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Fernanda Santana
Publicado em 30 de junho de 2024 às 05:00
Aos olhos do povo tuxá, há muita memória a ser recuperada. Em 1988, as terras antes habitadas por esses indígenas foram engolidas pela construção da barragem de Itaparica, no norte da Bahia. Na época, o que eles não conseguiram salvar se perdeu na água ou virou peça de museu. >
Mais de três décadas depois, os tuxá pedem a volta dos fragmentos arqueológicos que foram salvos. São materiais com até mais de 850 anos, entre eles restos ósseos de antepassados deles, guardados na reserva técnica do Museu de Arqueologia e Etnologia (Mae) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). >
O conjunto tuxá é uma das quatro coleções etnológicas da instituição, aberta em 1983 dentro do prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, no Largo Terreiro de Jesus, em Salvador. O espaço está a 600 quilômetros dos territórios onde se concentram os tuxá.>
Em junho do ano passado, lideranças dessa etnia tiveram a última reunião para conversar sobre o retorno das 13 peças que estão no museu — a quantidade pode estar subestimada ou não incluir os artefatos danificados pelo tempo, segundo fontes ouvidas pela reportagem. >
O encontro, que repercutiu em pressão a órgãos públicos, era resultado de uma iniciativa de Carlos Etchevarne. O antropólogo e antigo diretor do museu da Ufba tinha recebido, pouco tempo antes, um e-mail de uma jovem indígena tuxá com questionamentos sobre os artigos preservados na instituição. >
O argentino radicado em Salvador era a pessoa certa a ser procurada. Nos anos 80, ele foi um dos arqueólogos que participaram das escavações realizadas onde viviam os tuxá. >
A cidade de Rodelas foi um dos sete municípios inundados pela barragem construída pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf). Por isso, a empresa era obrigada a efetuar identificação de sítios arqueológicos antes que a água expulsasse memórias e moradores. >
Os desterrados se dispersaram por outros estados e pela Bahia, principalmente para Ibotirama e Nova Rodelas (construída próxima da antiga Rodelas). Os arqueólogos, enquanto isso, retiravam da terra os vestígios do passado. >
No trabalho, executado entre 1985 a 1988, os forasteiros analisaram ambientes naturais diferentes, como várzeas e dunas. Logo eles se depararam com pedrinhas que se revelaram restos humanos depositados em diferentes posições; vestígios de carvões de uma fogueira do século 13; cachimbos de barro utilizados em práticas religiosas e sociais; e cerâmicas diversas.>
"A Ufba sempre teve interesse na volta dos materiais coletados à área de origem", conta Carlos Etchevarne, "mas não existia um pedido". Quando questionaram o destino desse material, é porque os tuxá viviam um momento de retomada da própria história.>
Desde criança, Alice Arfer Apako, 22, era incentivada a conhecer suas origens. Historiadores e antropólogos iam e viam do território, e ela tirava quantas dúvidas pudesse. Sozinha, também fazia pesquisas. "Aí me deparei com um artigo de Carlos [Etchervane]", lembra a estudante de Medicina da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). >
No rodapé da publicação que falava sobre achados arqueológicos na terra tuxá, estava o e-mail do professor. Ela decidiu se apresentar. "Sou Alice, indígena curiosa sobre a escavação feita nos sítios ancestrais do meu povo. Esses materiais foram levados para algum museu?", perguntou ela ao professor, no dia 9 de janeiro do ano passado. >
A jovem sabia da existência de artefatos arqueológicos onde morava, mas não que alguns deles estavam em Salvador. Não demorou nem um dia para que Carlos retornasse à estudante. >
Na resposta, ele disse "estar feliz pelo interesse" dela nas peças escavadas, e contou que, no passado, a Chesf até havia se comprometido a construir um museu próximo das novas moradias tos tuxá. Terminada a barragem, a promessa não se cumpriu. >
"Houve tentativas de retornar essa ideia, mas não houve interesse da empresa", contou Carlos à reportagem. A Chesf nega. >
"Temos profundo respeito pela história e cultura dos povos tradicionais. A criação de museus para abrigar materiais resgatados em projetos arqueológicos só é viável quando existe uma instituição que se responsabiliza pela guarda permanente, gestão e manutenção dos acervos", respondeu a empresa, por nota. >
Sem qualquer expectativa de que um plano de museu em Nova Rodelas saísse do papel tantos anos depois das escavações, Carlos procurou o antropólogo Felipe Tuxá, por coincidência primo de Alice, para conversar sobre o e-mail da estudante. >
Há pouco menos de um ano, Felipe, de 34 anos, tinha começado a trabalhar na universidade como o primeiro professor autodeclarado indígena do departamento de Antropologia. >
Três dias depois daquele papo, os colegas Carlos e Felipe organizaram a primeira de duas reuniões sobre o assunto. Alice não pôde participar dos encontros, por estar em Nova Rodelas.>
"A primeira coisa que queríamos era levar Carlos à comunidade, mas isso foi se desdobrando. Eu sou antropólogo e professor e não sabia que esse acervo existia. Imagine… Nós, do sertão, sempre estivemos distantes do que acontecia em Salvador", afirma Felipe. >
