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Bruno Wendel
Publicado em 10 de junho de 2024 às 05:00
O que já era preocupante no Recôncavo e na região Norte do estado, agora também é uma ameaça à segurança pública na capital baiana. A segunda maior facção carioca, o Terceiro Comando Puro (TCP), está em Mussurunga e quer tomar a Vila Verde. A aliança com o Bonde do Maluco (BDM), selada no início do ano passado em Santo Amaro da Purificação e Jacobina, está desde abril escancarada na Vila: as iniciais das facções marcam os muros das casas e pontos comerciais. E essa condição explica, de fato, a tensão na região que já dura mais de 20 dias, inclusive com a ocupação da Polícia Militar.
A "dobradinha” BDM/TCP, que deve acirrar ainda mais o cenário da guerra do tráfico, se deu através do traficante santamarense conhecido como Cabeça, quando ele cumpriu pena em Bangu 1, no Rio de Janeiro, há alguns anos. De volta a Santo Amaro, Cabeça passou a gerenciar o tráfico nos bairros de Nova Santo Amaro e Sacramento, uma das principais áreas de atuação do BDM. A junção do Terceiro Comando com o Bonde, a mais forte facção baiana, é para fazer frente à expansão do Comando Vermelho (CV) na Bahia, pois o CV também é rival do TCP no Rio. Já em Salvador, a chegada do TCP resultou em ataques intensos em Vila Verde, nos primeiros dias de abril.
“Esse pessoal do BDM veio com essa outra turma [TCP] para pegar o pessoal daqui, vivemos nesse inferno. É tudo culpa de Paulinho, o Paulo Henrique. Disse que quando a polícia sair, ele vai voltar pior. Já divulgou áudio dizendo que pode levar dez anos, mas vai tomar aqui de qualquer jeito”, contou uma senhora revoltada com a situação, que preferiu não se identificar. Segundo ela, Paulinho liderava o tráfico em Vila Verde até a chegada do CV, quando foi expulso há mais de cinco anos. Desde então, ele se juntou com os traficantes de Colinas de Mussurunga, área de atuação do BDM.
Vila Verde é a única localidade dominada pelo CV que margeia a Avenida Aliomar Baleeiro, sendo cercada por bairros como Mussurunga e Parque São Cristóvão, onde o BDM tem atuação histórica. O objetivo da aliança é acabar de vez com arquirrival, impedindo-o de chegar em outras regiões. Em 2020, o CV se estabeleceu em Salvador após absorver o Comando da Paz (CP), trazendo do Rio mais armas (fuzis com mira laser e granadas) e efetivo, tornando a Vila praticamente uma muralha.
Com o Terceiro Comando Puro, o Bonde do Maluco obteve o reforço que precisava. A partir da metade de abril, as investidas da aliança passaram a ser frequentes e os “bondes” (grupos de homens armados) conseguiram avançar no território do inimigo, marcando o feito com as iniciais “BDM/TCP” em alguns pontos do final da Rua Jardim Botânico, trecho próximo ao Condomínio Alphaville II. As pichações foram registradas pela reportagem durante as inúmeras idas para apurar os acontecimentos em Vila Verde entre os meses de abril e maio. Apesar da aliança, o CV ainda controla Vila Verde e sua presença é mais nítida no entorno das vias principais do bairro: Rua Vila Verde, Rua Planalto Verde e início e meio da Rua Jardim Botânico.
Os moradores viveram momentos de terror. Casas foram atingidas durante os confrontos, imóveis foram invadidos e até destruídos pelos traficantes. Muita gente saiu do bairro às pressas, o transporte público foi suspenso mais de uma vez e a Escola Municipal Laura Sales de Almeida está há mais de 20 dias fechada. Corpos foram encontrados após tiroteios. Este cenário, levou a Polícia Militar a ocupar a região com a instalação de uma base móvel.
“A situação melhorou um pouco. Não é como antes, que todos os dias a gente dormia e acordava com a guerra deles. Às vezes escutamos um tiro e outro, mas sempre do lado de lá [Mussurunga]. A polícia está aqui, mesmo assim a gente está com medo. Eu mesma fiquei traumatizada. Quando o relógio marca 3h, acordo assustada, na tensão de uma bala atravessar minha janela, porque tudo acontecia nesse horário. Era tiro para todo o lado”, relatou uma dona de casa, sem se identificar, moradora da Rua Esperança de Vila Verde – o final da via dá acesso a uma área de mata, que separa o bairro de Mussurunga, onde boa parte dos confrontos aconteciam diariamente.
De acordo com o especialista em Segurança Pública, o coronel Antônio Jorge Ferreira Melo, professor de Direito do Centro Universitário Estácio-Fib, “essas organizações ligadas ao narcotráfico estão passando por um redesenho organizacional e político”. “A mesma lógica empresarial, que se compra outras empresas para crescer, neste caso, do tráfico, se juntam para terem mais territórios. Nada mais natural a busca do TCP por aliança com o BDM, pois ambas têm um inimigo em comum, o Comando Vermelho”, explicou o especialista.
Para o pesquisador do Núcleo de Estudo da Violência da USP (NEV-USP), especialista no estudo das maiores organizações criminosas do país, o CV e o PCC (Primeiro Comando da Capital), escritor e jornalista Bruno Paes Manso, essa nova dinâmica na Bahia pode estar relacionada com atual fase do PCC: o foco no mercado internacional ao mesmo tempo em que lida com o rompimento das lideranças e o possível surgimento de uma nova facção a partir do racha.
