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Thais Borges
Publicado em 10 de março de 2024 às 16:00
O envio de uma expedição comandada pelo coronel Moreira César a Canudos, em março de 1897, por parte do então presidente interino Manuel Vitorino, tinha um objetivo bem determinado: acabar com o movimento messiânico liderado por Antônio Conselheiro. O desfecho esperado pelos militares que ocupavam o governo federal, porém, foi diferente - ou, ao menos, adiado.
Moreira César, que era conhecido como ‘Corta Cabeças’ pela fama de decapitar opositores, acabou morto no dia 4 de março; a tropa de 1,2 mil soldados fugiu e deixou um rastro de sangue. Não seria daquela vez que Canudos seria destruída - apenas a quarta expedição, em outubro daquele ano, teve sucesso. O que permaneceu sem respostas por mais de 120 anos, porém, foi o que teria acontecido com o corpo do coronel.
Agora, 127 depois, esse mistério foi finalmente solucionado por uma pesquisa conduzida pela pesquisadora Cristiane Costa, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o professor Jose Antonio Xexeo, doutor em Engenharia de Sistemas e Computação e docente do Instituto Militar de Engenharia.
Eles encontraram quatro telegramas criptografados em pastas guardadas no Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro (RJ). Essas correspondências eram trocadas entre os militares que estavam aqui na Bahia e oficiais do antigo Ministério da Guerra, no Rio.
"Quando você fala em segredo, a gente se anima. Fiquei com aquilo na cabeça: 'eu tenho que descobrir esses telegramas'. O meu trabalho foi contextualizar tanto com base no que Euclides (da Cunha) dizia quanto com base em outras testemunhas o que os militares estavam falando", explica a professora Cristiane Costa. O artigo com as descobertas foi publicado no mês passado.
Os telegramas não tinham assinatura, assim como exigiam uma chave para que fossem decodificados. No artigo, os professores explicam que isso era feito para garantir que informações sensíveis permanecessem confidenciais, uma vez que o telégrafo deixa mensagens expostas. O problema é que, por vezes, as chaves se perdiam. A troca de correspondências aconteceu em 20 de março de 1897, 20 dias após a morte do coronel.
Era uma conversa entre dois generais: Arthur Oscar de Andrada Guimarães, comandante do Segundo Distrito Militar, em Recife (PE), e o ajudante-general do Exército, general Bibiano Sérgio Macedo de Fontoura Costallat, que estava no Rio de Janeiro. Havia um medo geral de que os ingleses conseguissem ter acesso às correspondências do Exército brasileiro. Isso porque a Inglaterra era vista como um dos países interessados na volta da monarquia no Brasil. A República brasileira era muito recente - datava de 1889 - e o movimento liderado por Antônio Conselheiro era monarquista.
"Nos telegramas, eles dizem que o corpo de Moreira César foi abandonado, que a tropa fugiu e que largou os mortos lá. Alguns foram decapitados, outros foram deixados em paus. Mas Moreira César foi deixado para os urubus pela ameaça que ele representava. Foi uma vingança", conta a professora. A ordem foi dada pelo próprio Conselheiro.
Cortador de cabeças
Canudos é como ficou mais conhecido o Arraial de Belo Monte, fundado pelo beato Antônio Conselheiro, que pregava um catolicismo diferente e que passou a atrair os sertanejos, às margens do Rio Vaza-Barris. Chegando a ter 5,2 mil casas, estima-se que a comunidade pudesse ter entre 25 e 30 mil habitantes desde quando foi fundada, em 1893. Lá, não havia diferença social, uma vez que viviam um modelo comunitário de subsistência.
A comunidade passou a incomodar muita gente: oligarcas reclamavam de perderem seus trabalhadores para esse novo estilo de vida; padres alegavam que os fiéis tinham se tornado fanáticos e o governo se incomodava porque entendia que Canudos ameaçava a República proclamada poucos anos antes.
Enquanto o movimento conselheirista crescia, Moreira César despontava como um oficial famoso e respeitado no Exército. Anos antes, entre 1893 e 1895, ele promoveu o massacre da Revolução Federalista, em Santa Catarina. Por isso, para parte das Forças Armadas, era o provável sucessor do presidente Floriano Peixoto.
A fama sobre seus métodos também o antecedia: 'Corta-Cabeças' veio de sua atuação com os rebeldes, que recebiam a punição de terem suas cabeças degoladas. "Ele era cotado para ser o presidente do Brasil e, ao mesmo tempo, era muito temido. Euclides da Cunha o odiava, dizia que era um psicopata, que não tinha limites", diz Cristiane.
Por isso, uma derrota em uma batalha liderada por ele era impensável. Ninguém imaginaria que mais de 200 pessoas morreriam, inclusive dezenas de oficiais. "Eles estavam com canhões e armas poderosas. O pessoal de Canudos usava arma de matar passarinho", acrescenta.
Para justificar a derrota, houve uma onda de mentiras - ou, como são chamadas hoje, de fake news - disseminadas. A principal teoria falsa era de que Canudos seria um laboratório de uma conspiração para restaurar a monarquia no Brasil, patrocinada pela Inglaterra e outras potências. Esconder os erros cometidos na guerra por parte do Exército incluiu, por exemplo, afirmar falsamente que a população em Canudos tinha sido treinada por generais italianos e que teria armas nunca vistas no Brasil.
Pesquisa
O interesse pelo tema de pesquisa começou há alguns anos, quando a professora Cristiane encontrou um artigo que citava um exemplar de Os Sertões que tinha sido do general Dilermando de Assis, o assassino de Euclides da Cunha. "Aquilo me chamou atenção, porque o leitor matou o autor. Consegui ter acesso a esse exemplar único e comecei a mapear tudo que ele tinha sublinhado, quais os comentários", lembra.
A partir do livro de Assis, ficou evidente para ela era justamente o desgosto que os militares tinham por Os Sertões - o próprio dono do exemplar foi general. Considerado um livro de denúncia, a obra tinha incomodado o Exército. A Dilermando, inclusive, uma das coisas que incomodava era o retrato que Euclides da Cunha havia feito de Moreira César.
Todo esse estudo levou dois anos. Depois, ela passou mais um ano em busca das informações sobre Moreira César. Para decifrar os telegramas, foram necessários três meses de trabalho.
Segundo o professor José Antônio Xéxeo, a técnica usada pelos militares na troca de correspondência, porém, era muito simples. Era um sistema que chegava a ser rudimentar - nos moldes do Código Morse. Assim como, no código, letras são trocadas por símbolos, nos telegramas, letras eram trocadas por outras letras. Assim, ‘AEO’ poderia virar ‘JKY’ - numa frequência aleatória.
No caso dos telegramas, o professor identificou que as letras Z, H, K e U eram muito prevalentes. Por isso, os indícios são de que elas substituiriam as vogais A, E, O e possivelmente as consoantes R ou S. "Por coincidência, os quatro telegramas usavam o mesmo sistema. Na época, o Exército não tinha tecnologia nessa área de criptografia para fazer algo mais difícil de ser decifrado”, conta.
Para ele, é provável que o temor dos brasileiros - de que os ingleses tenham conseguido interceptar as mensagens - realmente tenha se concretizado. "Não deveria ser assim, porque eles estavam tratando de comandantes da tropa e aquilo era considerado uma guerra", pondera.
As mensagens ficaram criptografadas por tanto tempo não tanto pelo nível de dificuldade no processo de decodificação, mas pelos desafios para encontrar os documentos. "Os historiadores não tinham encontrado os documentos, porque não tinha digitalização e tinha um pouco mais de trabalho braçal. Muitas coisas podem passar despercebidas", opina o professor, que acredita que a maior surpresa revelada pelos telegramas foi justamente a debandada do Exército.
Tiros
Na família da secretária Josefa Cardoso, 58 anos, o nome de Moreira César ainda é lembrado por uma razão bem particular: seu bisavô, Jerônimo Modesto do Valle, chamado popularmente de Jeromão, contava que tinha matado o coronel. Moradora de Canudos, ela cresceu ouvindo seus antepassados narrarem histórias sobre o arraial e sobre as batalhas na região.
"Meu avô dizia que o pai dele, meu bisavô, tinha atirado e acertado um tiro em Moreira César. Não sabia se ele tinha morrido desse tiro, mas se sabia que era ele pelos símbolos que usava na farda", conta.
Por um tempo, durante a ditadura militar, mesmo na cidade de Canudos, as histórias do arraial foram pouco difundidas. Mas desde o retorno da democracia, em meados dos anos 1980, além de outros marcos como a chegada do campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e a instalação do Instituto Popular Memorial de Canudos, muito desse passado foi resgatado na memória dos atuais habitantes.
"O que muito se comenta é sobre a tirania de Moreira César, que chegou em Canudos matando muita gente, até tomar esse tiro no rio. Jeromão foi um dos sobreviventes e dizia que matou Moreira César, mas não tinha como provar, mas pode ter sido ele", explica.
Jeromão, seu bisavô, era considerado um dos homens de confiança de Antônio Conselheiro. O avô dela, Manoel Jerônimo, chegou a ser contemporâneo da guerra, mas não entrou em combate. Adolescente, ele chegou a ser atingido por uma bala no braço estando em casa.