Ao descobrir a existência das peças no museu da Ufba, ele tentou ir duas vezes visitá-las. Deu de cara com a porta. Alice também nunca viu o material. "O momento é de empenho para que tenhamos autonomia, que pensemos o que queremos fazer com essas peças, muitas vezes coletadas de modo unilateral", acredita Felipe.>
A Ufba, no entanto, não poderá decidir o futuro desses artefatos. Todo material arqueológico, ou seja, vestígios, bens e outros indícios da evolução no planeta, é de posse do Estado, neste caso representado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). >
Instituições que reservem essas peças tem apenas a guarda temporária delas.O Iphan não detalhou em que fase está a avaliação do pedido, mas afirmou querer marcar uma reunião com líderes tuxá e com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) sobre a proposta de construção de um memorial para receber o material arqueológico. Ainda não há data. A Funai não respondeu.>
A reportagem tentou contato, ao longo da última semana, com a diretora do MAE, a antropóloga Luciana Messeder Ballardo. As perguntas enviadas pela publicação não foram respondidas.>
O plano dos tuxá é que o material arqueológico reservado no museu fique em D'zorobabe, território considerado sagrado por eles e vizinho à aldeia mãe inundada pela barragem. A partir de 2017, eles voltaram a ocupar essa terra, avarandada pelo Rio São Francisco, em um movimento de "autodemarcação". >
No acordo realizado entre a Funai e a Chesf, o reassentamento dos Tuxá deveria ter sido finalizado em 30 de dezembro de 1987, o que nunca aconteceu. A família de Alice, a jovem que deu o pontapé inicial para o possível retorno das peças centenárias, foi uma das que passaram a viver no que chamam de Aldeia Avó, onde agora moram 220 famílias. >
A possível locação do material arqueológico em Zorobabel também pode incentivar novos achados sobre as marcas deixadas por lá: o local é um sítio arqueológico, o que se pode notar mesmo sem as pás, escovinhas e picaretas usadas por arqueólogos. >
Durante banhos no Rio São Francisco, indígenas já se depararam com objetos como cacos de cerâmica e pontas de flechas. >
Em outubro do ano passado, a arqueóloga Cleonice Vergne, que promove pesquisas com os tuxá, auxiliou os indígenas na solicitação feita ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia para que se reconheça o D'zorobabe como sítio arqueológico estadual.>
Para os tuxá, se convencerem o governo, é possível que o retorno dos achados que estão na Ufba seja facilitado. Em abril deste ano, técnicos do Ipac visitaram Nova Rodelas para coletar informações. A solicitação dos tuxá, no entanto, ainda está em análise. >
Para os tuxá, levar o material arqueológico hoje guardado no Museu ao D'zorobabe é comprovar a existência dos tuxá, e dar força ao pleito da demarcação. "Esses achados mostram que somos daqui, que sempre estivemos. Esses materiais são sagrados e nossos elos com os mais antigos", acredita Alice Arfer. >
Em 1561, a existência de povos indígenas nas margens do Rio São Francisco aparece pela primeira vez na literatura. No início do século 17, falava-se em "um índio Rodela", famoso por ter liderado 200 indígenas que lutaram contra os holandeses e mataram 80 inimigos. Esse guerreiro foi batizado, no português, como Francisco Rodela.>
Segundo os escritos do padre jesuíta português Serafim Leite, foi por causa de Francisco que os indígenas da região ficaram conhecidos como "índios rodeleiros". A origem desse nome se perdeu no tempo, mas os indígenas fincaram raízes por lá, com outros episódios de migração forçada, devido a pressões externas.>
No fim do século 19, por exemplo, alguns tuxás que buscavam novas áreas para plantar seguiram Antônio Conselheiro e foram mortos na Guerra de Canudos. >
Se os achados arqueológicos forem devolvidos aos indígenas baianos, não será a primeira vez que isso acontece na história dos museu universitários. >
Em 1987, os indígenas Krahô, habitantes de aldeias no Tocantins, solicitaram a devolução de um machado considerado sagrado que estava no Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP). >
A universidade, depois de meses de negociação, devolveu o objeto por meio de uma concessão, mas permanece com a propriedade do machado, até que seu status de Patrimônio Nacional seja declarado pelo Iphan. Como isso ainda não aconteceu, os krahô voltaram a usar o artefato como antes, em cerimônias religiosas. >
Professor do departamento de Antropologia e Etnologia e Diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Ufba, Marcelo Moura Mello propõe uma questão sobre a devolução de objetos arqueológicos e outros artefatos de povos indígenas: "Eles contam histórias, sim, mas quem está contando essa história através dos objetos?". >
"Uma coisa é ter sua história contada a partir de algo", responde o doutor em Antropologia social, "e outra é contar sua história a partir desses objetos, que muitas vezes podem ser concebidos de formas distintas daquilo que consideramos como objetos, o que muitas vezes não é apreendido pela maioria das pessoas".>