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'Mais um que vai sofrer atrás da Justiça como eu': as histórias dos pais de crianças mortas em operações policiais

Na mesma Bahia onde Gabriel Silva, 10 anos, morreu baleado, a família do menino Joel aguarda há 13 anos pelo julgamento dos PMs denunciados pela morte do menino

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 5 de agosto de 2023 às 05:00

Joel Castro, o Mestre Ninha, espera pelo julgamento dos PMs denunciados pela morte de seu filho, o menino Joel, há 13 anos
Joel Castro, o Mestre Ninha, espera pelo julgamento dos PMs denunciados pela morte de seu filho, o menino Joel, há 13 anos Crédito: Marina Silva/CORREIO

Em 2023, Joel da Conceição Castro teria 23 anos. Poderia ter sido um grande capoeirista como o pai, Joel Castro, conhecido no meio como Mestre Ninha. Talvez tivesse a oportunidade de conhecer outros países pelo mundo graças à capoeira. Ou talvez tivesse se apaixonado por uma área profissional totalmente diferente.

Todas essas possibilidades passam pela cabeça de seu pai diariamente. "De vez em quando, viajo para fora do país pelo trabalho da capoeira. Hoje, levo meninos da periferia para conhecer pela primeira vez países como a França e a Alemanha. Fico olhando de longe, lembrando do meu filho e que ele podia estar ali naquele momento", diz Joel pai, hoje com 54 anos.

Mestre Ninha sabe que nunca poderá ver seu filho crescido. O destino de Joel, o filho, foi interrompido tragicamente ainda menino, aos 10 anos de idade, em 21 de novembro de 2010. Naquele domingo à noite, Joel se preparava para dormir em casa quando foi baleado na cabeça por um tiro disparado pela Polícia Militar da Bahia, que fazia uma operação no Nordeste de Amaralina. Segundo a família, os policiais negaram socorro ao menino, que não resistiu aos ferimentos.

Treze anos depois, Joel pai ainda não viu uma resposta da Justiça. Até hoje, nenhum dos nove policiais militares denunciados pelo Ministério Público do Estado (MP-BA) foi julgado. Enquanto isso, casos como o do menino Joel se multiplicaram nesse período: crianças que estavam em casa ou nas proximidades da residência quando foram baleadas e mortas em operações policiais.

O menino Joel chegou a participar de uma propaganda turística do governo do estado, no verão de 2009/2010
O menino Joel chegou a participar de uma propaganda turística do governo do estado, no verão de 2009/2010 Crédito: Reprodução

Foram casos como o de Mirella do Carmo Barreto, que tinha apenas seis anos. Em março de 2017, a garota estava com a mãe estendendo roupas no varal de casa, na localidade da Gomeia, em São Caetano, quando foi baleada por um tiro que partiu da arma de um policial militar. Na época, a PM alegou que seguia o GPS de um celular que tinha sido roubado e estaria em busca de criminosos. Testemunhas, porém, contestaram a versão e afirmaram que os militares já chegaram atirando.

A última criança a ser vitimada pela violência policial foi Gabriel Silva da Conceição Júnior, que foi morto no dia 23 de julho, em Portão, bairro de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). Assim como Joel, Gabriel tinha 10 anos. Ele estava na porta de casa quando foi atingido por um tiro no pescoço.

"Isso é em todas as periferias, porque eu ligo a televisão e vejo esses fatos acontecerem. E aqui no Nordeste (de Amaralina) acontecem muitos fatos. Quando eles (famílias de crianças mortas pela polícia) falam assim 'eu vou querer justiça, quero justiça', eu fico olhando. Só penso: vai ser mais um igual a mim, mais um que vai sofrer igual a mim atrás dessa justiça. Eu sofro com essas pessoas", diz Joel pai.

