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Da trágica viagem de Darwin às epidemias: Cemitério dos Ingleses tem histórias de vida e morte em Salvador

De frente para a Baía de Todos-os-Santos, o British Cemetery tem arquitetura inspirada em cemitérios europeus

Publicado em 7 de novembro de 2023 às 09:59

Cemitério dos Ingleses na Ladeira
Cemitério dos Ingleses na Ladeira Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

Numa visão panorâmica, na direção da Ilha de Itaparica, o lugar remete o visitante à vida solar refletida nas águas plácidas da Baía de Todos-os-Santos (BTS). Porém, o olhar para o chão encontra as lápides e túmulos da escuridão final. O lugar é o Cemitério dos Ingleses, um cartão-postal da morte situado na Ladeira da Barra, bem próximo à Igreja de Santo Antônio da Barra, em Salvador. Nele, um observador sensível percebe a rica baía da vida e o indesejado promontório onde o fim da existência deságua.

Muita gente vai ali só para desfrutar a esplendorosa paisagem que escaneia uma vasta área litorânea da BTS. Outras, por motivos piedosos. O visitante simbiótico junta os dois programas, turismo e fé na ressurreição da carne. Rico patrimônio histórico da Colônia Britânica na Bahia, The Bristh Cemetery foi fundado no começo da segunda década do século 19. A primeira lápide data de 1813. Mas a gênese da necrópole inglesa remonta à chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil. Precisamente à fuga da corte lusitana antes do exército de Napoleão Bonaparte invadir Portugal.

Em 27 de novembro de 1807, navios de guerra britânicos, comandados pelo embaixador Lorde Stanford, escoltaram a esquadra portuguesa até a chegada ao Rio de Janeiro, em 7 de marco de 1808. Em retribuição, Dom João VI assinou, em 19 de fevereiro de 1810, o Tratado de Comércio e Navegação que, além de redução dos impostos para a comercialização dos produtos britânicos, concedia aos cidadãos britânicos residentes no Brasil o direito de construir seus próprios cemitérios.

Cemitério com vista para o mar
Cemitério com vista para o mar Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

Com isso, um ano depois, o Conde dos Arcos e governador da Bahia, Marcos Noronha de Brito, expropriou um terreno pertencente à Arquidiocese de Salvador e doou à comunidade britânica. Até então, só eram permitidos cemitérios católicos. Como os britânicos professavam (e ainda seguem) o credo anglicano (protestante) não podiam ter um campo santo.

Em Salvador, eles eram sepultados na Península de Itapagipe, junto com indigentes, escravizados e criminosos. Portanto, o Cemitério dos Ingleses veio dar dignidade aos mortos do Império Britânico. Assim, os parentes e amigos dos defuntos do Reino Unido puderam realizar os sepultamentos de seus compatriotas e os compungidos rituais da morte. Para isso, também foi construída uma Capela Anglicana no Campo Grande, demolida em 1975 para dar lugar a Maison Britânica.

Campos santos semelhantes foram criados também no Rio de Janeiro, em Recife e outras cidades, mas a Bahia foi pioneira ao permitir que os mortos de uma terra estrangeira - que se jactava de ser o império onde o sol jamais se punha (referência à expansão colonialista) - pudessem ter um local próprio onde o Astro Rei não seria mais visto por toda eternidade.

Conforme o historiador João José Reis, autor do clássico A morte é uma festa, a construção do British Cemetery seguiu o padrão da moda dos cemitérios rurais da Europa e dos Estados Unidos, distantes do centro da cidade (como era a Ladeira da Barra no período). Por isso, eram atapetados com muita grama e cercados de árvores copadas, como a indicar que mesmo na terra desolada dos mortos a vida exala sua saúde vegetal.

Esta necrópole tinha três níveis. Na parte de cima eram sepultados os ingleses, pessoas de destaque social como Edward Pellew Wilson, fundador da empresa de navegação Wilson Sons; Dr. John Ligertwood, epidemiologista e um dos criadores do primeiro Colégio Brasileiro de Medicina Tropical e o norte-americano George Whitehill Chamberlain que fundou o colégio que originou a universidade Mackenzie de São Paulo. No segundo pavimento foram enterrados alemães, franceses e judeus. As lápides dos judeus são facilmente identificadas pela Estrela da David. Havia um terceiro local do qual não há mais registro no caminho entre a Igreja de Santo Antonio da Barra e o Yatch Club.

