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Larissa Almeida
Publicado em 30 de março de 2024 às 06:00
Há pelo menos 60 anos, Salvador passou a ter um negócio um tanto quanto inusitado cujas vendas só aconteciam no mês de abril. Era a fábrica de bonecos de Judas, idealizada pelo falecido Florentino Moreira, que resolveu trazer para a capital baiana uma tradição que atravessou o Atlântico com caráter unicamente religioso, mas que ao longo do tempo ganhou contornos políticos. Embora não haja registro dos motivos que impulsionaram a abertura da fábrica por Florentino, seu legado foi continuado por Fernando Encarnação, de 67 anos, e Jean Neiva, de 44 anos, que juntos confeccionam todos os anos os bonecos de Judas Iscariotes para serem queimados no Sábado de Aleluia. >
Fogueteiro por vocação, já que na fabricação do boneco há também a fabricação dos fogos que possibilitam a queima, Jean Neiva acredita que a ideia de confeccionar os Judas ocorreu como forma de atendimento a uma demanda popular. “Na época de Florentino, o pessoal fazia muito saco para tocar fogo imitando Judas. Foi aí que Florentino inventou esse boneco, inicialmente de madeira, depois passou a colocar as bombas. Na época foi um sucesso, um Judas era um salário mínimo”, lembra. >
A razão por trás do sucesso do boneco remonta ao período colonial. De acordo com o historiador Rafael Dantas, esse costume da queima do Judas é ibérica e é herança dos colonizadores que aportaram em Salvador. “É uma tradição que bebe muito das influências dos povos de Portugal e da Espanha, de uma influência direta católica que, no decorrer da Idade Média e idade Moderna, dão continuidade a essa tradição especialmente aqui, no contexto da América Portuguesa e Espanhola. No caso do Brasil, temos registros tanto por escrito como visuais, tanto no final do século XVIII quanto no século XIX”, aponta. >
Uma das representações clássicas da queima de Judas está eternizada em um quadro do pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret. O historiador explica que para uma sociedade eminentemente católica, sobretudo no contexto medieval, tais tradições eram importantes para fortalecer a crença religiosa. Contudo, com o passar do tempo, esse movimento ganha capilaridade e abarca outros personagens, sendo estes predominantemente políticos. >
“Outros personagens acabam também sendo associados a essa figura do Judas. É aí que entra político e pessoas que passam também a receber críticas perante outras pessoas. Então, hoje é uma tradição que tem um peso muito mais político, no qual esse Judas acaba também recebendo outras faces, e por isso ele é queimado, mas que bebe de uma força de um costume católico”, analisa Rafael Dantas. >
A tendência já é uma realidade na capital baiana. Não à toa, a maioria das encomendas recebidas por Jean e Fernando partem de partidos políticos. Eles relatam que os pedidos são feitos sempre com o intuito de colocar no rosto de Judas a foto de integrantes de partidos adversários. “Eles compram o boneco e trazem uma foto impressa. Como sabemos colar no rosto do Judas, colocamos na hora porque não podemos correr o risco de deixar a foto já colado no boneco, já que temos clientes de diversos partidos”, diz Jean. >
Para este Sábado de Aleluia, 500 bonecos foram confeccionados pela dupla. Mesmo entre figuras políticas, o destaque das vendas foi um inimigo comum a todo e qualquer partido político: o mosquito da dengue. No rosto do boneco, um adesivo contra o Aedes Aegypti foi colocado e 50 exemplares foram vendidos, passando a mensagem de que, mesmo em ano de eleições municipais, a saúde pública aparece acima de qualquer desafeto político.>
*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro>