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Italiano deixa império de dívidas e disputas em Itacimirim

Empresário de Nápoles fundou hotel 5 estrelas que virou centro de disputas e processos judiciais milionários

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de julho de 2023 às 05:00

Fronteira Resort no início dos anos 2000
Fronteira Resort no início dos anos 2000 Crédito: Reprodução/Facebook Fronteira Resort

O Fronteira Tropical Resort está no final de uma estrada de pedra - é o número 370 do loteamento Recreio das Águas. Inaugurado em 1992 por um italiano de Nápoles, foi o primeiro hotel cinco estrelas do Litoral Norte baiano. Quem o visita não encontra sinais desse passado de glória do empreendimento, que virou alvo de disputas de posse e brigas judiciais. De abandonado, o Fronteira só tem a aparência.

O hotel, no coração de um dos principais destinos litorâneos da Bahia, acumula dívidas milionárias em 60 processos trabalhistas, calcula o Tribunal Superior do Trabalho. Contra Alfonso Maldari, o criador do hotel, são 31 ações ativas.

A trama se arrasta desde o fechamento do Fronteira, em 2008, e a lista de credores ainda inclui ex-fornecedores e a Prefeitura de Camaçari, cidade na Região Metropolitana de Salvador à qual Itacimirim pertence e que cobra R$ 5 milhões.

No centro dessa briga está a indefinição quanto à posse do terreno onde foi construído o hotel. Em 2010, os herdeiros de Alfonso perderam, por decisão judicial, a propriedade de 170 mil m2 (15 campos de futebol), que serviria para quitar dívidas do hotel com a empresa que instalou o sistema de ar-condicionado.

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Ruínas do resort que fica na foz do Rio Pojuca Crédito: Marina Silva/CORREIO

Desde aquele ano, a decisão é questionada por herdeiros do empresário italiano – ou seja, a briga segue. O terreno do hotel está avaliado em R$ 27 milhões, mas não há placas que indiquem que ele está à venda.

O italiano Alfonso Maldari morreu em 2010, antes de ver a destruição do Fronteira. O empresário provoca sentimentos contraditórios em que conviveu com ele. O estrangeiro, acusado de agressão física e verbal a funcionários, é o mesmo que já expulsou hóspedes que destrataram garçons da piscina.

"O hotel era a vida dele", diz um ex-funcionário. Quanto a isso, todos concordam. Eles também têm opiniões semelhantes sobre os motivos para o hotel ter tido aquele fim.

Da portaria do hotel, é possível ver estruturas amarelas arruinadas. Um segurança impede a reportagem de entrar no resort, onde os hóspedes eram recepcionados por uma placa com "boas-vindas" em cinco idiomas - entre eles o italiano "benvenuti". O homem não informa para quem trabalha.

À distância, quatro ex-funcionários do Fronteira mostram onde funcionava cada coisa no hotel onde aprenderam a trabalhar com turismo e do qual saíram sem respostas.

Esta é a história de um italiano que chegou ao Litoral Norte decidido a criar um império turístico – e deixou para trás um império de dívidas.

Da glória à ruína: a queda do hotel cinco estrelas

Para a noite de inauguração do Fronteira, Maldari convidou um time de futebol masculino da Itália para jogar no campo de futebol do hotel, aberto com 150 quartos, três bares, dois restaurantes, duas piscinas, quatro quadras de tênis e um anfiteatro. O hotel estava cheio, prenúncio de como seriam os primeiros anos. Naquela noite, Maldari citou o Fronteira como "a menina dos seus olhos".

As lembranças, contrastadas com a atual espera pelo pagamento e o cenário de destruição do hotel, são compartilhadas por sete ex-funcionários em uma barraca vizinha à foz do Rio Pojuca. Na época em que o hotel funcionava, uma ponte de madeira, destruída como todo o resto, ligava os hóspedes àquele local onde a água doce deságua na salgada.

Hotel Fronteira, em 1996, em Itacimirim Crédito: Almiro Lopes/Arquivo Correio

A luta judicial pelo recebimento das verbas rescisórias começou assim que os funcionários souberam da demissão. Maldari já estava afastado das atividades por problemas de saúde.

"Eles disseram que tentaram, mas não iam conseguir manter. Pensei: minha vida acabou"

Robson Marques, 49 anos, ex-garçom que ajudou a construir o resort quando era um garoto de 17.

Naquele dia, os funcionários, segundo relatam, foram embora com metade do salário e a recomendação, feita pela administração, de que acionasse o sistema judiciário para receber o que o hotel devia.

Isso significou uma corrida judicial de ao menos 200 funcionários. Parte deles conseguiu fechar acordos com a empresa. Outra, não – ou teve o acordo judicial descumprido. O montante total da dívida não pode ser especificado, segundo o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª região, em Salvador.

