Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Nilson Marinho
Publicado em 17 de março de 2025 às 05:00
Carmen Damasceno, de 52 anos, deixou sua terra natal, o Quilombo Tabuleiro da Vitória, em Cachoeira, em 1993, rumo ao Sudeste do país. O destino era São Paulo, um estado que já estava no roteiro de muitos familiares, amigos e conhecidos que também nasceram naquele local. Era para lá que eles iam, seja para a capital ou para cidades do interior, quando as coisas apertavam. E elas sempre apertavam, já que, no quilombo, era possível apenas viver da agricultura de subsistência, pesca e mariscagem na Baía do Iguape. A opção era plantar e pescar para comer e, às vezes, vender por alguns trocados, o que nem sempre era suficiente para se manter e alimentar toda a família.>
A intenção de Carmen era passar, no máximo, um ano no novo destino, mas seus planos foram atropelados pela necessidade. No final das contas, sua temporada de até 12 meses transformou-se em 24 anos de moradia. Em São Paulo, casou-se com um conterrâneo do mesmo quilombo, teve um filho e trabalhou em uma padaria até decidir voltar ao seu torrão natal em 2016.>
Ao assentar as malas no Tabuleiro da Vitória, percebeu que muita coisa ainda continuava no mesmo ritmo. “Na década de 90, só tinha maré e roça, e eu não queria isso para mim. Acho que meu pai também não queria. Minha irmã já morava em São Paulo, então fui para lá. Trabalhei, estudei, formei minha família e, depois de muito tempo, decidi voltar. A cidade grande cansa depois de um tempo”, relembra.>
“Quando eu voltei, percebi que pouca coisa havia mudado. Eu sempre vinha para cá nas férias, então acompanhava as mudanças, mas as oportunidades continuavam escassas. Até hoje, alguns jovens ainda saem para São Paulo e Rio de Janeiro porque aqui não tem muito o que fazer”, completa.>
Além da mariscagem, pesca e plantio, sobretudo de banana, mandioca e quiabo, boa parte dos moradores do quilombo já criava galinhas caipiras soltas nos topos de morros e serras que compõem a região. Os animais, assim como seus ovos, eram para consumo próprio. Não havia, por exemplo, a ideia de que a ave criada de forma solta ou semi-intensiva, com alimentação natural, poderia ser uma boa fonte de renda. Além disso, o fato de serem criadas em uma região quilombola, com forte identidade cultural, poderia agregar ainda mais valor ao produto.>
Avicultura quilombola >
Em 2023, um projeto desenvolvido pela Votorantim Cimentos, que opera a Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo, levou para a comunidade um programa de avicultura dentro do Programa ReDes, do Instituto Votorantim. Foram doadas 30 aves da raça para 26 famílias da Associação de Mulheres do Quilombo Tabuleiro da Vitória. >
Para receber os animais, foram construídos galinheiros nos terrenos das famílias contempladas, que também receberam ração durante um ano. Uma zootecnista acompanha o desenvolvimento das atividades, orientando e tirando dúvidas dos criadores. As aves são criadas em um modelo semiaberto, com galpões rústicos e áreas de piquete que permitem livre movimentação, garantindo um padrão de qualidade característico da criação caipira. >
“O projeto nasceu de uma aptidão já desenvolvida pela comunidade. Muitas pessoas já criavam galinhas nos terrenos de suas casas. Quando o projeto foi selecionado, ele partiu dessa realidade. Não só esse, mas também outros projetos que desenvolvemos no território surgiram a partir dos sonhos e aptidões que já estavam sendo trabalhados na comunidade. Com essa proposta, colocamos a ideia no papel e buscamos profissionalizá-la”, explica Guilherme Moro, analista de Sustentabilidade e Transformação Social da Usina Hidrelétrica Pedra do Cavalo. >
O projeto foi pensado para o médio e longo prazo. Durante seu planejamento, foram analisados pontos como a construção dos galinheiros, a capacidade ideal de acordo com o número de galinhas que cada estrutura poderia comportar e a escolha da melhor alimentação para otimizar a produção. Neste caso, o sorgo foi identificado como um complemento nutricional eficiente. >
“O projeto foi desenvolvido com atenção a cada detalhe, incluindo a construção de uma estrutura adequada para o bem-estar das aves. Os galinheiros possuem suporte de lona para proteção contra chuvas e frio, que pode ser ajustado conforme a necessidade”, destaca Moro.>
Geração de renda >
Ao chegar de São Paulo, Carmen tornou-se dona de casa, passando a viver com a filha caçula, ainda menor de idade, o marido e o neto. Vivendo com um auxílio do Governo Federal, ela ajudava o companheiro no plantio. Ele, além de cultivar, também presta serviços em fazendas da região. >
