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Thais Borges
Publicado em 21 de outubro de 2023 às 07:23
Era um dos dias de ir à unidade básica de saúde. Como parte do curso de Medicina, na disciplina de Semiologia, a rotina da estudante Adriana Raiol, 24 anos, inclui idas a hospitais, mas, naquele dia, a aula era no postinho. São os dias em que ela mais se sente feliz, pelo contato mais próximo com a futura profissão. Até que, em um momento, foi chamada para acompanhar uma consulta. Quando encontrou a pessoa paciente, porém, percebeu que era um indivíduo trans não-binário - alguém que não se identifica com identidades de gênero estritamente masculinas ou femininas, ou seja, binárias.
Foi a primeira vez em que ela, uma mulher trans, atendia outra pessoa trans. Adriana perguntou o nome e os pronomes e a resposta foi pelos pronomes neutros: elu/delu. Em poucos instantes de conversa, a postura defensiva da pessoa foi sumindo. Paciente perguntou sobre a história de Adriana e como ela tinha se tornado aluna de Medicina na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Ao fim da anamnese, mas ainda antes da chegada da médica para a consulta de rotina, Adriana ouviu algo que a marcou profundamente: “que bom que você está aqui”.
Na sequência, a pessoa trans não-binária explicou que, até a chegada de Adriana, tinha certeza de que tudo seria “péssimo” no atendimento. Ao final, porém, tinha sentido acolhimento. “Eu fiquei muito feliz por elu não ter saído dali e nunca mais voltado, porque é isso que acontece”, diz a estudante, atualmente no 2º período do curso.
Esse episódio só aconteceu porque, aos poucos, nos últimos anos, universidades públicas baianas têm mudado a composição das turmas que ingressam na graduação. Desde 2017, além das já conhecidas cotas sociais e raciais, as instituições de ensino superior do estado foram as primeiras a ofertar vagas para alguns grupos, a exemplo de pessoas trans.
O relato de Adriana ajuda a entender uma das consequências dessa política afirmativa para pessoas trans em universidades públicas: no caso da Medicina, aos poucos, o atendimento à população trans na rede pública pode se tornar mais receptivo.
“Acho que essa política contribuirá muito para o melhor acolhimento nas unidades de saúde”, diz a médica ginecologista Ana Gabriela Travassos, professora do curso de Medicina da Uneb, que começou a ofertar as chamadas ‘sobrevagas’ (como a instituição classifica) para alguns grupos vulneráveis, em 2018. A expectativa da professora é que, como aumentou a frequência de médicas e médicos negros após as cotas raciais, o mesmo se aplique aos profissionais da área que são pessoas trans, gradualmente. “É uma marca de inclusão muito forte”.
Desde 2017, quando a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) criou a primeira política de cotas para pessoas trans na graduação, ao menos outras cinco instituições de ensino superior brasileiras seguiram o mesmo caminho. “Foi o resultado de uma mobilização dos estudantes com apoio de alguns professores e pesquisadores”, diz o pró-reitor de ações afirmativas da UFSB, Sandro Ferreira.
Dessas universidades, ao menos quatro ficam na Bahia, que se tornou referência na área em todo o Brasil - além da UFSB e da Uneb, há vagas na Universidade Federal da Bahia e na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). “O pessoal do Sudeste, do Sul, se acha tão maravilhoso e lá não tem (cotas para trans)”, diz a estudante mineira Thaiz Andrade, 41, que está no quarto ano de Medicina na Ufba.
Ela ficou conhecida, em 2019, por ter sido a primeira pessoa a entrar na faculdade de Medicina mais antiga do país por essa reserva. “Hoje em dia você pega uma criança de 5, 6 anos e coloca nas melhores escolas, com os melhores professores. Aí você pega uma pessoa igual a mim, que trabalhava o dia todo, fazia cursinho online, que não se compara a um Bernoulli da vida. Se não tivesse essa reparação social, a gente não ia conseguir”, pontua.
Reflexo
Ao contrário das cotas por critérios de renda e raça, a política para pessoas trans é por vagas supranumerárias: ou seja, uma vaga é disponibilizada anualmente para grupos específicos da população, além do número originalmente destinado a cada curso. Por ano, em geral, as instituições oferecem uma vaga também para grupos como quilombolas, indígenas aldeados, povos ciganos, autistas e refugiados, dependendo de cada universidade.
Para a pró-reitora de Ações Afirmativas da Ufba, Cássia Maciel, a reserva de vagas é uma estratégia fundamental para a sociedade. “É comum a gente ouvir algum tipo de colocação do tipo: ‘ah, mas a pessoa precisa de cotas para entrar?’. E a resposta é não. A universidade é que precisa que seu corpo discente, docente e sua produção reflitam a realidade social”, enfatiza.
