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Da Redação
Publicado em 16 de setembro de 2023 às 05:00
Um desentendimento entre estudante e professora, ambas da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), gerou polêmica, nesta semana. Durante uma aula, a aluna Luisa Liz dos Reis discutiu com a professora Jan Alyne e acusou a docente de transfobia e racismo. A professora negou ter tido conduta preconceituosa e garantiu ser alvo de calúnia. O episódio foi gravado em áudio pela monitora da disciplina, que registra todos os encontros com autorização de Jan Alyne e da turma.
A escuta do áudio (que circulou amplamente, na íntegra, pelo Whatsapp) revela o ocorrido na manhã da última terça-feira (12), quando Jan Alyne ministrava uma aula da disciplina Produção e Circulação de Conteúdos e Mídias Digitais. Na ocasião, a professora abordava um texto que havia passado aos estudantes, quando Liz interveio na discussão. Em dado momento, a professora pediu para que elas retornassem para o ponto que estava sendo abordado usando a seguinte frase: “Vamos voltar, senão a gente vai para um hipertexto e não volta mais”.
A aluna interrompeu a professora dizendo que seu posicionamento estava dentro do conteúdo da aula e afirmou: “Acho que a senhora não está querendo falar do real e está no superficial”. Em seguida, a postura da estudante ficou mais inflamada e ela avaliou que a docente estava diminuindo sua contribuição por não concordar com a dela.
Nesse momento, Jan Alyne disse que a estudante é que estava “chateado”. Liz - que exige ser tratada no feminino - corrigiu a professora, que se desculpou em seguida. Apesar de o semestre ter iniciado há um mês, foi a primeira vez que a aluna participou de uma aula da disciplina. Liz afirma que estava em viagem a trabalho - por ser cantora lírica - mas avisou à professora, por e-mail, o motivo das faltas. Jan Alyne afirmou não lembrar se recebeu o comunicado já que, por ser coordenadora do colegiado, recebe uma grande quantidade de e-mails.
A discussão chegou a cessar por cerca de 15 minutos, mas Liz Reis voltou a interromper a explanação da professora para falar sobre seu ponto de vista. “É o ethos midiático, gente, procurem, é exatamente isso que ela tá falando”. Nesse ponto, Jan Alyne perdeu o fio do raciocínio e tentou retomar a condução da aula mais uma vez, enquanto Liz voltou a falar e, em dado momento, repetiu a palavra “chateado”, mas não foi possível compreender, pelo áudio, o conteúdo da frase. A docente replicou: “A professora aqui sou eu”. A aluna, então, subiu o tom: “Eu sei, meu amor, mas eu estou participando da aula e acho que a senhora não vai me impedir de estar criticamente contribuindo com a aula”.
Diante da escalada da tensão, Jan Alyne saiu da sala de aula. Com a saída da professora, Liz seguiu falando com os outros estudantes sobre a suas intervenções e sobre o comportamento da professora: “Eu podia estar falando merda, comendo cocô e ruminando as piores barbaridades como ela faz, ela tinha que dizer: vamos então dialogar”.
Minutos depois, Jan Alyne voltou à sala de aula acompanhada por um funcionário da universidade, na intenção de retirar a aluna do ambiente. “Eu quero dar aula. Eu quero que saia da aula”, disse a professora. Liz seguiu falando sobre seus comentários e disse que não iria se retirar. Nesse momento, alguns alunos gravaram a situação em vídeo. Nas imagens, é possível ver que, após um pedido do funcionário, Liz saiu gritando pelos corredores.
A aluna, então, se dirigiu ao colegiado da Faculdade de Comunicação. Depois do episódio, Liz registrou um boletim de ocorrência e o caso será investigado pela Polícia Civil. Nesta quinta-feira (14), a estudante fez uma denúncia presencial na ouvidoria da universidade acompanhada de outros seis alunos que testemunharam o episódio.
