Mal cabe na tela: faculdades chegam a ter mais de 200 alunos em aulas remotas

Demissão de professores é apontada por estudantes como causa

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 12 de março de 2021 às 05:15

- Atualizado há 2 anos

. Crédito: Arte: Shutterstock

Tem aula online por aí, que pra visualizar um colega, o aluno precisa até de lupa, tamanha a quantidade de pessoas juntas. Mas essa modalidade vem gerando consequências: a quantidade de turmas está sendo reduzida e salas de aulas remotas agora têm mais que o dobro de alunos que tinham no modelo presencial. Algumas chegam até mesmo a mais de 200 alunos.  Estudantes e professores dizem que isso vem acompanhado da demissão de profissionais e defendem que a superlotação compromete a qualidade do ensino e atrasa a conquista do diploma. 

Segundo o Ministério da Educação (MEC), desde 2008, a participação do EaD nas matrículas totais mais que dobrou. Em 2020, a pandemia da covid-19 levou à suspensão das aulas presenciais de faculdades e acelerou o fenômeno já conhecido de ensino à distância. 

Uma aluna do curso de Direito da Unime, que preferiu não se identificar, diz que muitos professores foram demitidos da instituição desde o início da pandemia e que já chegou a pegar disciplinas com até 150 alunos. “Tem algumas matérias que estão muito cheias, que não têm só a minha turma alí”, conta. Ela diz ainda que as matérias da modalidade EaD são as que têm mais quantidade de alunos, mas que as disciplinas presenciais, que agora estão remotas, também enfrentam o mesmo problema.“Isso não aconteceria se fosse no presencial. O fato de terem muitos alunos em uma sala só dificulta o aprendizado, o professor não consegue dar atenção a todos. Quando muita gente tem dúvida, um pergunta por cima do outro ou não dá para todo mundo falar”, opina a estudante.Larissa Gomes, de 25 anos, cursa Arquitetura e Urbanismo na Unifacs. Ela diz que, por conta da demissão em massa de professores, há menos turmas ofertadas e as que foram disponibilizadas estão superlotadas ao ponto de quem está matriculado no turno da noite receber disciplinas ministradas no período diurno. “Turmas que costumavam ter 40 alunos nas aulas presenciais, agora estão com até 120, sobrecarregando professores e comprometendo a qualidade do ensino”, conta ela.  Print de tela de aula do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unifacs Menos é mais

A nova dinâmica gera uma disputa por vagas, e há até mesmo quem fique de fora, sem conseguir se matricular em disciplinas. E o que fazer, então? Trancar o curso e esperar pelo fim da pandemia e retorno das aulas presenciais parece um plano sem previsão. Além disso, quem faz estágio precisa estar matriculado e, nas particulares, quem trancar perde a bolsa de estudo. 

Mas, mesmo assim, é isso que muitos alunos estão fazendo. Ou trancam, ou abandonam de vez. A queda do número de matrículas é uma realidade e, segundo os professores, se acentua a cada semestre. Segundo a Associação Baiana de Mantenedoras do Ensino Superior (Abames), as faculdades privadas de Salvador estão matriculando menos pessoas em 2021. A queda no número de alunos é de cerca de 25% em comparação com o início do ano de 2020. 

Larissa trancou a matrícula na Unifacs no ano passado, abrindo mão do desconto na mensalidade, e decidiu aguardar até a volta das aulas presenciais, mas, como isso ainda não aconteceu, resolveu retornar neste semestre para não se atrasar ainda mais. Não adiantou: ela tentou se matricular na disciplina Projeto de Arquitetura, mas não conseguiu vaga. “Neste semestre, eu quis pegar a matéria que eu tinha trancado antes por causa da pandemia, só que, quando eu tentei colocar na minha grade, estava dizendo que não tinha vaga suficiente e nem fila de espera. Eu venho tentando me incluir na turma desde o dia 28 de janeiro, quando estava disponível o período de mudança de grade”, explica.Ela e outras pessoas que não conseguiram vaga, seguem tentando e assistindo às aulas para não perder conteúdo, sem saber se vão ou não conseguir ser aceitos. “Grupos já foram formados, tem entrega de trabalho para o dia 17. No meu grupo, dos cinco componentes, apenas um está, de fato, matriculado”, relata. 

A estudante se sente frustrada e alega estar pagando por um serviço que não está recebendo. “Eu estou pagando o valor cheio para não fazer as aulas que eu realmente preciso fazer. É como se a gente tivesse que implorar e se humilhar para poder estudar. Parece que a Unifacs não faz nem questão de dar uma solução, de ouvir o aluno. Ficamos sem saber o que fazer”, conclui ela.

O professor Carlos Ribeiro, de 55 anos, está em processo de desligamento de uma faculdade particular de Salvador e preferiu não divulgar o nome da instituição. Ele diz que começou tendo redução da carga horária e, no final de 2020, a sua turma foi extinta e ele foi demitido. “Juntaram turmas de turnos diferentes e, como a faculdade faz parte de uma rede nacional, também colocaram um só professor para dar aula para vários alunos do país”, diz ele.

Mas Ribeiro acredita que a pandemia apenas agravou um problema antigo. “O ensino superior privado já vinha com problemas. Pela diminuição do crédito educativo, pela situação financeira dos alunos e pelo grande número de faculdades sendo abertas por aí. A pandemia veio para intensificar esse cenário. Aí você não tem aluno, não forma turma e acaba tendo que juntar, demitindo professores”, conta. Ele diz que as demissões vêm desde o semestre anterior e que, no final do ano passado, ao menos cinco docentes foram demitidos junto com ele. 

O professor ainda demonstra preocupação em relação ao futuro do ensino, se questionando se as aulas vão voltar ao que eram antes. “Já estamos há um ano com o ensino remoto, já foi criado um sistema. Eu não sei se vamos voltar à normalidade porque esse movimento de aumento de cursos EaD já vinha forte; a partir de agora, deve crescer ainda mais”, completa. 

No Centro Universitário UniRuy, o problema também acontece. No perfil da instituição no Instagram, mais de 200 comentários contendo reclamações. Em um deles, uma estudante do curso de Nutrição confirma o padrão já não tão novo de ‘alunos demais para professores de menos’. “Estrutura precária, atolam as salas com alunos. No semestre que estudei aí, não tive aula prática de duas matérias porque a turma tinha tanto aluno que não cabia no laboratório”, diz o relato. 

E não foram apenas os professores a serem demitidos na UniRuy. A ex-aluna do curso de Psicologia Marianna Brandão, de 24 anos, diz que a faculdade está há meses sem conseguir atender as demandas dos alunos por falta de funcionários. Ela conta que precisou de atendimento para resolver um problema com o reconhecimento do pagamento de mensalidades e não conseguiu nenhum retorno. 

“Eu já tinha pago e a minha dívida continuou em aberto. Eu mandei requerimento com comprovantes e ninguém me respondia. Um amigo estava na mesma situação, foi tentar atendimento presencial e disse que tinham poucos funcionários atendendo porque muitos foram demitidos”, conta. Ainda segundo Marianna, professores e funcionários vêm sendo desligados antes mesmo da pandemia, e a situação se agravou a partir de 2020. 

Na Universidade Estácio da Bahia, os alunos também apontam problemas. Segundo a ex-aluna da instituição Emilly Giffone, de 23 anos, a faculdade vem reduzindo o quadro de professores. "Tínhamos poucos professores. Não fechava turma e não liberava disciplinas necessárias”, diz ela.

Em dezembro do ano passado, a Universidade decidiu encerrar o curso presencial de Jornalismo, mantendo apenas o EaD, alegando aos alunos a baixa procura e dificuldades para manter as turmas. O curso presencial, que estava tendo aulas online, deixou de existir a partir do primeiro semestre de 2021. Assim, restou aos alunos do modelo presencial migrar para o curso EaD ou trocar de faculdade. 

Pano de fundo

O professor Roberto**, está em processo de desligamento da Unifacs e confirma que a demissão dos docentes é uma realidade em faculdades particulares de todo o Brasil. Mas, segundo ele, a motivação, em alguns casos, não é a falta de verba para pagamento de salários. “A pandemia gerou uma oportunidade de uma grande redução de custo para as instituições privadas. Essas grandes empresas estão no verde, tiveram lucro. Dá para ver o balanço delas na bolsa”, diz ele.

Segundo o professor, o primeiro passo foi a suspensão de contratos com empresas terceirizadas de serviços como estacionamento, segurança, limpeza, internet e manutenção. Depois, a demissão de funcionários contratados que trabalhavam em ambientes como biblioteca, laboratório e secretaria. “Isso sem contar com o corte de gasto com água e energia”, aponta o professor. Por fim, teve início o corte também de docentes. “Os professores começaram a ser demitidos quando eles perceberam que dava para fazer a junção das turmas. Com a internet, o espaço físico não importa”, diz Roberto.“Tem o mesmo curso no campus do Comércio, na Lapa, na Tancredo Neves e em Feira de Santana. Cada campus tinha uma mesma disciplina, cada uma com seu professor. Aí você faz o seguinte: demite três professores e mantém um para dar aula para os quatro campus. Se cada uma tinha 50 alunos, se forma uma única turma com 200”, explica ele. A diminuição do número de profissionais disponíveis aumenta a demanda de cada um deles, comprometendo a relação entre professor e aluno e impactando diretamente no ensino. “Aqui, nas particulares, os professores chegam a dar mais de 10 matérias. Isso sobrecarrega o professor, ele vira uma máquina de dar aula, é uma seguida da outra, não há tempo de preparação”, diz. 