"Quando eles (famílias de crianças mortas pela polícia) falam assim 'eu vou querer justiça, quero justiça', eu fico olhando. Só penso: vai ser mais um igual a mim, mais um que vai sofrer igual a mim atrás dessa justiça. Eu sofro com essas pessoas"

Joel Castro, pai do menino Joel

Cargo do Autor

Enquanto isso, a polícia baiana desponta no topo de um ranking amargo: o da polícia que mais mata no Brasil. De acordo com o último Anuário Brasileiro da Segurança Pública, divulgado no fim do mês passado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a polícia da Bahia ultrapassou o Rio de Janeiro em 2022 e, pela primeira vez, se tornou a mais letal do país, com 1.464 mortes atribuídas a ela.

Em todo o Brasil, foram contabilizadas 6.430 mortes por intervenção policial - o que significa que, apenas a Bahia responde por 22,7% desse total. Em 2010, ano da morte de Joel, foram 305 pessoas mortas pela polícia. A Bahia estava atrás de São Paulo e Rio de Janeiro, que tinha quase o triplo de ocorrências (855). Somente na última semana, foram 31 pessoas assassinadas pela polícia baiana, além de casos como o do jogador de futebol e do músico feridos por militares, em Lauro de Freitas e no Nordeste de Amaralina, respectivamente.

Em 2022, ainda segundo o Anuário, 0,1% das vítimas de policiais no país tinham entre 0 a 11 anos - o maior percentual de assassinatos é na faixa etária dos 18 a 24 anos, com 45,4% do total. “Ter 0,1% é muito. Só o fato de ter vítimas nessa idade mostra a falência do Brasil enquanto sociedade na capacidade de proteger crianças da atuação policial. Isso é inaceitável”, enfatiza o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques.

Sem reparação

Neste mês de agosto, Joel Castro vai passar seu 13º Dia dos Pais sem o filho. Em todo esse tempo, a vida mudou muito. O mestre de capoeira tem outros quatro filhos, mas vive apenas com dois, frutos de outro casamento.

O filho mais velho, Jeanderson, que chegou a ajudar a socorrer Joel em 2010, foi embora do Brasil. Segundo o próprio pai, o trauma pelo assassinato do irmão teria mexido muito com ele. Quando recebeu uma proposta para viver na Irlanda, há alguns anos, decidiu investir nisso. Desde então, mora no país.

O casamento com a mãe de Joel, que já não ia bem, não teria resistido ao sofrimento. "A gente vai passando, vai levando as consequências da vida. Nós vamos passando e sentindo muita falta de Joel. Quando a gente entra aqui em casa, tem uma lembrança dele. Eu ainda moro no mesmo lugar e a lembrança é eterna", diz.

Para Joel pai, a situação da segurança pública no país chegou ao limite. Mais de uma vez, ele reforça que acredita que a Justiça tem muita responsabilidade nisso e teria deixado chegar a esse ponto.

Joel diz não ter visto mudança na polícia nos últimos 13 anos
Joel diz não ter visto mudança na polícia nos últimos 13 anos Crédito: Marina Silva/CORREIO

"Sempre vai acontecer, porque nem o Estado nem a Justiça funcionam. Se a Justiça funcionasse para valer, se assim como eles matam a Justiça fosse rápida, eles iam pensar duas, três vezes antes de fazer de novo".

O mês de novembro costuma ser o mais duro. À reportagem, ele descreve a personalidade do filho: era um menino comunicativo, cheio de energia e capaz de conversar com gente grande. Além disso, Estava dentro de casa. Joel era tão bem cuidado que os pais tinham até medo de que ele fosse sozinho à feirinha do bairro.

"Mas mesmo que estivesse na rua, não era para acontecer uma ação desastrosa da Polícia Militar. Eles fazem uma coisa daquela e ainda dizem que foi troca de tiros. A perícia mostra que não teve troca de tiros. Eu perdi Joel, mas ele fica na minha memória todos os dias, todas as noites", acrescenta.

Ele diz esperar que Deus conforte o coração dos pais de Gabriel como teria confortado o seu próprio e de outros pais na mesma situação. Por vezes, conversa com o pai de Mirella, Robenilton Barreto, de quem ficou amigo. "Ele me liga e fica 'Joel, a justiça, a justiça'. Eu fico sem palavras para dar a ele, porque são 13 anos lutando", desabafa.

