Justiça mantém liminar que impediu médica cotista de ser nomeada professora da Ufba

A manutenção ocorreu na terça-feira (3)

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  • Vitor Rocha

Publicado em 4 de setembro de 2024 às 20:25

A juíza Arali Maciel Duarte manteve, na terça-feira (3), a liminar que retirou a vaga da cotista Lorena Pinheiro para docente na Universidade Federal da Bahia. A otorrinolaringologista havia sido aprovada no concurso para professora adjunta na Faculdade de Medicina da Bahia (Fameb), mas recebeu a notícia de que o cargo havia sido reivindicado pela candidata da ampla concorrência, Carolina Cincurá.

Lorena Pinheiro Crédito Crédito: Reprodução

De acordo com Felipe Jacques, advogado responsável pela defesa de Lorena, na terça a 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária da Bahia admitiu a cotista como Litisconsorte Passivo Necessário, ou seja, parte necessária a figurar no processo. Na segunda-feira (2), o advogado da médica solicitou uma reconsideração da liminar emitida pela Justiça no último dia 13 de maio, mas a decisão foi mantida. Apesar da manutenção, a disputa judicial ainda permite recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Após a repercussão do caso e a sua entrada formal no processo, Lorena Pinheiro afirma que está confiante com a possibilidade de reverter a liminar concedida em favor de Cincurá. "Estou muito confiante no Poder Judiciário brasileiro no sentido de garantir a lei e sua aplicação, uma vez que é uma lei que pensávamos que já estava solidificada. Essa repercussão veio para garantir direitos constitucionais que estão em jogo nesse momento", afirma.

O imbróglio ocorreu porque a Ufba ofertou apenas uma vaga para otorrinolaringologista, dando preferência aos cotistas. A universidade dividiu a reserva de cotas pelo total de vagas e não por especialidades de cada área, seguindo uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017. Com a classificação na primeira colocação da ampla concorrência, a candidata Carolina Cincurá moveu uma liminar na Justiça para reivindicar o cargo. Com a imposição judicial, a Ufba acatou a decisão e retirou a vaga de Lorena. A universidade já informou que vai recorrer do caso.

Doutora em direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a advogada Dandara Pinho, que foi presidente da Comissão Especial de Promoção da Igualdade Racial da OAB-BA, afirma que é um erro o "Poder Judiciário incidir na gestão pedagógica de uma instituição" e aponta que a decisão tomada não teve "perspectiva racial". "Nós temos no Brasil legislações que são bastante específicas e que tratam dos direitos da população afrodescendente. No entanto, há sempre entraves para que haja implementação de verdade dessas legislações", denuncia.

Pinho reitera que o Ministério Público Federal deveria atuar como "fiscalizador da lei" e intervir no caso, que aconteceu em uma universidade federal. Ela complementa destacando que o fato não pode ser individualizado. "O ocorrido não se trata apenas de uma defesa particular da professora doutora Lorena Pinheiro, mas de afronta a uma legislação, ao enfrentamento ao racismo e ao conceito máximo de reparação", exclama.

O CORREIO procurou o Ministério Público Federal para conferir se a entidade vai interferir no processo, mas não obteve resposta. A reportagem também tentou entrar em contato com a médica Carolina Cincurá, mas não conseguiu retorno. Procurada, a Ufba também não deu resposta sobre a manutenção da liminar.

Aplicação da Lei de Cotas

A Lei de Cotas foi implantada para concursos de magistério superior em 2014, com 20% das vagas destinadas aos cotistas. Apesar de casos como o da Ufba, em que o edital do concurso busca alternativas para cumprir a reserva de cotas considerando o total de vagas, a advogada sugere que há universidades que tem diminuído as vagas para evitar o cumprimento da política de ação afirmativa. "Eles [departamentos das universidades] têm fracionado para que cada edital saia com uma ou duas vagas. Por quê? Porque a legislação diz que é preciso três vagas para a reserva de cotas", afirma.

Desejo de lecionar

Graduada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e doutora pela Ufba, Lorena contou a importância da educação pública na sua trajetória. "Eu sou a primeira médica da minha família, uma família advinda do norte de Minas Gerais, uma região bem pobre aqui no país para quem conhece... foi investido em mim bastante recurso público para que eu fosse médica e tivesse o currículo e o preparo que eu tenho hoje", diz.

Pinheiro, que seria a primeira docente negra cotista da Fameb, ainda disse o motivo para seguir a carreira de educadora. "O meu desejo é retribuir à sociedade aquilo que me foi investido na forma de assistência ao SUS e também atuando com ensino, pesquisa e extensão na Universidade Federal da Bahia, para que eu seja exemplo para outros jovens de origens sociais e étnico-raciais semelhantes à minha", revela.

Pesquisa acadêmica

Em 2022, a pesquisa de doutorado da médica ganhou destaque nacional por ser considerada um estudo avançado no tratamento da perda de olfato após a Covid-19. Lorena propôs uma abordagem para tratar essa condição, conhecida como parosmia, acompanhando 128 pacientes ao longo do estudo.

Durante a pesquisa, metade dos participantes recebeu cápsulas de ácido alfa-lipóico, uma substância que auxilia na regeneração dos neurônios, enquanto a outra metade recebeu pílulas de placebo.

Entenda o caso

Lorena Pinheiro foi aprovada no concurso para professora adjunta na Faculdade de Medicina da Bahia através da reserva de cotas, porém, teve o seu direito à vaga contestado pela candidata da ampla concorrência, Carolina Cincurá. No último dia 21 de agosto, à espera da nomeação, a médica negra foi surpreendida por uma decisão da 1ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária da Bahia.

O concurso ofertou 30 vagas, com 20% dos cargos destinados a pessoas negras. No próprio anúncio dos resultados, a regra estava explícita: "Vagas: 1, sendo esta preferencialmente ocupada por candidato autodeclarado negro, conforme Lei nº 12.990/2014 e Edital nº 01/2023".

Durante o processo judicial, a Ufba defendeu que a seleção ocorreu corretamente, se posicionando de forma contrária à decisão da liminar. "Pelo exposto, concluímos que não houve qualquer irregularidade por parte desta UFBA quanto aos trâmites relacionados ao concurso oferecido pela Faculdade de Medicina da Bahia", afirmou.

Segundo a universidade, a reserva de cotas seguiu a decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, proferida no ano de 2017 em Ação Declaratória de Constitucionalidade. À época, o juiz argumentou que os órgãos de Estado não podem alegar a divisão por especialidade como motivo para deixar de aplicar as vagas destinadas aos cotistas. Ainda assim, a instituição acatou a imposição judicial.

No último domingo (1), a Ufba informou que cumpriu a determinação judicial, nomeando a candidata Carolina Cincurá Barreto, mas ressaltou que só tomou conhecimento do processo na fase de cumprimento da decisão.

A partir de dezembro de 2018, a universidade passou a cumprir a Lei de Cotas em todos os seus concursos considerando a totalidade de vagas do Edital e não aplicando qualquer fracionamento sobre especialidades ou áreas. Anteriormente, esta lei era aplicada somente nas áreas com três ou mais vagas.

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro