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Maysa Polcri
Publicado em 26 de setembro de 2023 às 05:30
Mais de 60 médicos do Hospital Professor Eládio Lasserre (HPEL), localizado em Cajazeiras II, denunciam que estão com salários atrasados há três meses. O último pagamento foi realizado em agosto e o valor foi retroativo a maio. Os profissionais que trabalham como pessoa jurídica (PJ) são os mais atingidos e a situação fez com que médicos abandonassem os plantões. No diário oficial, publicado na última sexta-feira (22), o Governo do Estado reconheceu que deve mais de R$4,645 milhões à organização que gere o hospital público.
O Instituto Fernando Filgueiras (IFF), organização social sem fins lucrativos, é responsável pela gestão do Hospital Eládio Lasserre. A parceria, no entanto, pode estar perto do fim. Uma seleção pública está aberta para contratar uma nova empresa para operacionalizar as ações do hospital. Além do IFF, a Associação Saúde em Movimento (ASM) faz parte da concorrência.
Na próxima sexta-feira (29), ocorrerá a abertura dos envelopes de proposta técnica e atestado de capacidade das organizações. O Instituto Fernando Filgueiras foi procurado diversas vezes pela reportagem, mas não se manifestou sobre as denúncias dos médicos até a finalização desta reportagem. A ASM também foi questionada sobre a intenção de assumir a gerência do hospital, mas não retornou.
Enquanto a parte burocrática não é definida, médicos que trabalham no hospital sofrem com os salários atrasados. Se, até o final de setembro nenhum valor for repassado, serão quatro meses sem receber. Uma médica que trabalha na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) falou sobre a situação em condição de anonimato.
“O maior atraso é da equipe médica, que é formada por PJs (pessoa jurídica), e de todas as especialidades: cirurgião-geral, emergencista, médicos da UTI e pediatras. Quem tem carteira de trabalho, como os enfermeiros e técnicos de enfermagem, também está com atraso, mas de 15 dias”, revela. Um grupo em um aplicativo de mensagens reúne 64 profissionais que estão com salários atrasados, mas a médica afirma que o número de trabalhadores sem receber é ainda maior.
Diante da falta de pagamentos, o Sindicato dos Médicos no Estado da Bahia (Sindimed) convocou os funcionários contratados como PJ para uma reunião online ontem (25). No encontro, foi determinado, por unanimidade, o estado permanente de assembleia, o que facilita que os profissionais se reúnam de forma mais breve.
Também ficou decidido que o Sindimed enviará um ofício à Secretária de Estadual de Saúde exigindo a normalização dos salários atrasados. Caso isso não aconteça, a possibilidade de restrição de atendimentos não é descartada. Aumento do número de funcionários, mais segurança no hospital e reajuste salarial serão abordados no ofício. Hoje, um médico que trabalha na UTI recebe R$1,5 mil para trabalhar em um plantão de 12 horas na unidade. Na clínica médica, o plantão chega a valer R$1,3 mil aos finais de semana.
O Sindimed foi procurado através da sua assessoria de imprensa, mas não se manifestou sobre as queixas dos médicos. O Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) e o Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (Seeb) disseram não ter recebido denúncias de profissionais do Eládio Lasserre.
Uma publicação da semana passada no diário oficial do Governo do Estado reconheceu, através da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), que deve ao Instituto Fernando Filgueiras R$4.645.242,85. O valor é referente apenas às despesas do mês de julho. A reportagem questionou a pasta sobre a falta repasses e impactos do atraso de salários no atendimento aos pacientes, mas não teve retorno até a finalização desta reportagem. A Secretaria de Comunicação (Secom) do Governo do Estado também foi questionada, mas não se manifestou sobre a dívida com o hospital.
Médicos contam que atrasos de até dois meses são comuns na rotina de trabalho, mas a possibilidade de completar quatro meses sem receber assusta os funcionários. “Quase todo salário do mês que recebemos é referente ao trabalhado há dois meses atrás. Se trabalho em março, por exemplo, recebo o que trabalhei em janeiro. Só que esse atraso está indo além e desorganizando todo mundo”, conta uma médica sobre a insatisfação dos trabalhadores.
