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Maysa Polcri
Publicado em 27 de junho de 2024 às 09:00
Ao decidir a quantidade de maconha que define se uma pessoa é traficante ou usuária de drogas, fixada em 40 gramas ou seis plantas fêmeas de Cannabis sativa, o Supremo Tribunal Federal (STF) preencheu uma lacuna aberta há quase 20 anos. Isso porque a Lei 11.343/2006, que trata dos crimes relativos ao uso de substâncias, não estabelece critérios objetivos para classificar o tráfico. A indefinição prejudica sobretudo pessoas negras, as mais atingidas pela “guerra às drogas”, segundo especialistas.
Hoje, quando um indivíduo é flagrado portando certa quantidade de maconha, é levado à delegacia pela autoridade policial. Lá, o delegado analisa se a pessoa deve ser enquadrada como traficante ou usuário. A pena para o tráfico de drogas no Brasil é de 5 a 15 anos de prisão. Usuários, por outro lado, recebem sanções administrativas,como medidas educativas.
Os delegados levam em consideração a quantidade de substância (mesmo sem critério definido), forma de transporte e, ainda, se aparelhos de medição foram apreendidos. Se considerado traficante, o indivíduo é preso. Para especialistas, no entanto, outro fator pesa na decisão: a cor da pele de quem porta psicoativos.
Quem explica é Misael França, professor de Processo e Prática Penal da Universidade Federal da Bahia (Ufba). “A falta de objetivos para a configuração do sujeito como usuário ou traficante acaba vulnerabilizando ainda mais a população negra periférica, que fica à mercê das autoridades policiais, ministeriais e do poder judiciário”, diz.
Decisões que, segundo o professor, são desiguais em muitos casos. “Pesquisas feitas nos últimos anos revelam que o território onde o sujeito reside tem sido levado em consideração para definir se o sujeito é usuário ou traficante. Devido a falta de critérios, a polícia também leva em consideração quantidade de cédulas apreendidas, artefatos de manipulação de entorpecentes, agendas com nomes de pagadores, entre outros”, completa Misael França.
Segundo Marcelo Werner, secretário de Segurança Pública da Bahia (SSP), as forças de segurança serão orientadas a seguir a decisão do Supremo Tribunal Federal.
“Vamos instruir as forças de segurança a partir do normativo do Supremo Tribunal Federal. Independente disso, vamos continuar com o enfrentamento ao tráfico de drogas e as lideranças que violentam a população do estado”, ressaltou, durante evento realizado na manhã de quarta-feira (26).
Uma pesquisa da Iniciativa Negra revelou, em 2021, que bairros majoritariamente negros que possuem menos ocorrência de porte de drogas são mais alvo de violência policial do que localidades onde há mais casos de substâncias e moram pessoas majoritariamente brancas.
Na prática, funciona assim: enquanto a Pituba registrou 36 ocorrências de porte de droga e nenhuma morte em ação policial, o Nordeste de Amaralina, que teve 10 eventos com substâncias ilícitas, registrou 12 homicídios durante operações da polícia. Para Dudu Ribeiro, pesquisador da Iniciativa Negra, os dados revelam o tratamento desigual das forças de segurança a depender da localidade onde pessoas portam drogas.
“A falta de critérios é utilizada como subterfúgio, pelo sistema judiciário, para ampliação da criminalidade e aprisionamento de pessoas negras. A guerra às drogas é instrumento de um processo histórico de contenção das possibilidades da população negra”, afirma Dudu Ribeiro.
Outra pesquisa, desta vez realizada no estado de São Paulo, mostrou que ao longo de 10 anos, 31 mil pessoas negras foram enquadradas como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram considerados usuários. O estudo feito pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper analisou 3,5 milhões de boletins de ocorrência de 2010 a 2020.
Especialistas também ressaltam que a decisão do STF pode ajudar na diminuição da superlotação dos presídios brasileiros. Mais de 42 mil pessoas não estariam presas no país se o porte de até 25 gramas de maconha fosse considerado de uso pessoal. Os dados são do Atlas da Violência 2024, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.