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Bruno Wendel
Publicado em 24 de junho de 2024 às 05:00
A vida humana, aos olhos da maioria, não tem preço. Mas, para as quadrilhas especializadas em sequestros de ciganos, devolvê-los vivos pode custar para a família entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão na Bahia. Os criminosos veem neles um potencial de “negócio”, pois as vítimas selecionadas são prósperas: normalmente comercializam veículos, terrenos, têm lojas. Além dos sequestros, a comunidade sofre também com as extorsões.
“Os casos estão ligados ao fato de os ciganos serem bem-sucedidos, pois muitos são comerciantes. Outro fato predominante são as exposições. Eles gostam de mostrar veículos caros, cordões de ouro e outros objetos de valores nas redes sociais. Tem caso até de disputa entre ciganos para quem tem o carro mais caro, lógico que isso vai atiçar os bandidos”, declarou o presidente da Rede Brasileira dos Povos Ciganos (RBPC), o cigano Rogério Ribeiro.
De janeiro deste ano, até agora, o RBPC tomou conhecimento de quatro casos de sequestros e duas extorsões, dados já antecipados pela Coluna Insegurança – no ano passado, o total foram 10 ocorrências. Em 2022, 20; e em 2021, 21. O sequestro mais recente aconteceu no dia 06 deste mês, na cidade de Ibirataia. Um cigano dirigia um carro quando foi surpreendido por quatro homens fortemente armados em um outro veículo. Ele foi deixado no dia seguinte em Feira de Santana, após a família entregar R$ 150 mil. “Largaram ele numa estrada de chão e com o rosto coberto. No local não havia câmeras. Eles analisaram todo o local para não deixarem pista alguma”, disse Rogério.
A primeira ocorrência de 2024 aconteceu em fevereiro, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). “Foi em Camaçari. A vítima, de pouco mais de 20 anos, estava de bobeira na rua quando a pegaram. Foi uma ação muito rápida. No dia seguinte, já estava livre porque os pais deram R$ 200 mil”, contou Rogério.
Em abril, um jovem de 18 anos foi levado por uma quadrilha pela segunda vez em menos de um ano na cidade de Santo Antônio de Jesus. “Desta vez, ele ficou três dias no cativeiro. A família pagou pouco mais de R$ 200 mil pela soltura”, relatou o presidente do RBPC.
A terceira vítima foi do município de Maracás, também no mês de abril. Um cigano jogava dominó em casa, quando encapuzados invadiram o local e o levaram. “Ele apanhou muito, sofreu um corte grande, levou muitos pontos na cabeça. A família conseguiu ajuda de outros ciganos e pagaram o resgate. A vítima foi largada em Milagres, próximo de uma fazenda estrada de chão”, relatou Rogério. Segundo ele, o mesmo grupo pretendia agir também na cidade de Itiruçu, mas as vítimas tomaram conhecimento e deixaram a região. O valor pago pelo resgate foi entre R$ 200 mil e R$ 300 mil.
Mas nem todos os casos terminaram com a vítima viva. No dia 07 de março do ano passado, Lourival Gama, reagiu quando tentaram sequestrá-lo em Simões Filho, na RMS. Durante a troca de tiros, ele foi baleado na barriga, socorrido por parentes, mas não resistiu. Os criminosos fugiram em m um carro. Câmeras de segurança registraram o momento em que o veículo se aproxima da vítima.
Segundo o RBPC, os pedidos de resgate começam com os valores exorbitantes. “Tivemos casos que já pediram R$ 500 mil, R$ 1 milhão e até mais, mas vai reduzindo à medida que a negociação vai avançando. Em média, o valor acordado para pagamento fica entre R$ 200 mil e R$ 300 mil. Quando a família não tem o valor todo em espécie, as quadrilhas exigem joias, pulseiras, alianças”, contou Rogério.