Na Ufba, as cotas na pós-graduação vieram antes da graduação, ainda em 2017. Apesar da abertura da instituição para as pautas das pessoas trans, ainda há dificuldades. Uma das principais é que há tentativas de fraudar essas cotas - ou seja, de pessoas cis, que são aquelas que se identificam com o gênero que receberam ao nascer, ocuparem essas vagas indevidamente. Ao menos três casos referentes ao curso de Medicina foram denunciados e estão sendo investigados pela universidade.
Ainda assim, há avanços, na avaliação do líder representante do coletivo Transufba, Joan Ravi, como bolsa de permanência no valor de R$ 700. “A maioria vem de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. Eles saem de suas casas para estudar aqui na Ufba”.
Na UFSB, o ingresso é diferente. Na instituição, há cursos de primeiro ciclo - que são interdisciplinares, e os cursos de segundo ciclo, que são posteriores, partindo do pressuposto de que os estudantes cursaram a graduação do primeiro anteriormente. Medicina é uma das opções do segundo ciclo. No entanto, segundo o pró-reitor Sandro Ferreira, as cotas para pessoas trans estão tanto no primeiro ciclo quanto no segundo. Atualmente, a universidade oferece um auxílio de permanência para alunos e alunas trans no valor de R$ 400.
Não quer dizer, porém, que tudo seja perfeito ou que não exista a reprodução de práticas transfóbicas em certas instâncias da universidade. Ao todo, porém, a inserção desses estudantes é pequena. Dos cerca de 40 que entraram na UFSB desde o primeiro ano da reserva, apenas 15 continuam - a maioria em Medicina. “Os resultados de sucesso, você vai encontrar na Medicina. Em outros lugares, o abandono é a regra. Política de ingresso é potente, mas se não tiver política de permanência, não garante nada”, acrescenta.
A leitura é parecida com a que a professora Ana Gabriela Travassos, da Uneb, faz. Na avaliação dela, é preciso ir além da política pública de inclusão em sala. Ela defende também um suporte pedagógico, inclusive para estudantes que tiverem dificuldade em componentes curriculares que exigem uma base muito consolidada do Ensino Médio.
“O curso de Medicina gera muita angústia. É muito conteudista, tem um tempo de estudo gigantesco. Acaba que a percepção que a gente tem é quanto à frustração de que você entra e não consegue ficar. É papel da universidade dar esse suporte pedagógico”.
Caminho
Decidir cursar Medicina, para estudantes trans, em geral, não é um processo simples. Na maioria dos relatos à reportagem, as trajetórias são de pessoas que viveram violências e invisibilização em ambientes hospitalares e médicos. De alguma forma, porém, essas vivências também acabam por inspirar esse caminho.
Atualmente no terceiro semestre de Medicina na Uneb, Ana Victoria dos Reis, 25 anos, não consegue esquecer de uma situação que viveu no começo de seu processo de transição de gênero, iniciado aos 16. Na época, alterar o nome era um processo mais complicado.
Um dia, sentindo dores estomacais, precisou ir à emergência de um hospital. Na recepção, explicou a situação: disse que havia um nome no registro, mas que não era como ela se identificava. A atendente prontamente aceitou. O problema é que o hospital tinha um interfone e estava muito cheio.
Enquanto Ana Victoria esperava, de repente, ouviu o nome morto sendo chamado pelos alto-falantes. “Eu não conseguia levantar da cadeira, porque gerou um burburinho, todo mundo perguntando ‘quem é esse?’. Minha amiga pegou minha mão e me levou para o consultório. O médico foi muito transfóbico”, lembra. Depois daquele dia, ela passou três anos sem fazer consulta médica. Desenvolveu pavor de hospital. “Só voltei a um hospital depois da minha transição de nome e de gênero”.
Experiências como a dela não são incomuns, entre as pessoas trans. O que costuma acontecer, segundo o psicólogo clínico Diogo Sousa, cuja pesquisa no mestrado em Saúde Comunitária no Instituto de Saúde Coletiva da Ufba focou neste tema, é que ainda há um imaginário social predominante de que os cuidados à saúde de pessoas trans são restritos a modificações corporais.
“Tal ideia restringe o acesso integral de pessoas trans e questões de saúde que não falem necessariamente sobre esse aspecto, que é muito importante, mas, certamente, não é a única questão de saúde do segmento”, diz.
