Confira as contradições que levaram a polícia a desvendar a morte da delegada Patrícia

Tancredo Neves, namorado da policial, foi de vítima à preso em menos de 14h

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  • Gil Santos

Publicado em 13 de agosto de 2024 às 15:07

Tancredo Neves Feliciano de Arruda havia sido preso por agressões contra à delegada
Tancredo Neves Feliciano de Arruda havia sido preso por agressões contra a delegada Crédito: Reprodução/Redes sociais

Quando Tancredo Neves Feliciano de Arruda, 27 anos, prestou o primeiro depoimento sobre o suposto sequestro da noiva, a delegada Patrícia Neves Jackes Aires, 39 anos, no domingo (11), os investigadores ficaram surpresos com a tranquilidade e com a clareza com a qual ele relatou os fatos. Nas horas seguintes, a história inventada foi descoberta, diante das contradições. Entenda como o homem foi de vítima de sequestro a preso por feminicídio em menos de 14h, depois de, possivelmente, ter passeado com o corpo da mulher no banco do carona e passado por um pedágio.

Eram 2h40 quando a central de polícia recebeu uma ligação denunciando um sequestro. Do outro lado da linha, Tancredo Neves dizia ter tido o carro roubado e que os bandidos teriam levado também a noiva dele, a delegada de Santo Antônio de Jesus, Patrícia Aires, como refém. Segundo a delegada-geral da Polícia Civil, Heloísa Brito, uma equipe da Via Bahia, concessionária que administra a BR-324 no trecho de São Sebastião do Passé, onde o homem estava, socorreu Tancredo até uma delegacia.

Em depoimento, ele contou que estava com Patrícia em um bar, na cidade de Santo Antônio de Jesus, onde eles moravam, quando resolveram viajar para Salvador. Ao passar pela região de Sapeaçu, segundo Tancredo Neves, ele resolveu encostar o carro para fazer xixi e logo em seguida o casal foi abordado por três homens, todos supostamente em uma única motocicleta. O número de bandidos em cima do veículo, que comporta apenas duas pessoas, foi mais um alerta de que havia algo estranho na história.

O sistema de rastreamento revelou que o carro ficou parado por cerca de 40 minutos no local - tempo considerado alto pelas autoridades para quem ia apenas fazer xixi. Além disso, as câmeras da rodovia não registraram a moto citada, com três homens. Os investigadores também não encontraram reservas em hotéis ou pousadas em nome da delegada ou do suspeito em Salvador, e não havia malas ou mochilas com peças de roupas ou outros objetos pessoais no carro, o que indica que eles não estavam viajando.

Na casa onde Patrícia morava, os policiais encontraram comida em cima da mesa, a arma da delegada na bancada e outros indícios de que ela pretendia retornar para o imóvel ainda naquele dia. Quando os investigadores pediram para Tancredo explicar a ausência de imagens dos supostos bandidos nas câmeras, a falta de reserva em hotéis de Salvador em nome do casal e o cenário encontrado na residência, ele não soube explicar e insistiu nas versões.

Provas

Depois de ficar 40 minutos parado às margens da rodovia em Sapeaçu, o sistema mostra que o veículo da delegada se desloca em direção a Salvador. Por volta de 1h eles passaram pela praça de pedágio. Imagens do terminal mostram Tancredo ao volante e Patrícia imóvel no banco ao lado.

A delegada-geral aponta outra contradição: "Ele demorou mais que o comum no guichê do terminal, brincou, interagiu com o funcionário da cabine, e durante todo esse tempo a mulher permaneceu imóvel. Com as mãos e o corpo paralisados. Isso nos leva a crer que ela já estivesse morta nesse momento", contou Heloísa Brito.

A teoria da polícia contradiz a versão de Tancredo de que ele perdeu o controle do carro e invadiu uma área de mata, porque Patrícia teria puxado o volante durante uma discussão quando passavam por São Sebastião do Passé. Para os investigadores, a mulher já estava morta muito antes disso. O carro teria invadido o matagal por um erro de manobra de Tancredo ao volante.