Enquanto mostra os tornozelos inchados, Robson acrescenta: "Não abro mão de um centavo. Preciso do meu dinheiro para cuidar da saúde". Segundo ele, o problema nas pernas é resultado dos anos de "trabalho pesado" no hotel.

"Vivia uma vida de escravo no hotel, mas também curtia. Eu vendia fruta no entroncamento e agora conhecia chuveiro elétrico, ar-condicionado"

Robson Marques

Ele se emociona ao falar do resort, onde chegou a morar. Acontecia de funcionários passarem temporadas por lá. Nas vezes em que viveu no trabalho, Robson nem sempre recebia o salário. No caso de Erival Barroso, 47, ex-barman, nunca houve problemas quanto a isso. A peleja veio depois.

"Caiu no esquecimento nossos processos. O que vivi de negativo no hotel foi a falência, porque eu gostava muito de trabalhar lá"

Erival Barroso

Cada fase dessa luta jurídica é guardada em dois envelopes por um ex-segurança do hotel chamado Washington da Silva, 47. "Minha espera já tem a idade do meu filho. Nem os advogados procuram saber mais. O último com quem eu falei me bloqueou no Whatsappp", conta ele, em referência ao filho de 16 anos.

Da esq. para a dir.: Erival, Washington e Robson, apenas três dos funcionários que esperam pagamento
Da esq. para a dir.: Erival, Washington e Robson, apenas três dos funcionários que esperam pagamento Crédito: Marina Silva/CORREIO

Nos dois anos em que passou no hotel, diz ter conhecido uma face violenta do patrão. Certa noite, ele lembra de ter recebido, em uma das duas guaritas do Fronteira, uma ligação de Maldari. Na chamada, o chefe, que soava furioso, exigia que Washington fosse ao quarto de um funcionário e o tirasse de lá.

Minutos antes, ele tinha visto Alfonso enforcar o homem que agora queria longe do Fronteira.

"Eu intervim e tirei ele das mãos de Alfonso. Quando ele foi para o quarto, Alfonso me ligou para que eu fosse expulsá-lo"

Washington

relembra caso de agressão no Fronteira.

Não era a primeira vez que ele testemunhava uma agressão protagonizada por Alfonso. "Ele dava tapa, xingava quando a pessoa fazia algo que ele não queria", afirma ele, que nunca sofreu nada do tipo.

Ninguém denunciou formalmente esses supostos abusos. Na Polícia Civil e no Ministério Público do Trabalho da Bahia, não há registros contra Maldari.

"Tinham medo de perder o emprego e iam viver do quê? Hoje se chegasse um Alfonso aqui ele não se criava", acredita Irlande Souza, 68, que lembra do dia em que o chefe ameaçou jogar uma cadeira nela. "Era estúpido, nasceu para ser domesticado".

Nem todos têm a mesma visão sobre o italiano. "Ele era uma pessoa boa, só tinha o jeito dele", contrapõe uma ex-funcionária, que pede anonimato. E quanto às agressões e ameaças que funcionários dizem ter sido vítimas? "Nunca vi, então não acredito no que as pessoas falaram", ela responde.

Como o império de Maldari ruiu? 

A maioria dos funcionários do Fronteira Resort era de Barra do Pojuca, do outro lado da pista da BA-099 - a Estrada do Côco, construída em 1975. O distrito de Camaçari fica a cinco quilômetros de Itacimirim. Nos anos em que o hotel esteve aberto, 49% da população da cidade não tinha rendimento mensal, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

À época, o único hotel de luxo da região era o Tivoli, antigo Robinson Crusoé, em Praia do Forte, fundado por Klaus Peters. No Fronteira, os homens vestiam farda de linho branco e vinho: calça, blusa e colete. As mulheres, vestidos ou calça e blusa. "Trabalho em hotel há 43 anos e nenhum hotel era igual àquele", afirma Roque Góes, 62, ex-chefe de recepção do hotel, que já hospedou personalidades como Jorge Amado.

Quando as demissões aconteceram, o hotel dava sinais de que não ia bem. Eram outros tempos. O Fronteira não disputava mais a liderança do turismo de luxo só com o Tivoli. Em outubro de 2000, o complexo de Costa do Sauípe entrou para a concorrência.

"Seu Alfonso” decidiu compartilhar a gestão com uma empresa que propôs arrendar o hotel, em 2004. A gestão, aos trancos e barrancos, tentava manter as contas equilibradas. "Mas as coisas não iam bem", lembra uma funcionária. E só pioraram.