Nesses anos, ele diz não ter recebido nenhum tipo de reparação do Estado. Nesse mesmo tempo, também diz que não viu nenhuma mudança na polícia. "Só vai ter mudança quando reunir toda instituição que luta sobre isso e todos os advogados da periferia para procurar a ONU (Organização das Nações Unidas) para abrir uma ação contra o governo do estado. Aí vai ter uma reação, mas enquanto não bulir nos cofres públicos da Bahia, não vai dar nada".

Joel pai diz que muitos policiais moram na favela e conhecem bem a periferia. Afirma ser por isso que tem dificuldade para entender a postura de alguns. "Que tanto ódio é esse? Eu não entendo. Eles são pais de família, moram na periferia e fazem uma coisa dessas. Não entendo o que esse governo está fazendo com a cabeça desses homens. Quem anda instruindo esses policiais?", questiona.

Seria o caso de fazer uma "limpeza", nas palavras de Joel pai. Assim como uma casa precisa ser limpa diariamente, ele acredita que a PM e o próprio governo do estado deveria identificar o que está errado na corporação. "Eu só sei que foi Joel, foi Micael, foi Mirella, foi Gabriel. As crianças estão morrendo. Está demais e tem que dar um basta nisso. Eu não sei como, mas já chega".

Dossiê

Os nove PMs que são réus no processo de Joel serão levados a júri popular. O MP-BA denunciou nove policiais militares que participaram da operação, mas o soldado Eraldo Menezes de Souza e o tenente Alexinaldo Santana Souza foram apontados pelas investigações, respectivamente, como o autor do disparo que matou Joel e comandante da ação.

Além deles, foram denunciados os soldados Leonardo Passos Cerqueira, Robson dos Santos Neves, Paulo José Oliveira Andrade, Nilton César dos Reis Santana, Luís Carlos Ribeiro Santana, Juarez Batista de Carvalho e Maurício dos Santos Santana.

O MP informou que, assim como a defesa, se manifestou no último dia 14 de junho para apresentar a lista de testemunhas que irá depor no plenário do Júri. Antes disso, o processo estava no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou o recurso especial da defesa.

De acordo com a advogada Lorena Pacheco, que representa a família como assistente de acusação no processo, agora, a expectativa é de que o julgamento seja finalmente marcado. Para a advogada, casos como o de Joel evidenciam a prática de violência processual.

"Esses pais e mães estão em um processo de luto há muito tempo. No caso de Joel, a família tem mais tempo lutando por justiça do que o filho passou em vida", diz ela, que é advogada do projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar do Odara - Instituto da Mulher Negra.

Os réus usaram recursos ao longo dos anos. Só agora, em 2023, as possibilidades de recurso acabaram, restando apenas que o juiz marque a data do júri. "Entendemos que o processo constitucional penal, apesar de ter todas as ressalvas e garantias necessárias do contraditório e do direito de defesa, tem que pensar na razoabilidade desse tempo até para fazer sentido uma responsabilização", acrescenta.

"Entendemos que o processo constitucional penal, apesar de ter todas as ressalvas e garantias necessárias do contraditório e do direito de defesa, tem que pensar na razoabilidade desse tempo até para fazer sentido uma responsabilização"

Lorena Pacheco, advogada do Instituto Odara

Cargo do Autor

Em junho, as advogadas do Instituto Odara participaram de uma reunião com uma representante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que fizeram denúncias referentes aos casos de crianças que acompanham.

Mas até o fim do ano, o Instituto deve apresentar uma denúncia internacional a partir de um dossiê referente a mortes de crianças por letalidade policial. "A ideia é que, ainda esse ano, a gente encaminhe esse dossiê à ONU, para o fórum de combate à discriminação racial, entendendo que essa violência tem um perfil e um território específicos. Aqui em Salvador, essa racialidade e essa territorialidade se cruzam", adianta a advogada.