Em 1851, foi construído o segundo cemitério estrangeiro de Salvador, o dos Alemães, na Federação, defronte ao Cemitério do Campo Santo. Em 1993, o Bristh Cemetery foi tombado como sítio histórico pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), a fim de assegurar que não fosse alvo da especulação imobiliária num dos lugares mais privilegiados e valorizados de Salvador. Uma ação semelhante tramita no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Naquele mesmo ano, a historiadora Sabrina Gledhill liderou uma campanha para restaurar o cemitério, que desde 1988 é administrado pela Associação da Igreja de São Jorge e Cemitério Britânico.

Da Inglaterra, Sabrina deu a dimensão bucólica do British Cemetery: ‘’para os brasileiros, o cemitério é lugar dos mortos, aqui é lugar de piquenique’’. Ela revelou que a restauração contou com o apoio decisivo de Dona Maria Clara Mariani - filha do ministro Clemente Mariani - e com o trabalho do arquiteto Ernesto Carvalho. Em 2003, foi firmado um acordo com a Fundação Clemente Mariani para a preservação do jazigo dos ingleses, o que permitiu, com o apoio do Governo do Estado, a realização de obras de restauração das muralhas de retenção e da capela, conserto do sistema sanitário, iluminação e restauração das covas. Hoje, o Cemitério dos Ingleses pode ser visitado todos os dias, gratuitamente, até as 17 horas. O tempo de permanência é de uma hora, suficiente para o visitante haurir a beleza tropical da Baía de Todos-os-Santos e se compungir ante o perverso absolutismo da morte.

Quase dois séculos antes, outra inglesa, a pintora, desenhista, escritora e historiadora Maria Graham, casada com o comandante da fragata Doris, também ficou impressionada com a beleza solar do cemitério anglicano de Salvador. Miss Graham visitou também o Britsh Cemetery do Rio de Janeiro, subindo a cavalo o morro da Gamboa.

No sábado que antecedeu este Dia de Finados, uma família baiana também visitou o Cemitério dos Ingleses. Moradora do Cabula, Maria Inaê aproveitou o dia ensolarado para conhecer o espaço nublado dos mortos, acompanhada da irmã Iraildes Cruz, das filhas Vanessa e Laise, da neta Laura e do genro Henrique Goés. ‘’Depois de almoçarmos num restaurante próximo, aproveitamos para conhecer esta vista magnífica’’, contou Maria Inaê. “Sou de Salvador e não conhecia este local tão silencioso e agradável’’, emendou Iraildes. ‘’Sempre passei aqui em frente, mas nunca havia entrado. As pessoas precisam conhecer este lugar muito agradável’’, diz Henrique e, maliciosamente acrescenta: ‘’Aqui ninguém nos incomoda’’.

Os infaustos amigos de Darwin

Antes de se consagrar nos anais da ciência com a sua teoria da Evolução da Espécie pela Seleção Natural, o jovem naturalista britânico Charles Darwin, quando veio a Bahia a bordo do HMS Beagle, em 1832, presenciou uma involução da espécie (pelo menos sob o ponto de vista materialista que rege a maioria dos cientistas). Três tripulantes da embarcação morreram, ao que tudo leva a crer de malária.

O primeiro a falecer foi o marinheiro chamado Morgan, descrito pelo Capitão FitzRoy, do Beagle, como ‘’um homem muito corajoso.’’ Ele morreu no mar e o corpo foi lançado no Arquipélago de Abrolhos, famoso pelo espetáculo das baleias jubartes que o jovem homem do mar não teve tempo de ver.

Depois morreu Boy Jones, um dos tripulantes de futuro mais promissor do navio, já que estava prestes a ser promovido. Em seguida, sucumbiu o jovem Charles Musters, marinheiro voluntário, membro de uma família abastada e um dos preferidos dos oficiais e da tripulação, incluindo o próprio Darwin. Os dois tiveram maior sorte do que Morgan (caso se possa falar em sorte no caso de ambos), pois ao contrário do primeiro, atirado aos peixes, foram sepultados no Cemitérios dos Ingleses.

Painel que cita os marinheiros vindos no navio de Darwin. Crédito: Paula Fróes/ CORREIO

A suspeita é de que os três marinheiros tenham sido infectados pelo protozoário Plasmodium quando passaram uma noite de folga no Rio de Janeiro, no rio Macacau, infestado de mosquitos. Charles Darwin ficou muito abatido com a morte de Musters, conforme o relato do Capitão FitzRoy. Nada, no entanto, que o impedisse de, no futuro, realizar a mais fascinante teoria sobre a evolução da espécie pela sobrevivência dos seres mais capazes.