Os documentos encontrados pelos professores agora, para Josefa, são uma forma de oficializar o que escutava de seus antecessores. A comprovação de que Moreira César foi deixado para ser devorado por urubus, por exemplo, ainda representa um relato comentado ainda hoje por moradores de Canudos.
"Acho muito interessante que se comprove o que meus antepassados falavam. Ele (Moreira César) vinha com muita sede, matando muita gente e acabou levando a pior. Era muito temido e considerado muito frio, mas a bravura dos conselheristas o derrotou", acrescenta.
No artigo dos professores Cristiane Costa e José Antonio Xexeo, o mistério sobre quem matou Moreira César é citado como parte do imaginário popular. Há quem diga, como o historiador José Calasans, que o tiro fatal pode ter sido dado até por um subordinado, já que o coronel tinha inimigos até entre a tropa.
Presente
A grande contribuição da pesquisa, na avaliação da professora Cristiane Costa, é conseguir entender exatamente o que aconteceu naquele dia de combate - desde o momento em que Moreira César disse 'vamos almoçar em Canudos' até o dia seguinte, quando a tropa fugiu. "Tem quase um filme do que aconteceu nessas 24 horas", pontua.
Em sua pesquisa no Arquivo Histórico do Exército, a professora Cristiane chegou a se deparar com documentos da década de 1940 que ordenavam que toda a documentação sobre Canudos fosse reunida, com o objetivo de fazer um livro 'vingador' - que reescrevesse a história.
"Eles queriam um livro que se vingasse do que eles consideravam que eram as mentiras e exageros de Euclides da Cunha, essa mancha. Porque se você lê Euclides da Cunha, você fica contra o Exército. Eu já encontrei oito tentativas de reescrever Os Sertões".
Apesar de ter sido dizimada há quase 130 anos, a história de Canudos segue viva, como defende a pesquisadora. "Canudos não acaba. A cada vez que tem uma invasão militar numa comunidade, num complexo de favelas, a história de Canudos se repete. Cada vez que se tem uma teoria da conspiração criada por militares para jogar uma cortina de fumaça em um erro deles, Canudos se repete. Cada vez que a imprensa embarca em fake news, Canudos se repete", reforça Cristiane.
ENTENDA A CRONOLOGIA DE CANUDOS
13 de março de 1830
Nasce Antônio Vicente Mendes Maciel, no Ceará. Nos anos seguintes, ele trabalharia como professor, caixeiro e escrivão de um juiz. Depois de ser abandonado pela esposa, nos anos 1860, ele se torna um peregrino. Costumava fazer pregações e prestar penitências, sempre acompanhado de um grupo que o seguia em suas caminhadas.
1870-1875
Neste período, Antônio Maciel passa a ser conhecido como Antônio Conselheiro, principalmente pelos seus sermões, que ficaram conhecidos como ‘conselhos’. Enquanto peregrinava por estados como Sergipe e Bahia, seu grupo de seguidores só aumentava.
1893
Após anos de peregrinação, Conselheiro e seus seguidores fundam uma comunidade no povoado de Canudos, às margens do rio Vaza-Barris. Desde o início, o Arraial de Belo Monte contava com milhares de residentes. Lá, passaram a viver com uma lógica de subsistência em que não existia mais propriedade de terras e tudo que era produzido era comunitário. A comunidade se torna autossuficiente, autônoma e independente, o que logo passaria a incomodar proprietários de terras, padres locais e o próprio Estado. Para os cerca de 30 mil sertanejos que foram viver lá ao longo dos anos, Belo Monte representava uma alternativa de vida longe da seca, da fome e de outras privações.
Novembro de 1896
Ocorre a primeira expedição militar contra Canudos, formada por recrutas das forças da Bahia. Depois de uma emboscada dos conselheiristas em Uauá, as tropas são obrigadas a desistir.
Janeiro de 1897
O Estado da Bahia promove a segunda expedição militar, com 609 soldados e 10 oficiais. Eles lutam contra os conselheiristas por dois dias, até se retirarem por não terem condições de avançar na serra do Cambaio.
4 de março de 1897
Com 1,3 mil soldados e sob o comando do coronel Antônio Moreira César, acontece a terceira expedição contra Canudos, agora patrocinada pelo governo federal. Mais uma vez, os militares fracassam. Moreira César é morto.
Junho a outubro de 1897
Acontece a quarta expedição contra Canudos. Antônio Conselheiro, atingido por estilhaços em 6 de setembro, morre no dia 22 do mesmo mês. Em 5 de outubro, os militares incendeiam as 5,2 mil casas e explodem duas igrejas. No dia seguinte, Conselheiro é degolado e sua cabeça é enviada a Salvador.
2 de dezembro de 1902
Euclides da Cunha publica o livro Os Sertões, em que narra o que os acontecimentos da Guerra de Canudos.