Para ela, a ênfase nos casos de criança tira a possibilidade de usar argumentos de que as vítimas seriam pessoas envolvidas com o tráfico de drogas. Essa justificativa é frequentemente apontada pela polícia em casos de morte por intervenção policial.

Segundo a advogada, por trás do aumento do número de mortes por violência policial pode estar o endosso das autoridades. Isso se daria não apenas por meio de falas, mas também de concursos aumentando o efetivo de praças ou mesmo do financiamento das corporações.

"A polícia elegeu os territórios e elegeu também a população preta e pobre como um potencial inimigo que deve ser exterminado. Quando se diz que tem uma guerra às drogas, a gente não vê um extermínio de matagal de maconha, mas a gente vê pessoas morrendo", pondera.

Ela cita, ainda, como esses processos afetam as crianças que não morrem, mas vivem nas comunidades onde essas operações são comuns. Um ano após Joel morrer, por exemplo, em 2011, seu primo Carlos Alberto Conceição Júnior trabalhava em um hotel e estava de folga quando foi morto numa operação da PM. Ele deixou um filho pequeno.

"A gente está falando de crianças que são afetadas diretamente, mas e as que são afetadas de forma indireta? Elas somatizam depressão, ansiedade, síndrome do pânico, insônia. Como essas mães, famílias e comunidades podem ser tratadas depois dessas mortes violentas? Há uma série de questões que se levantam depois do momento da morte violenta, mas que o estado não se preocupa, pelo contrário, endossa, dizendo que são artilheiros", diz, fazendo referência uma fala do então governador Rui Costa, em fevereiro de 2015, quando 12 pessoas foram mortas pela Polícia Militar no Cabula.

Sonho interrompido

No ano dessa declaração, a Bahia registrou 299 mortes por intervenção policial. Já o número contabilizado em 2022 é cinco vezes maior - houve um aumento de 526,61%. Enquanto a letalidade policial escalava, outras famílias passavam pelo mesmo drama de Joel Castro, o Mestre Ninha.

Foi o caso do vigilante Robenilton Barreto, 41, que em março de 2017 viveu o dia que mudaria para sempre sua vida. No dia 17 daquele mês, sua filha Mirella, 6, estava com a mãe estendendo roupas no varal de casa, em São Caetano. Ele tinha saído para comprar ingredientes para um cuscuz na mercearia próxima quando um sobrinho veio chamá-lo, aos gritos, para avisar que algo tinha acontecido em sua casa.

Era Mirella que tinha sido atingida por um policial. Robenilton saiu correndo e, ao chegar em casa, já encontrou a filha caída no chão, baleada. A mãe da menina, sua esposa, nem conseguia carregá-la de tão desesperada que estava. "Quando eles (os policiais) desceram a ladeira da rua em alta velocidade, eu esperei fazerem o trabalho deles. Só não imaginava que o trabalho deles era ir na minha casa matar minha filha", conta.

Mirella era a segunda filha de Robenilton. Ela queria ser fisioterapeuta
Mirella era a segunda filha de Robenilton. Ela queria ser fisioterapeuta Crédito: Reprodução

Com a menina nos braços, saiu correndo para tentar levá-la a um hospital. Na agonia e ao ver Mirella perdendo sangue, chegou a cair algumas vezes. Ela foi levada a uma Unidade de Pronto Atendimento, mas não resistiu.

Robenilton tem uma filha adulta, mas Mirella era a única filha com sua esposa. A gestação tinha sido planejada. Apesar de bem nova, Mirella dizia que queria ser fisioterapeuta. Na época, a mãe dela, esposa de Robenilton, tinha passado por um acidente recente e fazia sessões de fisioterapia na perna. Como a acompanhava, a profissão chamou a atenção da garota, que passou a repetir que estudaria para trabalhar como fisioterapeuta.

