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Moyses Suzart
Publicado em 3 de julho de 2023 às 10:51
A música e os cânticos sempre embalaram batalhas e serviram como registro histórico de grandes heróis de uma nação. Na Bahia, parece que tudo começa e termina no nosso maior orgulho cívico: o Dois de Julho. Que me perdoe o restante do Brasil, mas a verdadeira independência não aconteceu nas margens protocolares do Rio Ipiranga, mas da luta armada que começou no recôncavo e fez da Bahia a capital da resistência contra o império Português. Nada contra o hino nacional, mas o hino ao Dois de Julho tem o sangue e o orgulho dos baianos. Contudo, também é carregado de curiosidades que cercam nossos penteões. Você sabia que o Hino ao Bonfim que conhecemos, na verdade, foi uma homenagem ao centenário do Dois de Julho? Você conhece quem escreveu nosso hino oficial da independência, que só se tornou oficial em 2010? E que diabo é despotismo? Antes de cair na gandaia e comemorar mais um dia cívico e cultural do nosso estado, conheça algumas curiosidades das letras e versos que embalam nossa história, carregada de heróis, luta e muito orgulho de ser baiano. "Nasce o sol a 2 de julho, brilha mais que no primeiro!"
Se já temos orgulho da Independência da Bahia, imagina quem viveu naquela época, quando vencemos um combate contra um exército mais organizado, decretando a verdadeira separação do Brasil e Portugal. Durante as batalhas e após a vitória, o que não faltou foi hino sendo criado para contar os feitos do Dois de Julho. Era uma forma de perpetuar os heróis e a guerra. O hino oficial que conhecemos foi criado um ano após a guerra, mas dezenas de outros cânticos foram criados, como consta em jornais da época. Não existe nenhum registro jornalístico da época que fale sobre o surgimento do hino ao Dois de Julho que conhecemos hoje. Segundo pesquisa do jornalista Nelson Cadena e publicada no CORREIO, existe até um segundo hino feito pelo autor do oficial, Ladislau dos Santos Titara (saiba mais sobre ele ao lado), mas com alguns trechos diferentes do atual, datado de 1828 e disponível no arquivo público: “Viva o Brasil Independente/Vivam sábios e guerreiros/ Viva a Constituição/Dos felizes brasileiros/ Nunca mais o despotismo/Regerá nossas ações/Com tiranos não combinam/Brasileiros corações”. Também existe outro hino, cantado nos navios enviados por D. Pedro I para reforçar a segurança e o exército baiano após expulsão dos portugueses: “Hoje é a pátria que vós chama / O’ valentes brasileiros / E de ferro dos guerreiros/Vossos braços vem armar / Do Brasil a mãe primeira / Formosíssima Bahia/ Da feroz aleivosia / Quer os vis grilhões quebrar”. a autoria é de Evaristo da Veiga, mas quem eternizou o hino foi outro...
Uma coisa é certa: o autor do hino ao Dois de Julho sentiu na pele tudo que escreveu. Nascido na região em que hoje é Dias D’Ávila, Ladislau dos Santos Titara foi um militar poeta, que lutou pela independência do Brasil na Bahia e escreveu o hino ao Dois de Julho que conhecemos hoje. A data da letra é incerta, mas sabe-se que Titara lutou nos campos de batalha e transformou tudo aqui ali em versos, incluindo os confrontos em Pirajá, traduzido no hino: "Salve, ó rei das campinas / De cabrito a Pirajá / Nossa pátria, hoje livre / Dos tiranos, dos tiranos não será..." Ainda na guerra, Ladislau conheceu o cachoeirano José Barreto, que ficou encarregado de fazer a melodia. O autor de um dos principais hinos da Bahia não viu sua composição ganhar esta dimensão. O poeta e militar baiano foi autor de diversas obras e poemas sobre acontecimentos da independência da Bahia, incluindo o livro ‘Paraguassú : epopéia da guerra da Independência na Bahia’, em que ele narra, muitas vezes em versos e estrofes, passagens e combates do dois de julho. Antes da vitória derradeira, Ladislau saiu das batalhas e trabalhou na parte administrativa do exército, ajudando na expulsão dos portugueses em outros estados em seguida, morrendo no Rio de Janeiro em 1861. Uma curiosidade deste autor é que ele levou tão a sério a separação de Portugal que abandonou até seu sobrenome de batismo de origem portuguesa, Espírito Santo Melo, ficando apenas Ladislau dos Santos Titara, o homem que popularizou a palavra despotismo...