O professor também defende que a crise no sistema de ensino superior privado não é um fenômeno novo, mas que foi acelerado pela pandemia. Ele diz que já havia uma tendência de ampliar os cursos EaD, um reflexo também do aumento da procura por essa modalidade de ensino. “Com a redução dos programas do governo, como Prouni e Fies, por exemplo, os cursos ficaram caros para o nível de empobrecimento dos estudantes com a crise. Aí eles buscam o curso EaD, que é mais barato”, pontua Roberto.

O docente ainda acrescenta que o aumento de alunos por turma também já era uma tendência vista antes da pandemia, em salas de aulas presenciais, mas pondera que esse formato não é tão condenável assim. “Não é que seja completamente absurdo ter 120 alunos em uma sala de aula. Isso existe nos Estados Unidos, que é um país desenvolvido e o ensino é bom. A questão é que, lá, o professor estrela tem cerca de quatro assistentes, que fazem e corrigem as provas, se dividindo entre os alunos. No Brasil, você faz a mesma coisa, mas com 200 alunos na sala e sem professor assistente”, explica. 

“Os professores, obviamente, não sabem nem quem são essas pessoas, seres fantasmagóricos, ninguém liga a câmera, não tem controle de presença, não tem uma avaliação de verdade. É professor dando aula para alunos de outras cidades, que ele nunca viu na vida. Os alunos não têm nenhuma motivação, não há vínculo nenhum com o professor. O professor não tem como resistir a isso e, se resiste, é demitido. O que se pode fazer é aprovar todo mundo para evitar problema, até porque é muito difícil provar que o aluno não teve um bom desempenho”, desabafa Roberto.   

A partir desse cenário, ele aponta um futuro lamentável para essas instituições de ensino. “Na prática, é um pagou, passou. Hoje, as universidades, essas que não merecem o título de universidade, estão caminhando rapidamente para voltar a ser o velho balcão de diploma. Isso era reservado para as faculdades de ponta de esquina, agora, é até para as que têm título de universidade”, finaliza o professor. 

O presidente da Associação Baiana de Mantenedoras do Ensino Superior (Abames), Carlos Joel Pereira, diz não ter conhecimento sobre falta de vagas e que as reclamações dos alunos não fazem sentido, já que, de acordo com ele, apenas as aulas presenciais precisam de limite de quantidade de alunos. “Não existe lotação em aula online”, diz ele. 

Pereira ainda confirma que houve junção de turmas na nova modalidade de ensino. “Se você tem 30 alunos em uma cidade e 30 em outra, você junta eles numa plataforma”, explica e acrescenta que isso está, de fato, associado à demissão de professores. “É melhor você demitir alguns funcionários do que todos. Uma instituição não tem como sobreviver mantendo turmas de 10, 15, 20 alunos”, completa.  

Cenário futuro

Para a mestre em Gestão em Tecnologias Aplicadas à Educação e professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Íris de Sá, o fenômeno é reflexo da mistura entre educação e capital financeiro.“Pela minha visão e estudo do tema, se prioriza muito mais o lado de não ter prejuízo financeiro. É a velha questão entre o lado administrativo e econômico de uma instituição versus o pedagógico. Nem sempre os dois âmbitos andam juntos”, opina.Como professora, Íris diz que a estratégia adotada para o modelo de aulas remotas é diferente do modelo para as atividades presenciais. “O que a gente tem feito é enxugar o currículo, passar o que é mais essencial mesmo, passar leituras, trabalhar muito com a perspectiva do autodidatismo, que é o aluno estudar por conta própria e fazer seu próprio cronograma. O professor passa a ser um tutor”, analisa. 

Mas ela ressalta que a quantidade de alunos em uma turma é um fator a ser levado em consideração, mas não é determinante. “Uma sala de 15, 20 alunos, não é necessariamente produtiva. Uma de 200 é desafiadora, mas não é necessariamente improdutiva. Vai depender da dinâmica aplicada. Esse novo formato pede nova gestão, novos instrumentos que dialoguem com as tecnologias da educação”, pondera Íris. 

Já para a Doutora em educação e professora de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Telma Rocha, a maneira como o EaD e o ensino remoto estão sendo conduzidos impactam diretamente na qualidade do ensino e gera consequências a curto e longo prazos. “O cenário nos preocupa porque isso compromete a qualidade do ensino e o impacto maior vai ser na formação dos estudantes. É preciso que haja mediação, troca. Como que existe mediação com um professor para 200 alunos? Isso tudo também compromete a avaliação do processo de aprendizagem e todo o ensino”, coloca. 