Para o psicólogo, é preciso falar de representatividade, acolhimento, escuta qualificada e novas estratégias de cuidado em um campo constituído por uma lógica cisnormativa. “Não se trata de uma ocupação estéril desse lugar, mas da possibilidade de construir discursos e manejos que permitam reposicionar o cuidado desse grupo”, completa.
Ana Victoria: "E se eu fosse a referência para outras meninas como eu?"
Atualmente no terceiro semestre do curso de Medicina da Uneb, a estudante Ana Victoria dos Reis, 25, lembra bem de quando cogitou, pela primeira vez, seguir a carreira médica. “Eu nunca fui atendida por uma médica preta, quem dirá uma médica trans. Comecei a pensar: e se eu fosse essa referência para outras meninas com eu?”.
Na infância em Serra Grande, distrito de Valença, Ana Victoria não via muitas oportunidades. Aos 13 anos, porém, ela decidiu que ia sair da cidade para estudar. Foi quando ingressou no Instituto Federal Baiano (IF Baiano), no campus de Santa Inês, onde cursou o ensino médio. Na época do vestibular, aos 16 anos, começava a entender seu processo de transição. Voltou ao IF Baiano e começou Biologia.
“Era 2020 quando comecei a pensar em fazer Medicina, mas venho de família humilde. Consegui um trabalho em um call center em Salvador e fiquei dois anos para juntar dinheiro para quando fosse aprovada conseguir me manter”, lembra.
A aprovação veio no ano passado e, desde então, ela criou um perfil no Instagram e no TikTok (@transnamed) para mostrar a rotina de uma mulher trans preta no curso de Medicina. No futuro, pensa em fazer algum trabalho para a população trans, ainda que sua especialização não esteja 100% decidida - no momento, ela pensa em anestesiologia. “Para eu passar no vestibular, eu tive que me preparar o triplo (dos outros): dava aula de Biologia de manhã, trabalhava no call center de tarde e só à noite conseguia estudar”.
Maria Luiza: "Preciso estar muito bem embasada em referencial teórico, porque as pessoas vão questionar'
No próximo dia 8 de dezembro, a estudante Maria Luiza Cardoso, 30, vai colar grau em Medicina. O que já seria a realização de um sonho para muita gente, no caso dela, ainda virá com um marco: Maria Luiza vai ser a primeira médica trans formada pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), no campus de Teixeira de Freitas.
Quando Maria Luiza entrou na instituição, ainda não havia cotas para para pessoas trans. Ela nem mesmo havia iniciado a transição de gênero, algo que só aconteceu há dois anos e que coincidiu com o internato, que é o estágio obrigatório da graduação.
“Medicina sempre foi meu sonho, mas é um curso muito difícil de acessar. Optei por Engenharia, na Federal do Vale do Jequitinhonha. Depois de um tempo, soube da existência da UFSB, que tinha um modelo parecido, com os ciclos. Abandonei tudo em 2015 para começar minha saga aqui na Bahia”, conta ela, que é mineira.
Maria Luiza pode dizer que viveu a universidade com duas experiências diferentes - como um corpo cis e como um corpo trans. A maior diferença foi no tratamento. É como se o discurso dela tivesse perdido a validade e como se precisasse mostrar mais o conhecimento para justificar por que está naquele lugar.
"Antes, não acontecia, até porque a voz do corpo masculino não é questionada, nem mesmo se tivesse falando qualquer asneira. Agora, além de não poder falar asneiras, precisa estar muito bem embasada em referencial teórico, porque as pessoas vão questionar", diz ela, que pretende fazer residência na área de cirurgia.
Adriana: "O sonho da Medicina veio com meu processo de transição"
Quando a estudante Adriana Raiol, 24, chegou à Uneb para cursar Medicina, no ano passado, seu nome civil ainda não retificado estava em todos os documentos, apesar de uma resolução da própria universidade, de 2014, que garantia o uso do nome social. “Estava até na chamada. Fiquei duas semanas tentando resolver isso”, lembra.
Natural de Brasília, Adriana nunca tinha pisado em Salvador. Da mesma forma, o desejo de ser médica não havia crescido com ela, que chegou a fazer três semestres de Direito na Universidade de Brasília. “O sonho da Medicina veio quando iniciei meu processo de transição, em 2019”. O psicólogo que a acompanha já tinha outro paciente estudando na Bahia, que se tornou uma vitrine no país para políticas afirmativas.
Na Uneb, o curso de Medicina segue a metodologia PBL (Ensino Baseado em Problemas, na sigla em inglês), o que significa que as aulas são focadas em tutorias, casos e problemas. “A Uneb é diferente. É uma universidade que realmente tenta essa inclusão e está disposta a entender”.
