificuldade de fornecedor entregar. Às vezes, a dificuldade da polícia de entender que o estabelecimento está todo legalizado antes de mandar fechar tudo e sair batendo e dando porrada em todo mundo. Todos querem chegar no mesmo lugar, porém, o ponto de partida é outro. Quando o negócio é criado pela sobrevivência para não passar fome, eu penso muito que o que menos tem nesse tipo de iniciativa é o ‘aventurismo’. É literalmente, a última cartada, a luta, a busca e a briga pela sobrevivência. Tem que entender de rede social para divulgar seu negócio, ter uma pessoa de fotografia para apresentar bem visualmente a cara do que está vendendo. São muitas coisas que precisam ser feitas e ainda assim, seguindo tudo certinho, existe a possibilidade de não dar certo. Por isso que eu acho que é muito importante incentivar o consumo local, fortalecer os empreendedores, mostrar o quanto eles são necessários e fazer com que a população entenda que precisa comprar na mão dessas pessoas. >
O que é necessário para empreender gastando pouco, desempregado e na crise? >
Eu não sou um especialista em empreendedorismo, mas sou um entusiasta. Acredito que com pouca grana, na crise, vai precisar de muita força de vontade, perseverança, sorte. Por isso que eu incentivo o empreendedorismo, mas tento não iludir a pessoa de que qualquer coisa que ela fizer vai dar certo. Tem que acreditar muito, fazer uma pesquisa para saber quantos tipos desse negócio que você quer, tem no seu local. Não é só ‘comecei e já era’. Mas eu já vi também pessoas que iniciam com bem pouco, do zero, do nada, até de coisas improváveis que dificilmente daria para ter algum crescimento como vendendo bala ou vendendo água e depois disso, conseguem deslanchar ou se desdobrar em outra coisa. Um exemplo é o meu amigo Rick Chester. Ele vendia água na praia e por ter uma boa lábia, saber desenrolar, conversar bem, falar o ‘favelês’ e o português, ele desenvolveu uma técnica de mostrar para as pessoas que é possível sim. Empreenda em você mesmo, invista no seu próprio tempo que o seu nada pode virar tudo. >
MV Bill
rapperQue visão o empreendedor precisa ter? >
Muitas vezes, o diferencial está na apresentação, no atendimento, na qualidade daquilo que se oferece.Comunicação, uma boa entrega, uma simpatia na hora de receber. Aqui na Cidade de Deus tem um restaurante que ocasionalmente eu vou lá almoçar. A comida é boa, o ambiente é legal, mas para mim, o diferencial é o atendimento. E tem pessoas que esquecem disso. E esquecer disso é enterrar o próprio negócio. >
Muito se fala hoje também sobre a economia criativa. Como ela se faz presente na favela? >
Eu vi um projeto de tecnologia no Morro do Santo Amaro aqui, no Rio de Janeiro. Tem outra favela que está fazendo um projeto com videogame. Tem jovens não se ligam com outras coisas, mas gostam do vídeo game. Esse projeto tem transformado esses jovens em atletas que participam de grandes competições e ganham dinheiro com isso. Tem também a outra parte que está aprendendo a desenvolver o game. Eu acho que essas iniciativas – sem desmerecer as outras – são muito importantes porque elas trazem a novidade para dentro da favela, coisas que nem sempre estão no nosso imaginário ou nem nas possibilidades daquilo que a gente pode ter. Mostra que a periferia pode qualquer coisa, desde que se qualifique. Tem um elemento que está muito presente no empreendedorismo de favela que é a força de vontade, sobretudo, a criatividade. Quem está na sua zona de conforto não consegue ser tão criativo quanto aquele ou aquela que está muita situação de vulnerabilidade, muitas vezes até alimentar. A criatividade é a marca do nosso povo em geral, mas, sobretudo, para ser empreendedor de favela e preto tem que ser criativo.>
MV Bill
rapperO que ainda é gargalo para esse empreendedor e como superá-lo? Onde é necessário avançar e o que ainda falta para dar mais visibilidade para essas iniciativas? >
Tem muita gente que pensa em abrir o negócio, mas não tem ainda o capital inicial, uma carta de crédito, uma credibilidade no banco para fazer um empréstimo. Lógico, que depois do negócio montado existem grandes desafios, mas esse primeiro passo é crucial para começar as coisas e muitas vezes as pessoas não conseguem nem dar esse primeiro passo. Acho que assim como a favela está buscando empreender mais, as empresas de incentivo ao empreendedorismo precisam adentrar nesses lugares e incentivar quem quer empreender. Dando crédito, oportunidade, o primeiro suporte para o negócio funcionar, prosperar. Do contrário, a favela vai continuar resistindo. Mas se tiver esse suporte, o caminho se torna menos doloroso e tortuoso. >
Que políticas públicas podem ajudar a quem quer empreender?>
Estamos falando de pessoas empreendendo, trabalhando e fazendo com que o local seja visto de uma maneira mais positiva. É lupa, foco e luz nas coisas positivas que estão sendo feitas nesses lugares, que a parte negativa a gente já conhece, que é a que sai no jornal todos os dias. É preciso criar políticas públicas que ajudem o pequeno, o micro, o médio empreendedor, sobretudo, os da favela em esfera estadual, municipal e federal. Elas precisam acontecer. Tem muitas pessoas que não tem mais condições e oportunidades para poder voltar a estudar, estar se formando por conta da idade, infância e juventude que tiveram. Precisam de uma oportunidade e muitas delas estão buscando isso no empreendedorismo. Ter políticas públicas que fomentem a prática e que ajude, dê algum tipo de suporte para quem está querendo começar agora. >
MV Bill
rapperO que a favela ainda pode mostrar? >
Eu vejo em muitos empreendedores e empreendedoras de periferia muita força de vontade. Parece que existe uma consciência de que eu não vou ser aceito em determinados lugares porque não depende da minha força, do meu conhecimento, do meu querer. São simplesmente as pessoas que não nos querem lá e a gente tem que buscar outra forma de sobreviver aqui e isso faz com que esse ou essa empreendedora seja sangue no olho, faca no dente. Com todas as garras que eu puder, máximo de força, minha potência máxima para o meu negócio dar certo. Diferente de quem é aventureiro, o pai ou a mãe deu: ‘ó, toma aqui. Vai brincar de ser dono de algum negócio, se der certo deu e se não der, não estou nem aí. Você vai fazer outra coisa e a família vai dar esse suporte’. Isso não existe para as pessoas da favela. Não tem essa segunda chance. É trabalhar com a primeira, a primeira tem que dar certo. Tem dois caminhos: ou dar certo ou dar certo. >
MV Bill é rapper, escritor, ator, cineasta e ativista brasileiro. Junto com a carreira de rapper, Bill publicou em 2005, com Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares, o livro Cabeça de Porco. O documentário Falcão – Meninos do Tráfico, se tornou nacionalmente conhecido após exibição no programa Fantástico, da Rede Globo. O documentário também foi tema de dois livros best sellers. Em 2022 lançou seu primeiro livro solo, chamado A vida me ensinou a caminhar. Tem 12 álbuns, o mais recente é o disco Voando Baixo. Como ativista, o rapper é um dos criadores da CUFA - Central Única das Favelas, onde deixou o seu legado e permaneceu até 2015. >