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Gil Santos
Publicado em 19 de julho de 2023 às 05:30
Representantes do Poder Judiciário e da sociedade civil fizeram uma inspeção nas instalações do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) da Bahia, na Baixa do Fiscal, em Salvador, nesta terça-feira (18), e encontraram paredes mofadas, goteiras, infiltrações e fios expostos. A visita será transformada em um relatório público com o detalhamento das condições da unidade e dos internos. >
O HCT da Baixa do Fiscal é o único Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia e abriga pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes ou que estão internadas provisoriamente enquanto aguardam perícia sobre imputabilidade. A quantidade de internos alterna diariamente, mas atualmente são 211 pacientes, sendo 11 mulheres. >
O juiz Antônio Faiçal Júnior é coordenador do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF) e do Grupo de Trabalho do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) responsável pelo acompanhamento das condições das unidades prisionais no estado. Ele liderou a visita e lamentou as condições do hospital. >
“O HCT é um problema crônico. É um equipamento muito antigo, então, a gente sabe que ele precisa de uma manutenção permanente. São necessários reparos, principalmente na parte hidráulica e elétrica que em algum momento deixam os internos vulneráveis a um incêndio ou situações mais graves”, afirmou. >
A lei 10.216/2001, conhecida como Lei Antimanicomial, que protege os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, determinou o fim dos Hospitais de Custódia e Tratamento no Brasil. O objetivo é tornar o processo mais humanizado, mas esse modelo ainda persiste. O juiz citou dados do Conselho Nacional de Justiça que afirmam que existem cerca de 2 mil internos abrigados nesses hospitais no país, cerca de 10% deles estão na Bahia. >
“A lei visa aplicar outra metodologia de tratamento que não seja concentrar essas pessoas em um hospital de custódia, mas em hospitais gerais com leitos psiquiátricos que abrigariam pessoas em crise. Depois, elas iriam para o sistema prisional comum, ou se fossem declaradas inimputáveis seriam atendidas pelos Caps e tratadas como pessoas que têm transtornos psiquiátricos, e não como criminosas”, disse. >
A visita foi acompanhada também por representantes do Ministério Público, de grupos organizados da sociedade civil, como Tortura Nunca Mais, e pela defensora pública da vara de execuções penais Andrea Tourinho que trabalha há 9 anos no HCT. >
“O principal diagnóstico dos internos é esquizofrenia paranoide. E ao contrário do que pensa o senso comum, a maioria dos casos não é de abuso, estupro ou outros crimes sexuais. Hoje, por exemplo, não temos nenhum paciente que está internado por ato obsceno, temos um por atentado violento ao pudor e 88 por homicídio”, explicou.>
A representante do Ministério Público preferiu não se manifestar. O grupo percorreu as áreas externas e internas do edifício, visitou as galerias e as unidades que ficam no entorno do prédio, como a área administrativa, o campo de futebol, o alojamento dos policiais militares e penais, e o anexo onde fica a cozinha, o refeitório, a lavanderia e os espaços de terapia ocupacional. >
Disputa >
A imprensa foi convidada pelo grupo de trabalho liderado pelo TJ-BA para acompanhar a visita, mas ao chegar ao local os repórteres foram impedidos de entrar na unidade. O juiz Antônio Faiçal Júnior explicou que a Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) faz parte do grupo de trabalho e sabia da visita. >
Enquanto a imprensa aguardava do lado de fora, caçambas carregadas de asfalto e trabalhadores da limpeza entraram no HCT. Cerca de 2h depois, os repórteres tiveram acesso apenas a área externa do edifício, onde buracos estavam sendo tapados às pressas. Foi possível observar vegetação alta, falta de portas e janelas no alojamento dos policiais penais e problemas elétricos na área administrativa. >
A integrante do Conselho Comunitário da Vara de Execuções Penais e presidente do projeto social 1+1 é Sempre Mais que Dois, Bárbara Trindade, contou que visitas as unidades prisionais uma vez por mês, ou em alguns casos a cada 15 dias, e que houve algumas mudanças no HCT desde a última visita. >
“Estamos aqui frequentemente e são inúmeros os problemas da unidade. O pouco que eles fizeram foi porque sabiam da inspeção e da presença da imprensa. Existe uma falsa sensação de que a imprensa teve acesso a visitação, mas na prática eles impediram que vocês [jornalistas] tivessem acesso a fiscalização de um espaço que é mantido com dinheiro público”, disse. >
Funcionários tentaram impedir a reportagem de registrar alguns dos problemas visíveis. Durante a inspeção, a diretoria e a coordenação da unidade não foram ao hospital para receber o grupo de trabalho, e servidores informaram que não tinham autorização para comentar sobre as condições do prédio. Procurada, a Seap não se manifestou. >
Lei Antimanicomial >
Na década de 1960, o psiquiatra italiano Franco Basaglia dirigia um hospital psiquiátrico com mais de 1,2 mil pacientes internados. Ele era crítico da psiquiatria tradicional e da forma como operavam os hospícios, na lógica de isolar o paciente num manicômio à base de fortes medicações, vigilância ininterrupta, choques elétricos e camisas de força.>
O médico desenvolveu uma abordagem mais humanizada em que os pacientes foram voltando aos poucos à vida em comunidade. O método de Basaglia deu tão certo que, com o passar dos anos, o hospício psiquiátrico foi fechado. A partir de 1973, a abordagem passou a ser recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).>
No Brasil, em 1978, na Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, profissionais denunciaram as condições de degradação humana em que operava a maioria dos hospitais psiquiátricos no país. A crise, em pleno regime militar, levou à demissão da maioria dos denunciantes. >
A discussão ganhou força e um projeto de reforma psiquiátrica foi apresentado em 1989, mas a lei só foi aprovada em 2001. A diretriz principal é a internação do paciente somente se o tratamento fora do hospital se mostrar ineficaz.>
Em 2002, o Ministério da Saúde determinou a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), em substituição aos hospitais psiquiátricos. São espaços para acolhimento de pacientes com transtornos mentais, em tratamento não-hospitalar. A função é prestar assistência psicológica e médica, visando a reintegração dos doentes à sociedade. >