Apesar dos dados da RBPC, a Polícia Civil disse que este ano não há registros recentes de sequestro de ciganos na Bahia. “Nós tomamos conhecimento de alguns casos e chamamos as famílias aqui, mas ninguém vem. Já fomos às comunidades, mas as próprias vítimas e seus parentes negaram. A polícia trabalha com demanda. Ou seja, se não tem o registro das informações, a polícia não tem elementos para trabalhar”, declarou o delegado titular da Delegacia Especializada Antissequestro (DAS), delegado Adailton Adan.
No entanto, segundo o presidente da RBPC, Rogério Ribeiro, cada criminoso tem a sua função na organização: “Tem aqueles que indicam a vítima para ser sequestrada. Tem o grupo que atua no ato do sequestro, tem aquele que vigia a casa da vítima, geralmente é o negociador; têm aqueles que ficam no cativeiro com a vítima e aqueles que abandonam a vítima após o pagamento do resgate”, detalhou.
Em algumas situações, foram confirmadas a participação de pessoas do convívio diário das próprias vítimas. Em maio de 2022, um sequestro foi planejado e executado por três ciganos – uma mulher e dois homens –, todos de uma mesma família e vizinhos dos pais de um menino de 10 anos de Miguel Calmon. O garoto estava com outras crianças, quando a cigana usou uma distração para facilitar a ação dos comparsas. Os sequestradores exigiram R$ 1 milhão, mas depois de muita negociação, ficou em R$ 250 mil.
A quantia foi paga, mas o menino não foi solto. Então, a família acionou a Polícia Civil. Através da investigação, os agentes descobriram que o carro usado pelos criminosos havia quebrado ainda na cidade. Durante buscar, foi descoberto o cativeiro improvisado em condomínio de casas populares, onde dois, dos três sequestradores foram presos, entre eles a líder, e o menino foi entregue à família. A polícia descobriu que o trio pretendia raptar outros filhos de ciganos. A partir daí, a os agentes chegaram a outros comparsas, totalizando 12 prisões, sendo que uma delas cumprida dentro de um presídio.
“É por isso que pedimos o registro da ocorrência, mas a maioria esmagadora não faz”, disse o delegado Adailton Adan. Na semana passada, a RBPC lançou a campanha: "Ciganos, não se calem! Façam o B.O", no intuito de acabar com a cultural da não denúncia.
Mas por que as vítimas não querem denunciar os casos? “A desconfiança com o Estado, de não ser acolhedor. Temos um histórico de violência da polícia. Muitos policiais não têm formação para atuar com grupos minoritários. Ou seja, há dificuldade do Estado de promover a inclusão das diferenças”, respondeu o professor de Direito da Universidade Federal de Jataí (UFJ), Phillipe Cupertino , autor do artigo “Um presente de Deus: a correlação entre memória e identidade no processo legislativo do Estatuto do Cigano”, publicado na revista Civitas - Revista de Ciências Sociais e aborda a influência da Associação Nacional das Etnias Ciganas (Anec).
Mas para a RBPC há um motivo mais forte. “Medo. Geralmente tem policiais e ex-policiais envolvidos nos sequestros, que sabem quem são as famílias das vítimas, a rotina de cada um. Aí ameaçam matar o filho, a mulher, os pais. E dizem que para não falar com a polícia, mesmo depois do resgate pago, caso contrário voltam para matar todo mundo. Mas isso é também perigoso, porque estimula a prática do crime. Temos casos de ciganos que já foram sequestrados mais de uma vez”, disse Rogério.
Questionado sobre a possível participação de policiais nos crimes, o delegado Adilton Adan disse que apua “todas as possibilidades”. “A participação de agentes públicos não está descartada. Eles (ciganos) comentam entre si que temem represália, mas na minha gestão não tenho nada concreto, porque quando a gente chega para pegar os depoimentos, ninguém fala nada. Assim é investigar”, declarou o delegado.