Assim como Joel pai, Robenilton diz pensar que, às vezes, parece que a justiça não vai chegar. "Essa morosidade nos coloca no sofrimento, aguardando tantos anos para ter justiça enquanto o policial que tirou a vida de uma criança fica indo, subindo e tendo uma vida normal. A criança foi-se embora, perdeu todos os sonhos de ter alguma coisa na vida".

Para ele, tanta demora é também uma estratégia. Seria uma forma de vencer os pais pelo cansaço ou de tentar fazer com que desistam. Hoje, ele diz não entender por que a Polícia Militar parece resistir tanto ao projeto de instalar câmeras nos uniformes.

Robenilton também afirma não saber o que a polícia representa - se segurança ou medo. "Se eu vou ali na Orla e vejo a polícia, me sinto seguro porque acho que o marginal não vai se aproximar ali. Mas no bairro periférico, eu tenho medo. A polícia se comporta na periferia totalmente diferente de como se comporta na Barra, na Pituba, no Itaigara. Muitos policiais nasceram e se criaram na favela, sabem que muitos ali são pessoas de bem. Mas quando entram na favela, não lembram do vizinho", completa.

"Se eu vou ali na Orla e vejo a polícia, me sinto seguro porque acho que o marginal não vai se aproximar ali. Mas no bairro periférico, eu tenho medo. A polícia se comporta na periferia totalmente diferente de como se comporta na Barra, na Pituba, no Itaigara "

Robenilton Barreto, pai de Mirella

Cargo do Autor

De acordo com a assessoria do MP-BA, o órgão ofereceu denúncia contra o PM Aldo Santana do Nascimento em janeiro de 2018. O processo corre no 2º Juízo da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Salvador. No dia 30 de maio, foi encerrada a fase de ouvir as últimas testemunhas e interrogar o réu.

A defesa do acusado requereu que fosse expedido um ofício para a Corregedoria da PM encaminhar documentos que entende que devem ser incluídos nos autos. Agora, o processo aguarda despacho pelo juízo. O MP informou que, após a juntada da documentação requerida pela defesa no processo, espera ser intimado para as alegações finais.

Vitimização

Este ano, o Instituto Fogo Cruzado mapeou que quatro crianças foram atingidas em ações e operações policiais em Salvador e na Região Metropolitana. Desse total, uma morreu e três ficaram feridas.

Esses casos reforçam a percepção de que, ano após ano, crianças têm sido vítimas de forma direta e indireta da violência, na avaliação da pesquisadora Larissa Neves, da Rede de Observatórios da Segurança na Bahia e da Iniciativa Negra, parceira do Instituto Fogo Cruzado na Bahia.

"Ações policiais são em territórios onde a maioria é negra. Essas crianças deixam de ir para as escolas, porque as escolas são fechadas justamente para prevenir ou por casos de tiroteio que chegam às escolas. Nos momentos de lazer, as crianças também são alvo dessas balas tidas como perdidas", pontua.

Assim, não é incomum que crianças fiquem com traumas devido às rotinas de violência nas comunidades em que vivem. Segundo Larissa, quando uma comunidade é alvo intenso de ações e operações policiais com nível alto de violência, há consequências para toda a comunidade.

"E quando há a vitimização de uma criança, não é somente a vida de uma criança que é retirada, mas o presente e o futuro de uma comunidade. Essa violência tem sido tolerada, mas a gente não pode mais deixar que seja. Essas crianças têm cor, porque são crianças negras em territórios violentados pela falta de segurança e por um plano de segurança que é mais letal", acrescenta.

A assessoria do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) informou que as ações referentes a todos os casos citados pela reportagem já foram distribuídas. No entanto, por envolver crianças, os processos tramitam em segredo de justiça.

Nem a PM nem a Secretaria da Segurança do Estado responderam aos questionamentos da reportagem.

Sistema de segurança pública e justiça criminal contribuem para falta de responsabilização

Das 6.659 mortes violentas registradas na Bahia no ano passado, 22% foram cometidas por policiais. "Esses são indicadores de um uso desproporcional da força enquanto forma de agir da polícia", diz o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, David Marques.