A parceria não vingou e a empresa foi embora com a maioria do estoque do Fronteira na bagagem. "Levaram até taça, levaram tudo, tiveram que começar do zero. Pensamos que íamos recuperar, mas não recuperou", recorda Robson, ex-garçom.

Robson, quando participou da construção do Fronteira
Robson, quando participou da construção do Fronteira Crédito: Acervo Pessoal

Logo em seguida, o agravamento do estado saúde de Alfonso, que sofreu um Acidente Vascular Cerebral, levou a família dele ao protagonismo dos negócios. A segunda esposa de Alfonso tentou assumir a gestão, sob protesto dos filhos do primeiro casamento do italiano, segundo funcionários.

A reportagem entrou em contato com a viúva, mas as perguntas enviadas por mensagem não foram respondidas. O espaço segue aberto.

Nos bastidores do hotel, ainda era preciso lidar com um processo movido em 1994 pela antiga Tuma Engenharia (atual Mac), que alegava não ter sido paga pela instalação do sistema de ar-condicionado. Em 2010, a Justiça decidiu passar o território para a Tuma. A decisão ainda é questionada em novos processos de herdeiros.

Um advogado que participou da defesa do hotel relembra a perda do terreno. "A justiça tentou leiloar o imóvel para o pagamento. No leilão, ninguém arrematou, então o juiz passou a posse do terreno. Mas o curioso é que não estava averbado na matrícula do imóvel, só constava o terreno", conta.

Por mensagem, a defesa jurídica do Fronteira afirmou: "Resolvendo-se a questão da propriedade do imóvel penso que será possível equacionar os débitos”. Com a morte de Alfonso Maldari, as dívidas devem ser pagas pelo patrimônio do hotel – e o principal pode ser o terreno onde está o hotel.

A reportagem tentou contato com a Mac Engenharia, mas não obteve retorno.

Quem era Alfonso Alfonso Maldari: italiano que levou luxo a Itacimirim 

Como alguns dos funcionários, Alfonso morava a maior parte do tempo no Fronteira, nos apartamentos 401 e 402. No escritório, tinha porta-retratos com fotos na Itália e chacretes. Às vezes, vinha a Salvador, trazido por um motorista, para uma cantina italiana na Boca do Rio. Quando a filha caçula, fruto do segundo casamento, nasceu, ele passou a se alternar entre Itacimirim e Vilas do Atlântico.

Nascido em Nápoles, no sul da Itália, em 1928, e um dos oito filhos da família Maldari, Alfonso desembarcou na capital fluminense nos anos 70, onde constituiu a primeira família. Na Europa, Maldari vendia pacotes de viagem entre o Rio e Roma e, no novo país, fundou a Rio-Roma.

Alfonso Maldari, ao centro, na Itália
Alfonso Maldari, ao centro, na Itália Crédito: Reprodução/Redes sociais

Maldari descobriu o Litoral Norte ao começar a comercializar trajetos para o Robinson Crusoé. Ele ouviu falar da venda de um terreno em Itacimirim e enxergou uma oportunidade. Veio, então, para a Bahia fundar seu primeiro hotel. Uma das pessoas que o ajudavam era seu irmão, Luigi. Era 1991.

O estrangeiro chegou em um período de reconhecimento do potencial turístico daquela área, considerada naquele ano como uma das “zonas turísticas prioritárias para os investimentos” pelo Governo baiano.

"A ação do Governo em implantar infraestrutura turística contemplou o atendimento dos interesses dos proprietários de terras e dos agentes do mercado imobiliário com a oferta de lotes urbanos e habitação para os grupos sociais de média e alta renda."

Denise Silva Magalhães

Professora da Universidade Federal da Bahia que no Doutorado em Geografia estudou o Litoral Norte

As populações mais pobres do "outro lado da costa", como de Monte Gordo e Barra do Pojuca, prossegue Denise, passariam a trabalhar para atender às demandas da população flutuante de Guarajuba e Itacimirim. A ocupação desses territórios saltou desde 2020, impulsionada pelo boom imobiliário iniciado na pandemia da covid-19.

"Antes da pandemia esse terreno estava avaliado em R$ 27 milhões, com a valorização daqui, com certeza o valor está maior"

Corretor de imóveis

Avalia terreno onde está o Fronteira.

Em 2019, a página do hotel no Facebook voltou a publicar vídeos como se o empreendimento fosse voltar a funcionar. Mas as postagens, compartilhadas pelo marido da viúva de Alfonso, cessaram. Em Itacimirim, quem conhece o Fronteira ou trabalhou por lá duvida de uma reabertura.

No caminho até o que era o resort, outras construções tomam forma – elas estão por toda a parte. Quase escondido entre as novatas, um patrimônio rui aos poucos, entre o que já foi e o que poderá ser.