“Estão procurando outros parceiros. Como o CV está ganhado força com as franquias no país, dando autonomia aos grupos locais, diferente do PCC, que não fez mais frente, o TCP está procurando outros parceiros para impedir o avanço do CV, provavelmente”, explicou Manso.
No Rio de Janeiro existem três facções: o CV, TCP e a ADA (Amigo dos Amigos) - esta última beira a extinção, pois seus membros mais importantes migaram para o TCP, o que ajudou na expansão da organização no estado. A chegada do Terceiro Comando Puro à Bahia, em especial à Salvador, é uma condição “preocupante”. “Não é bom ter uma outra facção do Rio na Bahia. Assim como no Ceará, Amazonas, agora na Bahia, haverá uma corrida armamentista, seguida de conflitos pela disputa de mercado, porque o Comando Vermelho não vai ficar por baixo”, pontou o sociólogo Daniel Hirata, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF).
Hirata abordou um outro problema: o TCP é a organização carioca com mais vínculo com as milícias – são grupos armados que formam um poder paralelo, à revelia das forças de segurança. Em geral, são formados por agentes ou ex-agentes do próprio Estado, como policiais, bombeiros e guardas penitenciários, mas há casos de grupos só de civis. “Atuam fortemente ligados à habitação, fornecimento de gás de cozinha e o transporte público. Isso é mais perigoso que o tráfico varejista, porque impactam a população mais diretamente. Há uma relação íntima com o estado, a exemplo do Caso Marielle Franco”, declarou Hirata, citando as prisões de figuras públicas envolvidas na morte da vereadora do PSOL e do seu motorista, Anderson Gomes, em 2018. Segundo relatório da Polícia Federal, Marielle estava pedindo à população para não dar apoio a novos loteamentos em regiões dominadas por milicianos.
A reportagem procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA) e a Polícia Militar do estado (PM/BA) para saber como está o enfrentamento do tráfico com a chegada do TCP em Salvador, quais medidas estão sendo adotadas para evitar que facções de outros estados se instalem na capital e como está situação da Vila Verde, mas não houve respostas.
Em abril do ano passado, os moradores do bairro do Bonfim, na cidade de Santo Amaro da Purificação, acordaram com as paredes de suas casas, muros e estabelecimentos comerciais pichados com a sigla do BDM sobre as iniciais do TCP. Até a chegada da notícia da “dobradinha”, era sabido que o BDM tinha o apoio do Primeiro Comando da Capital (PCC), organização criminosa de São Paulo e a maior do país. A relação entre as duas foi construída com o PCC fornecendo drogas e armas. Porém, não se sabe ao certo se acabou, mas o que é de conhecimento, inclusive comentado no meio policial, é que essa aliança teria sido rompida por vários motivos.
O primeiro e mais importante seria o fato de o PCC não se estabelecer na Bahia, como fez em Sergipe, Alagoas, Ceará e Rio Grande do Norte. Desta forma, o BDM vem enfrentando grandes batalhas com o crescimento do CV em Salvador e sua expansão para outras cidades.
Depois do Recôncavo, a aliança BDM/TCP chegou no município de Jacobina, em setembro. Os moradores acordaram apavorados com os vídeos que os próprios criminosos postaram nas redes sociais. Os faccionados decretaram que as localidades de Jacobina III e IV, Vila Feliz, Bananeira, Grotinha e Caixa d’Água pertenciam ao grupo.
A facção tem seus primórdios no extinto Terceiro Comando (TC), atuante nas décadas de 1980 e 1990. Alguns dos líderes do TC naquela época eram os criminosos Zacarias Gonçalves, Zaca Jorge Zambi, Pianinho, Pitoco da Vila Aliança, Robertinho de Lucas, Adilson Balbino, entre outros.
Em 1998, o Terceiro Comando aliou-se à facção recém-criada Amigos dos Amigos (ADA), ampliando seus domínios. Por volta de 2002, o TCP surgiu a partir de uma dissidência do TC, chegando a coexistir com esta última e o ADA.
Após 11 de setembro de 2002, quando Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, liderou uma revolta no presídio Bangu I, matando alguns rivais, entre eles Uê, um dos líderes da união TC/ADA, Celsinho da Vila Vintém, da facção ADA, que não foi morto durante a rebelião, foi acusado de traição, o que gerou o rompimento definitivo da aliança com o ADA. Assim, os traficantes do quase extinto TC pularam para o TCP e outros para o ADA. Foi nessa cisão que os integrantes da facção decidiram colocar o P de "puro" na sigla da facção, realçando que os que continuaram no Terceiro Comando eram criminosos "puros" e "sem mistura".
Após a morte de Robinho, no final de 2007, quem se tornou o primeiro homem na hierarquia de Senador Camará, bairro da Zona Oeste carioca, o traficante Marcio José Sabino, mais conhecido como Matemático, assumiu o controle de seus postos de venda de droga até ser morto em uma emboscada em maio de 2012.
Ao contrário da sua arquirrival, o Comando Vermelho, a facção Terceiro Comando Puro tem uma hierarquia descentralizada. Cada “dono” de comunidade só responde por ela, sem receber interferências de outros líderes da cúpula da facção. O TCP não tem uma hierarquia definida e nem um alto conselho para decisões da facção. Cada dono mantém seu poder na própria comunidade ou naquela comunidade em que ele ajudou a “tomar”.
No cenário de guerra, cada dono cede homens ou armamentos para a empreitada criminosa. No fim, esses donos vão ter suas “fatias” naquela comunidade caso a facção tenha êxito na disputa.