Segundo Telma, as aulas à distância tendem para um processo de mecanização e é aí que mora o perigo. “O problema é quando essa realização se dá de maneira massiva, vira uma educação de massa, sem qualidade. Acabam sendo muitos alunos numa turma como receptores de uma transmissão feita com pouca interação, que é tão importante no processo de ensino e aprendizagem. Então vira uma educação transmissiva, um polo que emite para vários polos receptores pelo país”, acrescenta.

A professora ainda acredita que a tendência para o futuro é de crescimento desse modelo de aulas que ganhou ainda mais força durante a pandemia.“E eu acredito que isso só vai piorar e vai acelerar um processo de precarização do ensino superior no Brasil num nível jamais visto. Porque eu acho também que não é só a crise econômica, tem um oportunismo de mais valia das instituições. Isso fica claro com o excesso. Há uma tolerância por conta da pandemia e das mudanças que ela exigiu, mas a coisa vai além. E é um tiro no pé, porque o país precisa de pessoas qualificadas, inclusive para tocar o desenvolvimento econômico”, finaliza Telma. O que dizem os citados

Sobre o problema exposto pelos alunos, a Universidade Salvador (Unifacs) respondeu, em nota, que a situação trazida pelos alunos de Arquitetura e Urbanismo é pontual e está em tratamento, por meio dos seus processos internos. 

“Sobre a movimentação de professores, esta é uma prática natural às instituições de ensino superior. Da mesma forma que faz parte da rotina acadêmica o planejamento com base na confirmação ou não de turmas, ajustando o cenário de aulas de modo a não prejudicar o tempo de integralização curricular pelos alunos e não interferir na qualidade das aulas. Em relação ao número de alunos por turma, cada caso é avaliado de maneira criteriosa, respeitada a natureza da disciplina e, a depender da especificidade da turma e do contexto remoto ou presencial, os alunos contam com o apoio de mais de um professor em sala, professores monitores, monitores educacionais, além de modernas ferramentas de ensino e aprendizagem para garantia da qualidade acadêmica”, diz a nota.

A Universidade Estácio da Bahia disse que mantém 100% dos professores em plena atividade e que as aulas da modalidade presencial estão sendo ministradas de forma remota e ao vivo, “de modo que as interações entre alunos e docente sejam preservadas e sem que haja qualquer prejuízo ao calendário acadêmico”.   “As movimentações de pessoal são parte de um processo natural de uma instituição de ensino. É importante esclarecer que as movimentações pontuais não têm relação com a oferta de cursos. Atualmente, a instituição oferta mais de 30 cursos de graduação e mais de 20 de pós-graduação. O curso de jornalismo é um caso pontual e está sendo ofertado atualmente na modalidade de Ensino Digital”, responde. 

O Centro Universitário UniRuy informou que “tem um quadro docente titulado, preparado e totalmente adequado às necessidades dos cursos ofertados. As movimentações que porventura ocorram no campus fazem parte de um processo natural de uma instituição de ensino que periodicamente avalia a sua base de docentes, adequando-a às necessidades do mercado, demandas de cursos e às particularidades da praça em que atua”, diz a nota de resposta.

A Unime afirmou, em nota, que as aulas ministradas estão em total consonância com a portaria n° 2.117 do MEC, permitindo que as Instituições de Ensino Superior utilizem até 40% da carga horária do curso como um todo na metodologia EAD. A instituição ainda ressaltou que as aulas aplicadas neste formato possuem interação entre professor e alunos e que todas as dúvidas dos estudantes são sanadas. Sobre as demissões, a faculdade afirmou que os desligamentos ocorridos no quadro de professores do curso de Direito foram por rotatividade comum e corriqueira, e não por uma medida de redução de quadro.

Procurado pelo CORREIO, o MEC não respondeu até o fechamento da reportagem se há uma quantidade limite de alunos por turma nos modelos de ensino presencial, EaD e remoto e quais as diretrizes para cada uma das situações. Os alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unifacs enviaram um e-mail cobrando posicionamento da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres), vinculada ao MEC, que respondeu que "não há ato normativo que defina o número de alunos por sala no ensino superior". 

A secretaria ainda informou que, nos casos em que ocorram infrações relacionadas à prestação de serviços educacionais previstas no Código de Defesa do Consumidor, deve-se recorrer aos serviços de defesa do consumidor da localidade ou ao Ministério Público.   

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro

**Nome alterado a pedido do entrevistado