Desde 2011, qualquer jogo de futebol profissional sediado em solo baiano tem que cantar o hino ao Dois de Julho antes do hino nacional. E parece que ainda tem gente que erra a letra. "nunca mais, nunca mais o nepotiiiismo... Não é assim que canta?", indagou o rubro-negro Ednei, que estava no Barradão assistido o jogo entre Vitória e Sampaio Corrêa, na última quarta-feira. Não é assim, não, meu filho! A palavra é despotismo, que significa poder arbitrário ou autoritário. "zorra, cantei a vida toda errado", disse Ednei. Autor da obra, Ladislau dos Santos Titara era um militar, digamos, culto. Em suas outras obras sobre a independência, usa termos difíceis e até latino para descrever acontecimentos da guerra travada pelo povão. Mas despotismo se encaixa bem e acabou dando um tempero no trecho em que o autor fala sobre o ideal da luta pela independência: "Nunca mais o despotismo / Regerá nossas ações / Com tiranos não combinam / Brasileiros, brasileiros corações". O hino também lança uma provocação histórica, um prato cheio para quem reconhece o Dois de Julho como um momento mais importante que o 7 de setembro: "Nasce o sol a 2 de julho, brilha mais que no primeiro...". Curiosamente, este hino era apenas uma canção comemorativa pelo momento histórico da independência. Apenas em 2010, uma lei estadual oficializou os versos de Ladislau como o hino oficial da Bahia. O engraçado é que o estado até tinha um hino extra-oficial que o representava, que conhecemos como o hino ao senhor do Bonfim, que também fala do dois de julho...
Já repararam que o hino do Bonfim parece mais um agradecimento pela vitória no dois de julho? Pois não é só impressão. Há cem anos, quando o Dois de Julho comemorava o centenário, a Igreja do Bonfim resolveu encomendar um hino oficial para a Colina Sagrada, enquanto a Secretaria da Fazenda de salvador pediu uma homenagem ao dois de julho. Arthur de Salles, um poeta e escritor que morreu no anonimato, fez a versão cívica, que conhecemos, mas misturando Bonfim com a independência. "Glória a Ti, redentor, que há cem anos / Nossos pais conduziste à vitória / Pelos mares e campos baianos...". Não deu outra: acabou sendo referência para o Bonfim e para a festa cívica até hoje. O outro hino, o religioso, foi feito pelo Pethion de Vilar, o pseudônimo do médico baiano Egas Moniz. É pouco conhecido, mas ainda cantado na basílica, principalmente no período festivo do Bonfim, em janeiro. Dizem que esta letra também tem trechos em alusão à independência: “À sombra do teu madeiro/ sob um céu primaveril/ nasce o povo brasileiro/ cresce pujante o Brasil/ De um dia sermos vencidos/ Não nos assalta o temor/ Ao teu lado sempre unidos/ Somos teu povo, ô, senhor”. Mas a confusão não para aí. O hino tradicional caiu no gosto popular com o álbum Panis et Circensis (1968), em que Caetano Veloso populariza o hino, mas causa uma confusão sem tamanho, nunca retratado. Ao invés de atribuir ao autor verdadeira, no caso Salles, o álbum trocou as bolas, colocando como autor Pethion de Vilar. Salles acabou esquecido, diferente de outro amante da independência, Castro Alves...
Seria Estranho se o poeta do povo não falasse nada sobre o dois de julho. Mas falou, e falou muito. Castro Alves não chegou a fazer hinos imortalizados, mas escreveu três poesias sobre a vitória dos baianos no dois de julho. Uma delas, inclusive, não deixa de ser uma canção. A mais famosa é intitulada Ode ao Dois de Julho. Que diabo é ‘ode’? Simplificando o termo, é uma palavra grega que significa poemas cantados em tons entusiasmados. Ou seja, não deixa de ser um hino feito pelo nosso maior poeta. O problema é que a letra parece mais uma tragédia grega: "Tonto de espanto, cego de metralha / O arcanjo do triunfo vacilava / E a glória desgrenhada acalentava / O cadáver sangrento dos heróis!". Nos seus poemas dedicados ao dois de julho, Castro Alves sempre focou na importância da independência e na esperança que este grito tornasse o Brasil livre da tirania e da escravidão. "Não! Não eram dois povos, que abalavam Naquele instante o solo ensanguentado / Era o porvir – em frente do passado / A Liberdade – em frente à Escravidão / Era a luta das águias — e do abutre / A revolta do pulso – contra os ferros / O pugilato da razão — com os erros / O duelo da treva – e do clarão!". Castro Alves nasceu em 1847, 25 anos depois do dois de julho, que comemora seu bicentenário este ano. Curiosamente, a estátua de Castro Alves na rua chile foi inaugurada dias depois da comemoração do centenário da independência da Bahia, mais precisamente no dia 6 de julho de 1923. Na Bahia, tudo está conectado, seja por momentos históricos ou por pura magia mesmo.
O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.