Facções no sul do estado: guerra leva terror à Costa do Descobrimento

Desaparecimentos, execuções e ‘tribunais do crime’ são algumas das ações de traficantes na região

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  • Bruno Wendel

Publicado em 16 de setembro de 2024 às 05:00

Mistério: turistas completam 25 dias de desaparecidos em Eunápolis
Mistério: turistas completam 25 dias desaparecidos em Eunápolis Crédito: sites A Gazeta Bahia / Radar News 

Homicídios, roubos e assaltos. Os reflexos da escalada da violência são sentidos em toda a Bahia, tornando a insegurança uma marca do estado. Além da capital, várias regiões convivem com os efeitos do narcotráfico, entre elas a Costa do Descobrimento, zona turística no sul baiano. Famosa por suas belezas naturais e riquezas históricas, é cenário também para crimes bárbaros e mistérios, que desafiam a polícia baiana, como o desaparecimento recente de dois turistas de São Paulo na cidade de Eunápolis. Nesta segunda-feira (16), o sumiço deles completa 25 dias.  

No último dia 24, Vitor Benites Teixeira, de 28 anos, e Lucas Ferreira de Sousa, de 22, estavam em um bar na região central de Eunápolis, quando decidiram ir de carro para um paredão no bairro Juca Rosa. De acordo com os moradores, o local da festa é uma comunidade conflagrada pelo tráfico: os confrontos são entre as facções Primeiro Comando de Eunápolis (PCE), que ainda predomina na cidade, e Mercado do Povo Atitude (MPA), com autuação maior em Porto Seguro. Quatro dias depois, o carro alugado pelos turistas foi encontrado carbonizado.   

Procurada, a Polícia Civil informou que “diligências continuam sendo realizadas para localizar os turistas e esclarecer o caso”. “Medidas judiciais sigilosas estão em andamento e demais informações não podem ser divulgadas”, diz a nota. No entanto, fontes ligadas à Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP) apontam que o caso seria um sequestro, seguido de homicídio e ocultação de cadáver.

A Costa do Descobrimento tem um território de aproximadamente 12 mil quilômetros quadrados, sendo a área composta por oito municípios: Belmonte, Eunápolis, Guaratinga, Itabela, Itagimirim, Itapebi, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Uma região com uma grande diversidade de paisagens com praias propícias para a prática de esportes náuticos, rios caudalosos e de água limpa, restingas e manguezais preservados, sendo o segundo destino turístico do estado e o maior parque hoteleiro da Bahia. 

A mesma costa, porém, serve hoje como rota para o escoamento de drogas produzidas na região amazônica e no Paraguai, que abastecem o mercado nacional e internacional. As facções criminosas disputam o controle dessas rotas e utilizam a violência como meio de garantir sua soberania. Segundo o especialista em segurança pública, o professor Luís Lourenço, do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), essas mudanças acontecem “justamente porque não se espera ou a polícia tende a não esperar esse tipo de transformação”.   

“A região amazônia e as fronteiras com o Paraguai são muito porosas, então elas tendem a facilitar bastante a entrada dessas mercadorias no território brasileiro, justamente por essa porosidade. Você não tem como fazer uma fiscalização tão efetiva de uma fronteira tão grande com imitações orçamentárias de controle que a gente tem. Então, muito provavelmente os melhores e mais efetivos roteiros da droga hoje que circulam no mundo não são acessados pela polícia. Se fosse, a gente teria um desabastecimento e ao nível global desses mercados, o que não acontece. Eles são muito bem irrigados por grandes quantidades de droga”, explica Lourenço. 

Segundo o Atlas da Violência 2024, divulgado neste ano, na Bahia, praticamente todos os municípios litorâneos possuíam taxas acima de 47 homicídios estimados por 100 mil habitantes em 2022. Porém, dos 417 municípios, somente 18 possuíam mais de 100 mil habitantes – aproximadamente todos com taxas acima da média do estado (38,0). Entre alguns municípios da região Sul com taxas de homicídio elevadas estão Eunápolis (59,8), Ilhéus (59,3), Teixeira de Freitas (57,8), Porto Seguro (49,9) e Itabuna (47,7). 