Quem procura assistência médica na unidade, enquanto isso, se queixa da demora de até cinco horas para receber atendimento. A aposentada Gerusa Maria Bonfim, de 63 anos, foi até a emergência ortopédica do hospital às 11 horas, dessa segunda-feira, depois de machucar a mão em uma queda. “Os médicos demoraram muito para chamar a ainda atendem mal, nem imobilizaram minha mão. A população não tem culpa se estão atrasando os salários”, reclamou ela, que só foi liberada às 16 horas.
Sônia Machado, 70, por outro lado, não tem reclamações sobre o atendimento. “O problema foi a demora para atenderem meu marido. Chegamos às 11h30 e saímos quase 16 horas. Eles não deram parecer sobre quanto tempo iria demorar e a gente nem pôde almoçar hoje”, falou. Durante a tarde, a emergência do hospital estava lotada e pacientes aguardavam serem chamados na área externa, sem proteção do sol.
Inaugurado em dezembro de 1996 e ampliado em novembro de 2009, o Hospital Professor Eládio Lasserre faz parte da Rede de Atenção à Urgências da Região Metropolitana de Salvador. A unidade possui 144 leitos, sendo 10 de UTI, além de quatro salas de cirurgia.
“A situação caótica que a gente de clínica médica passa atendendo mil pessoas e sem receber um centavo a meses”, desabafou uma médica no grupo de mensagens que reúne funcionários. Segundo eles, não houve posicionamento oficial da organização que gere a unidade desde maio. O Instituto Fernando Filgueiras foi procurado, mas não se manifestou sobre a situação dos funcionários até a finalização desta reportagem.
Enquanto o Sindimed inicia as negociações com a Secretaria de Saúde, médicos do HPEL decidiram, por conta própria, deixar de dar plantões na unidade por conta do atraso nos salários. É o que conta uma médica que conversou com a reportagem. “Várias pessoas, principalmente os cirurgiões, largaram os plantões fixos. O coordenador convidou outros médicos para entrar e o hospital não parou de funcionar por causa disso”, conta.
Um médico que trabalha no hospital há quase dois anos revelou à reportagem que se afastou do hospital durante um mês para cumprir plantões em outras unidades. “Os boletos não param de chegar e eu precisei fazer plantão em outro lugar que saberia que iriam pagar”, conta. Para fechar as contas, ele chegou a pedir dinheiro emprestado. “Colegas pegaram empréstimos no banco. No meu caso, pedi dinheiro para uma amiga”, lamenta.
Para piorar a situação, os funcionários temem a onda de violência que atinge diversos bairros de Salvador. O Hospital Eládio Lasserre fica na divisa entre Cajazeiras II e o bairro de Águas Claras, onde quatro suspeitos foram mortos em uma operação policial na semana passada. “Vivemos uma situação de insegurança muito grande”, lamenta uma funcionária. Em maio do ano passado, dois homens armados invadiram a unidade e assassinaram um paciente que estava internado.
Essa não é a primeira vez que funcionários do Hospital Eládio Lasserre denunciam o atraso nos pagamentos. Em maio de 2015, médicos que ficaram dois meses sem receber decretaram estado de greve e apenas atendimentos de emergência foram mantidos. Mais recentemente, em 2020, funcionários terceirizados também tiveram os salários atrasados em meio à pandemia. Naquela ocasião, foram 15 dias de atraso.
Desde 2017, a situação financeira da unidade de saúde está na mira no Tribunal de Contas do Estado da Bahia (TCE-BA). Um relatório de acompanhamento da execução orçamentária da Secretaria de Saúde apontou que o Hospital Eládio Lasserre acumulava dívidas trabalhistas e previdenciárias por conta dos atrasos nos repasses do Governo do Estado.
“Esta Auditoria entende que os aludidos atrasos nos repasses têm comprometido o bom funcionamento das unidades de saúde, que em vez de utilizar uma parcela dos recursos do contrato para a realização de melhorias nos serviços prestados, tem sido obrigada a destiná-la ao pagamento de juros e multas decorrentes da situação descrita”, pontuou o TCE. O tribunal foi questionado sobre a atual situação do hospital, mas não se pronunciou.
Além do HPEL, o Instituto Fernando Filgueiras é responsável pela gestão de outras duas unidades de saúde em Salvador: Hospital Professor Carvalho Luz, em Nazaré, e o Hospital da Mulher, no bairro de Roma. Na Bahia, o IFF gere a Unidade de Pronto Atendimento de Jequié e o Hospital Regional de Santo Antônio de Jesus.