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Da Redação
Publicado em 21 de maio de 2024 às 09:36
Ricardina Pereira da Silva, conhecida carinhosamente como Dona Cadu, morreu aos 104 anos, na madrugada desta terça-feira (21). Ela era a a mestra ceramista mais antiga de Coqueiros, distrito de Maragogipe, Bahia, dedicando mais de 90 anos ao ofício.
A Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) decretou luto oficial de três dias pela morte da mestra. Em 2020, Dona Cadu foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela UFRB, e em 2021 pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
No Memorial Valorativo, Dona Cadu é identificada como “Tesouro Humano Vivo” nos termos propostos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), enquanto uma das mais significativas personalidades difusoras da tradição oral, poética e performática de tradições do Recôncavo. A sua trajetória é definida por um reconhecimento de singularidade por suas atividades de ceramista, de sambadeira e de rezadeira, sendo uma grande referência da cultura do Recôncavo da Bahia de ancestralidade africana e indígena.
Além dos títulos, ela também foi homenageada com um selo com seu nome, feito pelo Centro de Culturas Populares e Identitárias CCPI/Secult/Bahia, e o Memorial Dona Cadu, localizado em Coqueiros, povoado de Maragogipe. Dona Cadu participou de vários filmes, documentários, recebeu diversas menções honrosas de escolas, eventos e grupos culturais. É tema de livro, teses, inspiração para ceramistas e artesãos.
"A reitora Georgina Gonçalves declara luto oficial de três dias na UFRB. Ao expressarmos nossas condolências, manifestamos nosso apoio e solidariedade aos amigos, familiares e a toda comunidade acadêmica", diz a nota divulgada pela UFRB.
Relembre o perfil de Dona Cadu, em reportagem publicada pelo CORREIO em 2021, quando ela recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Ufba:
Dona Cadu participou de vários filmes, documentários, recebeu diversas menções honrosas de escolas, eventos e grupos culturais. É tema de livro, teses, inspiração para ceramistas e artesãos.Além de fazer as panelas, Dona Cadu também é cozinheira de mão cheia. Seu carro-chefe é a moqueca. Pode ser de peixe, camarão ou de marisco, mas uma coisa não pode faltar: a pimenta. A combinação do talento de cozinheira com o talento de ceramista para fazer uma boa panela de barro é de dar água na boca.
O pai trabalhava na roça e também numa pedreira; a mãe era dona de casa e cuidava dos 10 filhos. Nascida no município de São Félix, Cadu mudou-se ainda jovem para Coqueiros e conquistou o Brasil todo com a sua arte. O trabalho é de excelência e ela sabe muito bem disso; não disfarça.
Descobriu o universo da cerâmica aos 10 anos, observando uma vizinha esculpir; até que um dia resolveu experimentar. A moça passou a lhe ensinar, mas Dona Cadu conta que, em poucos dias, já fazia panelas melhores que a vizinha. Foi do barro que ela tirou o dinheiro para ajudar em casa e, depois, criar seus 10 filhos, dois da barriga (Balbino e Lúcia) e oito adotados. Também contou com a ajuda do marido, que era pescador e já faleceu. Hoje, tem também três netas e dois bisnetos.
A ceramista logo atraiu a atenção de professores de universidades, que passaram a visitá-la em sua humilde oficina de cerâmica, que fica em frente à sua casa, ambas nas margens do Rio Paraguaçu. Fala com orgulho sobre seu trabalho e ensina suas técnicas a quem quiser saber. Sempre recebeu alunos, professores e jornalistas, deixando que a fotografassem, filmassem, fizessem perguntas e tomassem nota. Ela adora dar entrevistas, ver seu rosto estampado em reportagens e sente prazer em poder compartilhar seu trabalho e sua história de vida. Suas artes eram vendidas nas feiras, para as quais transportava as panelas na cabeça mesmo. Sua lábia e seu encanto eram ferramentas valiosas. “Eu chegava assim: ‘Freguesa, não quer comprar essa panela para fazer uma moqueca ou um feijão delicioso, não’?”, conta, rindo. Hoje, trabalha por encomenda e vende para restaurantes de comidas típicas de Salvador e outras localidades.
Com a fama, atrai turistas curiosos que vêm de todos os cantos do Brasil, principalmente do Sul e Sudeste, que também fazem questão de levar uma peça na mala. A casa e a oficina se tornaram pontos turísticos de Coqueiros. Basta passar na porta que ela estará lá. Dona Cadu recebe a todos com simpatia e generosidade e vai logo presenteando quem chega com sua marca registrada: a risada cativante que marca seu bom-humor.
Tradição
O samba está no sangue. Seu pai e sua mãe eram amantes das rodas de samba e ela seguiu a tradição. Basta ouvir um pandeiro e um cavaquinho de longe que Dona Cadu larga tudo para exibir seu talento e alegria na roda. Começou frequentando rodas de samba em ocasiões especiais, como caruru de São Cosme e Damião e novena de Santo Antônio, mas hoje é líder do grupo Filhos de Dona Cadu, que tem seu filho como vocalista e sua filha como sambadeira. Até Curitiba e São Paulo já tiveram o prazer de ver a centenária sambar.
“Samba é cultura, alegria e fonte de renda para o nosso povo”, diz Dona Cadu. E como se não bastasse ser sambadeira, ela fez questão de inovar e provar, mais uma vez, que é única: criou seu próprio estilo de samba. É o samba de pulinhos, como ela chama. No meio da roda, ao som dos batuques, Cadu se solta e esbanja satisfação ao pisar o chão e dar pulinhos, levando a mão ao solo. A inspiração veio das cerimônias do candomblé, que ela frequentava junto com o marido, apesar de ser católica. “Eu achei curioso e resolvi misturar com o que eu gosto”.
O samba vai seguir como tradição na família, mas ainda não é possível dizer o mesmo da cerâmica e da reza, que ela aprendeu com o pai. Dona Cadu conta que trabalhar com o barro não faz os olhos dos filhos e netos brilharem como os dela e, por isso, faz questão de compartilhar seu conhecimento a quem se interessar. Utiliza seu espírito de liderança para ensinar as outras mulheres da região. O objetivo é, assim como no samba, não deixar a cerâmica morrer, não deixar a cerâmica acabar. “Isso aqui é ouro! E o trabalho com o barro é para todos, homens e mulheres, não tem que ter vergonha de nada!”, diz ela.
A pandemia acertou em cheio a rotina de Dona Cadu. As muitas visitas que recebia se transformaram em acenos da varanda de casa atrás de uma máscara que esconde o sorriso. As idas à oficina ficaram escassas e, em uma das ocasiões, um paralelepípedo fora do lugar levou a ceramista ao chão. A fratura no fêmur impôs limitações e fez Dona Cadu, sempre tão independente, ficar sob os cuidados da neta, Luana, com quem mora.
Agora, não vê a hora de poder voltar a sambar e fazer panelas. Não para de falar nisso e chega a se emocionar. “Eu rezo todos os dias para isso tudo acabar e eu voltar para a minha rotina. Eu faço por amor, não é só por dinheiro. Meu trabalho é a minha vida”, diz ela. Mas, apesar da fase difícil, Dona Cadu não abandona aquilo que diz ser o segredo para chegar aos 101 anos: a alegria de viver. Entre uma pergunta e uma resposta, ela não perde a oportunidade de fazer graça e dar aquela gargalhada gostosa. “Eu nunca deixei a tristeza fazer morada em mim”.