Nos últimos dias, operações muito letais no Guarujá (SP), na Bahia e no Rio de Janeiro têm encontrado muito apoio de segmentos sociais nas redes sociais e debates. De acordo com Marques, isso pode ser associado a uma sensação generalizada de insegurança no país, com o crescimento de várias modalidades de crimes.

"Tem modalidades de crimes se diversificando e a atuação da polícia não vem acompanhando isso. A gente ainda aposta muito no controle pela força policial, que vai dar conta de alguns casos. Mas quando se fala de crime organizado, que é uma empresa transnacional, esse tipo de atuação só produz vítimas dos dois lados sem prejudicar o negócio", explica.

No caso das mortes de crianças, ele acredita que a falta de responsabilização também é um dos fatores que contribuem para que crimes assim continuem acontecendo."A responsabilização, de fato, é muito baixa e existe um apoio a essa letalidade, contanto que os envolvidos no processo consigam dizer que a vítima era um bandido. Todo o sistema de segurança pública e a justiça criminal contribuem para esse cenário".

Uma medida que pode ser adotada é a implementação de câmeras, assim como a mudança do discurso. “O discurso político de autoridades tem efeitos práticos. É muito importante a gravação das câmeras e o retreinamento, no sentido de uma reciclagem contínua”.

Para a pesquisadora Larissa Neves, é preciso de um plano com participação da sociedade civil. "A insegurança desses meninos e dessas meninas é responsabilidade de todos. A gente não pode olhar para essas crianças de maneira individualizada, mas precisa que a gestão pública olhe para esses casos e pense políticas de prevenção mais eficazes".

Relembre alguns casos de crianças mortas pela polícia na Bahia

Mirella do Carmo Barreto

Mirella estava com a mãe estendendo roupas no varal
Mirella estava com a mãe estendendo roupas no varal Crédito: Reprodução

Mirella tinha seis anos e foi atingida por um tiro que saiu da arma de um PM, enquanto estendia roupas com a mãe no varal de casa, em 2017. O MP denunciou o policial militar Aldo Santana do Nascimento em janeiro de 2018. Já foram ouvidas as testemunhas na fase de instrução. Agora, o MP aguarda ser intimado para as alegações finais.

Geovanna Nogueira Paixão

Geovanna morava na comunidade Paz e Vida
Geovanna morava na comunidade Paz e Vida Crédito: Reprodução

Aos 11 anos, Geovanna foi morta com um tiro na cabeça enquanto a família tomava café da manhã, em 24 de janeiro de 2018, na comunidade Paz e Vida, no Jardim Santo Inácio. A PM fazia uma operação no bairro. O policial militar Nildson Jorge Sousa França foi denunciado pelo MP-BA. O julgamento está previsto para o dia 21 deste mês.

Micael Silva Menezes

AMicael
AMicael Crédito: Reprodução

No dia 14 de junho de 2020, Micael, 11, tinha saído para empinar pipa no Vale das Pedrinhas. Ele correu para se proteger quando a polícia chegou atirando, segundo a família. Na época, a PM contestou e disse que teria encontrado o menino caído depois de um confronto com homens armados. Até hoje, a polícia não finalizou a investigação sobre o caso.

O MP-BA informou que aguarda a conclusão do inquérito policial do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), cuja instauração foi requisitada pelo órgão à Polícia Civil em 5 de julho de 2022. Os autos do inquérito policial militar já foram remetidos ao MP.

Gabriel Silva da Conceição Júnior

Gabriel tinha 10 anos e estava na porta de casa
Gabriel tinha 10 anos e estava na porta de casa Crédito: Reprodução

Gabriel tinha 10 anos e foi morto no último dia 23. Ele estava sentado na porta de casa, em Portão, quando foi baleado. A família do menino acusa policiais militares, que faziam uma operação no local, de serem responsáveis pela morte dele. Segundo a família, os PMs chegaram atirando.

Através da assessoria, a Polícia Civil informou que a investigação está em andamento e detalhes não seriam passados para não atrapalhar a apuração.