No dia a dia, Adriana acredita que, mesmo ainda sendo estudante, a Medicina já abre portas. Há, inclusive, aspectos que a incomodam. Por vezes, é como se tentassem fazer dela uma pessoa cis. “Parece que, por fazer Medicina, sou melhor do que uma pessoa trans que está trabalhando como profissional do sexo. Para essas pessoas, eu sou um pouquinho melhor. ‘Ah, ela é quase igual a mim, então vou apertar a mão dela, vou respeitar”.
Thaiz: 'Um porteiro perguntou o que eu estava fazendo na faculdade. Eu disse: se acostuma, porque vou ficar seis anos aqui'
A mãe da estudante Thaiz de Andrade Pedrosa, 41, sempre disse que, para que ela fosse alguém na vida, precisava estudar. Na adolescência, contudo, ela também precisava comer e sobreviver. Por isso, trabalhou em um supermercado como empacotadora e, aos 17 anos, prestou concurso para a prefeitura de sua cidade natal, Divinópolis (MG), para agente de saúde.
Assim, foi aprovada e trabalhou naquele cargo por 20 anos. Boa parte desse tempo, ela apenas sentia que era diferente. Thaiz sabia muito pouco sobre pessoas trans até o dia em que uma mulher trans chegou ao local onde ela trabalhava pedindo para aplicar uma injeção. “A gente começou a conversar e eu vi que eu era igual a ela”.
À medida que os anos foram passando, ela cogitou fazer Enfermagem. Mas, em 2013, decidiu que tentaria Medicina. Tendo terminado o Ensino Médio em 2000, se matriculou em um cursinho online. “Em 2014, minha nota (no Enem) foi 500. Falei: vou continuar. Eu trabalhava de 7h às 17h, então estudava até 22h, 23h da noite por conta própria. Em 2018, por seis pontos, não passei na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais)”.
Quando soube da política na Uneb, nas reuniões do movimento LGBTQIA+ em Minas, decidiu tentar no ano seguinte. Mas, em 2018, a Ufba aprovou as vagas supranumerárias e foi assim que, em 2019, Thaiz se tornou a primeira estudante trans na Faculdade de Medicina. No primeiro dia que pisou na universidade, perguntou a um porteiro onde era a Faculdade de Medicina. “Ele perguntou o que eu estava fazendo ali, porque nunca tinha visto ninguém como eu. Eu disse: ‘Acostuma, porque eu vou ficar seis anos aqui’. Naquele momento, eu vi que as coisas não eram como eu imaginava”.
Thaiz e outros estudantes trans fundaram o coletivo Transufba, justamente para lutar por melhorias na política afirmativa e nas políticas de permanência. A adaptação foi difícil, especialmente nos primeiros meses. “Ainda não decidi a residência. No início, eu pensava em endocrinologia, mas a pessoa trans também é uma pessoa. Ela pode quebrar o dedinho do pé e ter um AVC. A faculdade me ensinou que você tem que olhar a pessoa por completo”.
Jô: 'A universidade hoje é um lugar seguro para mim'
A primeira graduação de Jô Magalhães foi a Enfermagem. Depois, veio a oportunidade de fazer o Bacharelado Interdisciplinar em Saúde na UFSB. Dar sequência para a Medicina, portanto, foi um caminho quase natural. A diferença é que o percurso de Jô tem a particularidade de ser o de uma pessoa trans não-binária que, até 2017, vivia uma espécie de identidade de gênero oculta.
“Eu nunca me entendi como uma pessoa cis, mas fui descobrir a questão da identidade dentro da própria universidade. Eu não me via como uma mulher, nem como um homem e foi um processo de autoaceitação até entender o que é a não-binariedade. Demorou, porque é difícil”, conta.
Jô, que entrou pela política afirmativa para pessoas trans, chegou a ter a matrícula cancelada em 2020, com a acusação de não atender aos requisitos da cota. No entanto, dois anos mais tarde, depois de novo processo seletivo, reingressou na universidade. “A universidade hoje é um lugar seguro para mim, que tem projetos inclusivos, mas o modelo da universidade é muito exigente”, analisa Jô que, entre as aulas, trabalha dando assistência a um sistema de lojas.
Para Jô, muitas pessoas trans não-binárias não se sentem confortáveis em buscar atendimento, mesmo em outras áreas da saúde. “Imagina a quantidade de pessoas que não têm a possibilidade de transicionar, por ene motivos. Quando ela vê um profissional de saúde que resolveu transicionar ou admitir a não-binariedade, isso tem um papel que vai desde você se reconhecer até se sentir acolhido”, opina.