Paulistas sequestrados   

Uma histórica cercada de segredos, mistério, personagens, mortes e, acima de tudo, a pergunta: o que aconteceu com Vitor e Lucas? Segundo moradores da região, os paulistanos chegaram em Eunápolis no dia 22 de agosto e passaram a conhecer os bares e praias com um amigo, que os recebeu em casa. "Algumas pessoas falam que os turistas conheceram esse amigo em uma viagem ao Paraguai, mas nada confirmado pele polícia. Os familiares não falam muita coisa, mas deixaram claro que nenhum deles é envolvido com coisa errada", conta a fonte.

No dia do desaparecimento (24/08), o amigo voltou para casa e deixou os turistas na companhia de quatro mulheres, que lhes foram apresentadas por uma garçonete de um bar na Avenida Norte Sul, bairro de Centauro, área nobre da cidade. "Desde então, os turistas não voltaram para a casa dele e não responderam mensagens e ligações. À polícia, as cinco mulheres disseram que eles foram sozinhos para o paredão em Sarapinga, uma localidade no bairro Juca Rosa, próximo ao Conjunto Penal de Eunápolis", relata um morador. Ainda segundo ele, na festa, Vitor e Lucas foram sequestrados por homens armados, que teriam confundido eles com traficantes rivais. Em 27 de julho de 2020, no mesmo bairro, quatro jovens foram levadas por traficantes do PCE e até hoje não foram localizadas (leia mais abaixo).   

Vitor Benites Teixeira, 28, e Lucas Ferreira de Souza, 22
Vitor Benites Teixeira, 28, e Lucas Ferreira de Souza, 22 Crédito: Reprodução I Radar News

No dia 28 do mesmo mês, a Polícia Civil encontrou o carro alugado pelos turistas, um GM Onix Sedan carbonizado, em uma mata no bairro Vila Olímpica. No dia seguinte (29/08), no bairro vizinho de Alecrim I, a polícia chegou a dois suspeitos de envolvimento no sumiço, um deles Gustavo dos Santos Oliveira, 21, que morreu em confronto – ele tinha mandado de prisão aberto por cárcere privado.  Já Wesley Félix do Nascimento, 25, foi preso. Ele estava com uma tornozeleira eletrônica. Um terceiro comparsa conseguiu escapar do cerco.  

Já no dia 30, durante novas buscas, um cachorro farejador da polícia indicou um trajeto que teria sido feito por Vitor e Lucas, após o animal, especialista em localização de pessoas, farejar o cheiro dos turistas em vestuários entregues pelas famílias. Em uma mata fechada, no bairro Arnaldo Moura, o cão levou os agentes até um local onde, possivelmente, serviu de cativeiro das vítimas. No local, foram encontradas roupas queimadas, bitucas de cigarro e disparo de espingarda em uma árvore.   

Uma quarta pessoa envolvida no sumiço de Vítor e Lucas foi localizada pela polícia, no dia 05 deste mês. Trata-se de Wesley Jefferson Silva, morto durante confronto. Segundo fontes da SSP, ele era liderança de uma das facções que atuam na cidade e tinha dois mandados de prisão em aberto, expedidos pela Justiça de Minas Gerais.  

Servidora municipal

Brutalidade. Foi o que fizeram com a servidora municipal de Porto Seguro Camila Simião Dantas, de 27. Depois de três dias sem o paradeiro, o corpo dele foi localizado no dia 9 deste mês, no distrito de Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália, em uma área de vegetação, com marcas de tiro, golpes de faca e sinais de espancamento.  Apesar da atrocidade, ainda não há nada que indique que a morte foi uma ação do tráfico, a não ser a crueldade.  

Corpo de servidora municipal é encontrado com requinte de crueldade
Corpo de servidora municipal é encontrado com requinte de crueldade Crédito: Reprodução/Redes sociais

Camila foi vista com vida pela última vez no dia 7, durante uma festa no bairro de Casas Novas. Lá, a servidora foi abordada por homem, com quem deixou o local e desapareceu. Acionada, a polícia passou a fazer diversas buscas na região, até que três dias depois o corpo foi achado já em estado de decomposição.  

De acordo com os moradores,Camila foi morta em outro local. “Segundo os policiais, o corpo tinha sido enterrado, mas, devido às buscas, foi desenterrado e ‘desova’ aqui para despistar”, conta um morador de Santa Cruz Cabrália.  

A reportagem procurou a PC para saber se alguém foi preso, quais circunstâncias e se a investigação leva em consideração todas as possibilidades, inclusive a de relação do crime com o tráfico. Em nota, a PC disse apenas que "oitivas e diligências seguem em andamento para localizar o autor do crime" e que "imagens de câmeras de vigilância poderão auxiliar na investigação". 