“Quando o projeto me foi apresentado, fiquei com um pé atrás. A gente nunca sabe se um projeto realmente vem ou não. Mas meu marido sempre gostou de criar galinhas – ele já criava algumas. Perguntei se ele me ajudaria e resolvi entrar. E acabei gostando. Para mim, não foi tão difícil porque já estávamos acostumados a criar galinhas. Mas, com o tempo, virou um compromisso, uma rotina. Acordar, dar ração, olhar os animais… Você cria um vínculo com eles”, conta. >
Hoje, a criação de galinhas permite a venda de ovos, garantindo uma renda extra para a família. Parte da produção vai para a feira livre de Cachoeira, que acontece aos sábados, e outra parte segue para Salvador, onde os ovos caipiras são bem valorizados. Atualmente, Carmen possui 60 aves, algumas ainda jovens. Sua produção semanal, no ápice da produtividade das galinhas, chega a duas placas de ovos, com 30 unidades cada, vendidas a R$ 30 por placa – preço padronizado entre os produtores do quilombo para evitar concorrência desleal. Desde a implementação do projeto, a avicultura gerou R$ 68.738,25 para as famílias quilombolas, segundo cálculos da iniciativa.>
Outra beneficiada pelo projeto foi Cleide Santos, de 45 anos. Antes, ela trabalhava com o plantio, em sete tarefas de terra, junto ao marido. Também atuava na pesca, completando a renda com um benefício do Governo Federal. >
“Eu plantava banana, mandioca e quiabo e vendia em Cachoeira, nos finais de semana. Mas essa renda não era suficiente para sustentar a casa, era só um complemento”, diz.>
Ela também criava galinhas, mas apenas para consumo próprio. Nunca havia pensado em transformar a avicultura em uma fonte de renda. Hoje, sua rotina é dedicada ao plantio e aos cuidados com as aves.>
“Só começamos a vender ovos depois do projeto. Quando me falaram sobre a iniciativa, pensei que seria uma boa oportunidade, além de que seria útil também para nosso próprio consumo. No começo, foi complicado, mas, com o tempo, fomos pegando confiança e nos ajustando”, lembra.>
“Acordo todos os dias às 5h e, às 7h, coloco ração, limpo o galinheiro e troco a água das aves. Depois, solto as galinhas para se exercitarem. Durante o dia, verifico a água para que não falte. No final do dia, recolho os ovos, levo para casa e lavo”, completa.>
A produção de Cleide chega a três placas de 30 ovos por semana. Os ovos são vendidos na feira livre de Cachoeira. O dinheiro complementa o sustento e ajuda na criação do neto, de apenas três anos. “Antes, eu só tinha o Bolsa Família, agora, tenho essa renda extra que me ajuda a cuidar dele. Ajudou bastante”, avalia.>
Oportunidades >
Para impulsionar ainda mais a venda dos ovos produzidos no Quilombo Tabuleiro da Vitória, Rodrigo Ferreira, consultor de mercado agropecuário, afirma que a valorização da identidade cultural da região pode ser uma estratégia essencial. Isso ocorre porque o quilombo carrega uma forte história de resistência e tradição, agregando valor ao produto para consumidores que buscam alimentos com origem certificada e impacto social positivo.>
“O mercado atual tem uma demanda crescente por produtos que carregam narrativas autênticas. O ovo caipira produzido por mulheres quilombolas, dentro de um modelo sustentável e artesanal, tem um enorme potencial de se diferenciar e alcançar nichos de mercado dispostos a pagar mais por esse tipo de produto”, afirma Ferreira.>
Outro fator que pode impulsionar as vendas é a criação de uma marca forte e estratégias de marketing voltadas para o consumidor urbano. Segundo Ferreira, muitas iniciativas da agricultura familiar conseguem expandir suas vendas ao criar rótulos bem trabalhados, destacando a origem do produto e suas vantagens nutricionais – um exemplo disso são os cafés especiais produzidos por pequenos produtores da Chapada Diamantina.>
“Ovos caipiras já são mais valorizados do que os de granja, mas, quando vinculados a uma produção sustentável e a um território de identidade como o Tabuleiro da Vitória, o valor percebido aumenta. Se as embalagens trouxerem um design atrativo, com informações sobre a história do quilombo e as características da criação das aves, isso pode gerar mais interesse dos consumidores”, recomenda o especialista.>
Hoje, o grupo já comercializa os produtos com identidade visual própria. O “Ovo Quilombola do Tabuleiro da Vitória” passou a ser reconhecido em Cachoeira e Salvador, fortalecendo a renda das mulheres envolvidas na iniciativa. >
“A ideia é consolidar os ovos do Tabuleiro da Vitória no mercado, assim como o licor de Cachoeira. Queremos que esse produto seja reconhecido e valorizado, trazendo desenvolvimento para a comunidade”, finaliza Moro.>