Apontado pela comunidade cigana como um dos sequestradores, o ex-policial militar Jonas Oliveira Góis Junior, 47 anos, foi morto durante uma troca de tiros com policiais. Conhecido como Joninhas, ele estava com mandado em aberto e resistiu à prisão. Um revólver e drogas foram apreendidos na ação por policiais do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco). “Ele praticava diversos crimes, entre eles sequestros, inclusive de ciganos. Isso foi em 2018 e a demissão dele foi por isso”, declarou Adan, que está na unidade desde março de 2021, quando a unidade ainda era coordenador de Repressão a Extorsão Mediante Sequestro.
Até agora, foram registrados três assassinatos na comunidade cigana na Bahia – no ano passado, foram 19 óbitos. Baleado no dia 07 deste mês, em Camaçari, Agilson Ribeiro Dantas, de 58 anos, vinha sendo ameaçado de morte. Dias antes do crime, ele andava tenso. “Um parente dele me disse que as ameaças foram feitas por um grupo de ciganos, resultado de uma rixa antiga. Então, perguntei ao próprio Agilson quem era a família, para saber se poderia ajudar em alguma coisa, mas ele escorregava, não fala nada”, declarou Rogério Ribeiro.
No dia 15 de fevereiro, Reinaldo Guilherme Fernandes Dourado, 21 anos, foi baleado na cidade de Guanambi, na região sudoeste. O jovem estava na porta da casa do tio quando foi atingido por diversos disparos. Dias depois, Gerisvaldo Oliveira Dourado, conhecido como "Léo Cigano", de 47 anos, estava em seu carro quando foi atingido no tórax e na cabeça, crime ocorreu na cidade de Palmas de Monte Alto, também no sudoeste. De acordo com a Polícia Civil, o principal suspeito do crime é um primo da vítima, que está foragido.
Na última quinta-feira, a RBPC tinha uma reunião no prédio do Centro de Operações e Inteligência (COI), na Secretaria de Segurança Pública (SSP/BA), para tratar sobre a insegurança do povo cigano no estado. O encontro, solicitado pela rede, e confirmado por ofício, enviado pelo coordenador executivo do gabinete da SSP, Olinto Marcelo Macedo da Silva, não foi adiando, sem data prevista.
A reportagem pediu um posicionamento à SSP sobre a audiência ter sido realidada e em relação aos casos de sequetrados enfrentados pela comunidade cigana no estado. Até o momento não há respostas.
A Rede Brasileira dos Povos Ciganos estima que no Brasil vivam pessoas integrantes de povos ciganos distribuídos em pelo menos três etnias: calon, roma e sinti. Os primeiros ciganos acolhidos aqui, enviados de Portugal como degredados, chegaram a partir de 1574. Vieram para trabalhar como ferreiros e ferramenteiros. Só chegaram como autônomos a partir do século XIX, acompanhando o cortejo de D. João VI.
Atualmente, a maior aglomeração de ciganos no país está na cidade de Souza, na Paraíba, com 500 famílias - é considerada a maior da América Latina. Mas, segundo o RBPC, a Bahia é um dos estados que concentra a maior quantidade de comunidades ciganas. “O governo fala em 20 cidades, mas nós catalogamos 120, mas acreditamos que há ciganos em mais de 300 municípios”, disse o presidente da RBPC.
Desde 2014, os povos ciganos não aparecem nas pesquisas municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Na época, os números apontavam que 337 cidades abrigavam acampamentos ciganos, em 21 Estados. A maior concentração de acampamentos situava-se em Goiás, Bahia e Minas Gerais. Mas, após uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), o inclua os povos ciganos na pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) para o censo demográfico de 2030.
No entanto, um relatório técnico encomendado pelo Ministério da Igualdade Racial (Mic) irá trazer dados quantitativos e principalmente qualitativos sobre a presença dos ciganos e suas principais demandas. “Será para tomada de ações agora pelo Estado, na aplicação de políticas públicas atuais, mas também vai subsidiar a pesquisa que será feita pelo IBGE, ou seja, dará elementos, bases para poder ser feito o censo”, declarou o professor Cupertino, que é um dos integrantes da pesquisa realizada pelo Mic.