Casal carbonizado  

Um caso de extrema violência atribuído ao PCE chocou os moradores e turistas na Costa do Descobrimento em 15 de outubro do passado. Neste dia, o casal Carlos André dos Santos, de 29, e Ana Julia Freire dos Santos, de 22, foi encontrado morto a tiros em uma estrada vicinal, na Aldeia Xandó, localizada na Estrada de Caraíva, em Porto Seguro. O carro usado pelo casal foi carbonizado. Em cima da carcaça do veículo, a polícia entrou um bilhete: “PCE É BALA”.  

De acordo com as investigações da Polícia Civil na ocasião, Carlos fazia parte de uma facção, mas o nome do grupo criminoso não foi revelado. No entanto, moradores disseram que ele “tinha desavença com o PCE”, sugerindo a ligação dele com o MPA. Carlos era investigado pela morte de Francisco Silva Almeida, conhecido como “Tiquinho”, de 35 anos, baleado na cabeça com vários tiros no dia 23 de setembro de 2022. Na ocasião, não havia informação se a vítima era pertencia à facção rival.  Ana não possuía antecedentes criminais.  

Casal foi encontrado com marcas de tiros
Casal foi encontrado com marcas de tiros Crédito: Reprodução

Carlos e Ana eram de Eunápolis. O casal foi passar um feriado no litoral de Porto Seguro e voltava para o município quando foram emboscados. Carlos usava o carro incendiado para trabalhar como motorista por aplicativo. Já Ana era funcionária de uma autoescola.  

Sobre o inquérito, a Polícia Civil informou que a “investigação em andamento e os desdobramentos não estão sendo divulgados”. 

Jovens desaparecidas   

Outro caso que ainda é um mistério para a polícia, já dura mais de quatro anos. No dia 27 de julho de 2020, após participarem de uma festa em um barco com traficantes do MPA na cidade de Porto Seguro, uma jovem e três adolescentes - duas delas irmãs - desapareceram na cidade vizinha de Eunápolis.  Em um vídeo gravado e postado numa rede social, uma das garotas aparece fazendo um gesto alusivo à facção MPA, mas logo é alertada pela irmã.  

Depois da festa, as quatro foram para a casa da Cibele Rocha Melo, 17 anos, que morava com a irmã, Maria Eduarda Oliveira da Rocha Mello, 15. As outras duas garotas, Jheniffer Amorim Santos, 18, Kethelin Ferreira Fortunato, 17, são de Itabela, cidade também da Costa dos Coqueiros.  

Um dia antes do sumiço delas, vídeos circularam em redes sociais mostrando as garotas dançando e se divertindo com traficantes em um rio no distrito de Trancoso, litoral sul de Porto Seguro. As imagens, feitas pelos próprios bandidos, foram compartilhadas em grupos de aplicativo de celular. No dia seguinte, após voltarem para Eunápolis, e se reunirem na casa de uma delas, no Juca Rosa, as meninas foram levadas por um grupo de homens.  

Na ocasião, a polícia fez busca numa mata, onde traficantes usavam com frequência para torturar e matar rivais, sem sucesso. Há suspeita de que no local pode haver um cemitério clandestino. A reportagem pediu à PC um posicionamento quanto à atualização do caso. “Diligências continuam sendo realizadas para localizar as vítimas. Dois suspeitos de envolvimento no desaparecimento foram presos provisoriamente e liberados posteriormente pela Justiça. As investigações estão sendo aprofundadas e os desdobramentos não estão sendo divulgados”, diz nota.  

Posicionamento  

A reportagem pediu um posicionamento à Secretaria de Segurança Pública (SSPBA) e à Polícia Militar (PMBA) sobre como tem sido feito o enfrentamento do narcotráfico na região da Costa do Descobrimento, mas não há respostas até a publicação desta matéria.  

Para o professor Luís Lourenço, do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedade (Lassos) da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é preciso que as forças de segurança atuem com inteligência para chegar aos pontos de distribuição no estado. “A fronteira, eu acho que é ainda complicado, mas a identificação desses pontos nodais, essas cidades, esses entroncamentos, aonde chegam as drogas para serem distribuídas, me parece um caminho mais importante, interessante, para tentar dificultar no começo em larga escala das drogas”, pontua.