As lápides de Musters e de Boy Jones desapareceram junto com a parte do cemitério que ficava na estrada do Yatch Club. Preservado no país natal, está o almirante Horatio Nelson, herói inglês morto por um atirador francês na batalha de Cabo Trafalgar, em 1805. Para preservar o corpo, a tripulação do navio colocou o cadáver num barril cheio de conhaque, inusitado brinde à memória do célebre comandante, cujo caixão foi feito com a madeira principal do mastro do navio francês L’Oriente. Coisa para inglês ver.

Um exame detalhado das lápides do British Cemetery mostra que uma parte dos sepultados era de marinheiros que morreram jovens, coisa comum naquela época, pois nas travessias transatlânticas grassavam doenças como a febre tifóide, a escarlatina, a gripe influenza e o cólera, como informa a pesquisadora Fabiana Comerlato no estudo acadêmico Estruturas Tumulares de Mestres Capitães Britânicos no Cemitério dos Ingleses, Salvador - Bahia, apresentado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Na análise, ela demonstra que em 1841, na Inglaterra e no País de Gales, de cada 1000 nascidos, 132 morriam no primeiro dia de vida e outros 238 antes de completar os 18 anos, muitos pelas precárias condições de salubridade da época.

Na conferência, Fabiana Comerlato afirma que as estruturas tumulares evocam o prestígio social de mestres e capitães britânicos do século XIX e que, nesse sentido, as lápides funcionam como dispositivos de memória para a comunidade inglesa na cidade de Salvador. Ela anota ainda que ‘’o Cemitério dos Ingleses abriga um importante conjunto de túmulos da comunidade britânica nos trópicos sul-americanos, sendo o primeiro cemitério acatólico construído na cidade.’’ Segundo Fabiana, esses monumentos documentam a navegação inglesa e seu comércio nas costas do Atlântico Sul.

Agora vamos dar uma olhada nestes dispositivos da memória, denominação pomposamente acadêmica para as lápides fincadas no British Cemetery, quase todas com a saudosa inscrição ‘in memory’. Para quem visita o local, do lado para o mar, o primeiro túmulo é de Arthur Rop (1875-1899). No último ano dos oitocentos morreu também o inquilino da terceira cova, John Egerth Holland. John MacDonald embarcou para a nau dos mortos, em 1898, aos 22 anos. É possível que Mariane Swift tenha sido parente do escritor irlandês Jonathan Swift, autor do clássico As viagens de Gulliver.

Coitadinho de Joseph Simontier! Morreu com apenas um ano de idade em 1887. Na lista dos mortos há Schindler, não o herói real do filme de Steven Spielberg, mas o ex-cônsul dos Estados Unidos, morto em 1935 com longevos 86 anos, um recorde entre as lápides. Os túmulos, claro, estão cheios de inscrições como my dear mother (minha querida mãe), my dear husband (meu querido marido), my dear daughter (minha querida filha) e outras menções carinhosas aos entes queridos. Há uma inscrição em português dedicada certamente a um bom patrão: ‘’À memória de Frederico Hope (1841-1897), honra, justiça e dever, justo tributo de significativa homenagem dos empregados e operários da secção do gaz ao seu prezado chefe e amigo.’’

Existe também a sepultura de uma brasileira, Maria Constanza Freitas de Araújo Ogilvie, mulher de Mister Thomas Ogilvie. O tempo, borracha impiedosa, apagou o registro de muitas lápides, mas em algumas, como na de Elizabeth Amy, vicejam as plantas verdes de vida. Quem quiser ver um pouco mais, basta visitar o British Cemetery, rezar pelos mortos, apreciar a bela paisagem e depois sair com aquele alívio estival de quem gosta muito da vida.

Manutenção e homenagens

A estimativa é de que cerca de mil pessoas tenham sido sepultadas no Cemitério dos Ingleses, de acordo com a supervisora administrativa da necrópole Marília Nonato. O certo é que há 560 mortos catalogados. O local recebe em torno de 150 a 200 visitantes, por mês, boa parte atraída pela beleza silenciosa escondida às margens de uma das mais belas baías do mundo. Na quinta-feira, como em todo 2 de novembro, estava prevista uma celebração religiosa da igreja anglicana, com a oferta de flores para os parentes das pessoas ali sepultadas.

O espaço é mantido pela Associação da Igreja de São Jorge e Cemitério Britânico, formada por britânicos residentes na Bahia e conta com a ajuda de uma empresa agropecuária. Marília informa que a parte referente aos dois marinheiros amigos de Charles Darwin se perdeu, mas há uma placa em memória dos trabalhadores do mar sepultados. ‘’As primeiras décadas do cemitério foram marcadas pela adaptação dos estrangeiros à nova terra, muitos deles vítimas de doenças tropicais que vitimaram crianças e jovens’’, explica.