Os dois lados
Depois do ocorrido, a docente Jan Alyne cancelou a aula de quinta-feira (14) e disse estar abalada com os desdobramentos do episódio. Na quarta-feira (13), alguns alunos realizaram um protesto com cartazes no campus da Ufba em Ondina e pediram o afastamento da profissional.
Jan Alyne admitiu ter se equivocado ao tratar Liz pelo pronome masculino e justificou o erro, segundo ela, porque estava nervosa diante da tensão em sala. “Eu enviei um comunicado aos alunos me retratando pelo uso indevido do pronome. Eu queria usar a aula de hoje para pedir desculpas porque eu me equivoquei, mas isso não significa que eu sou transfóbica”, afirmou em entrevista à reportagem.
A professora avalia que foi vítima de calúnia, mas ainda não registrou denúncias na polícia. No entanto, estuda tomar essa medida. “Eu fiquei assustada porque ela [Liz] estava muito alterada e agressiva. Eu queria que ela saísse da sala porque queria continuar a aula”, completou. Jan Alyne leciona na Faculdade de Comunicação da UFBA desde de 2020.
Liz Reis alega que, além de errar o pronome de tratamento, a professora teria cometido racismo e transfobia ao negar a sua participação no debate proposto na aula. “A transfobia e o racismo acontecem a partir do momento em que a professora não permite que eu esteja na aula didaticamente conversando com ela e com os alunos”, avaliou. Ela também revelou estar abalada emocionalmente e que deseja que a professora seja afastada de suas funções.
O ato de errar o pronome de tratamento de uma pessoa trans, por si só, não configura crime de transfobia, como explica o advogado criminalista e professor de Direito Marcelo Duarte. “Haveria crime se a professora negasse que a aluna estivesse em sala de aula por ser trans, por exemplo”, apontou.
Investigação
Além da investigação que será feita pela Polícia Civil, a Ufba dará início a uma apuração sobre o ocorrido. Em nota, a universidade informou que “verificada qualquer conduta inadequada ou irregular por parte de qualquer membro da comunidade universitária, a Administração Central não se furtará a tomar medidas cabíveis previstas em seu regimento”.
A universidade afirmou ainda que não compactua com transfobia ou qualquer tipo de discriminação, mas pondera as criticas públicas feitas à professora. “Jamais conivente com processos de execução sumária e linchamento público de qualquer de seus membros - o que se configura na medida em que, de forma antidemocrática, lhes seja negado direito a ampla defesa e contraditório”, pontuou a nota.
Diante da repercussão do caso, figuras públicas se posicionaram sobre a discussão. O cientista político e professor da Faculdade de Comunicação Wilson Gomes, utilizou uma rede social para falar sobre a hostilidade do ambiente universitário e a vilanização da professora. “O lugar mais insalubre para se trabalhar hoje, por razões de envenenamento ideológico, são as universidades. Ao menor interesse contrariado, à menor reivindicação de hierarquia pedagógica, à mera indicação de bibliografia pode corresponder uma acusação de crime identitário”, escreveu no X, antigo Twitter.
Jean Wyllys, ex-deputado federal e egresso da Faculdade de Comunicação da UFBA, publicou, em seu perfil no X, que os movimentos sociais precisam ser mais “maduros e prudentes” e criticou as ofensas sofridas pela professora. “A hipersensibilidade defensiva aliada à histeria coletiva e à crença quase sempre equivocada numa superioridade moral intrínseca ao cancelamento podem levar a injustiças e à difamação”, ressaltou.
Leonardo Costa, diretor da Faculdade de Comunicação da UFBA, está de licença médica, mas entrou em contato com a professora e com a aluna no dia do ocorrido. Segundo ele, que se diz angustiado, é preciso estabelecer espaços de diálogo dentro da universidade. “Sinto falta do diálogo e da mediação, que são necessários nessa situação. Até agora, eu não tenho nenhum registro formal sobre o que aconteceu e estou aguardando a ouvidoria”, contou.
Da Redação