Em seguida, ele desceu do carro, caminhou por 2 km e ligou para a central com a versão de sequestro. Os policiais perguntaram por que os supostos bandidos não levaram o celular dele e o homem respondeu que no meio da confusão teve tempo para esconder o aparelho na cueca. Os investigadores notaram que ele tinha arranhões no pescoço e marcas de picada de abelha pelo corpo.

Mais tarde, quando os peritos localizaram o carro com o corpo de Patrícia, não puderam fazer a perícia de imediato, porque havia um enxame no local. Isso foi considerado como mais uma prova da presença de Tancredo na cena do crime. Às 16h20 de domingo (11), Tancredo foi ouvido mais uma vez e, diante das contradições e das provas, recebeu voz de prisão.

Inicialmente, ele negou o crime. Na audiência de custódia o homem escolheu permanecer calado, mas, quando teve a prisão em flagrante convertida em preventiva, quebrou o silêncio e confessou que assassinou a noiva. Ele disse para os policiais que inventou a história do sequestro porque não conseguiu pensar em nada melhor naquele momento.

Ele contou que matou Patrícia durante uma discussão e que usou o cinto do carro como arma. Ele alega que estava sendo ameaçado pela delegada, porque queria terminar o relacionamento, e que estava sendo cobrado porque pegou dinheiro emprestado com a mulher, mas ainda não havia devolvido. A polícia investiga essas versões. Nesta terça-feira (13), ele foi encaminhado para o Complexo Penitenciário da Mata Escura, em Salvador. 

A delegada-geral, Heloísa Brito, foi categórica: "O crime contra as mulheres não tem a ver com classe social e nem com nível de formação. Isso aconteceu com uma delegada, mas infelizmente já vimos situações de violência doméstica ocorrerem contra juízas e promotoras, porque ele acontece não em razão da profissão, mas em razão de ser mulher. O homem entende que pode subjugar a mulher independentemente do cargo e do esclarecimento dela", afirmou.

Assassinato

O crime aconteceu no domingo (11). Tancredo contou para os policiais que teve uma discussão com Patrícia que evoluiu para agressões físicas. O casal estava dentro do carro da delegada e o suspeito confessou que usou o cinto para estrangular a vítima por 40 segundos.

Amigos da delegada contaram que o relacionamento tinha começado há cerca de quatro meses, que as brigas entre eles eram frequentes e que ela foi agredida em alguns desses momentos. A delegada teve uma medida protetiva contra Tancredo concedida após ele quebrar o dedo dela, em maio, mas reatou o relacionamento algumas semanas depois.

A polícia descobriu que Tancredo e Patrícia planejavam casar há duas semanas, mas que a mulher desistiu. O homem teria voltado ao cartório na semana seguinte para tentar remarcar a cerimônia. A funcionária que fez o atendimento será ouvida ainda nesta terça-feira.

Tancredo tem uma ficha extensa de registros na polícia. Ele responde, por exemplo, a dois inquéritos por agressão a mulher em Itamaraju, no extremo sul do estado, de onde ele é originário. Ele também tem um processo por agressão a uma médica, em Feira de Santana, e responde por exercício ilegal da medicina e falsidade ideológica. Em 2018, ele foi acusado de empurrar a namorada do 5º andar de um prédio, em Foz do Iguaçu, no Paraná.

Nesta terça-feira, durante uma reunião com a imprensa, o secretário da Segurança Pública da Bahia (SSP), Marcelo Werner, lamentou o ocorrido. Ele começou a coletiva dizendo estar consternado, se solidarizou com a família da delegada e explicou que o objetivo do encontro foi apresentar o trabalho de investigação.

Marcelo Werner afirmou que combater a violência de gênero é uma pauta constante da pasta, citou a criação de unidades especializadas na investigação dos crimes de feminicídio, a ronda Maria da Penha e palestras de conscientização realizadas em escolas. O secretário classificou o crime como covarde, lembrou da importância da rede de assistência para vítimas de violência doméstica e parabenizou o trabalho da investigação.

Tancredo Neves será indiciado por homicídio, ocultação de cadáver e pelo registro de falsa ocorrência, por conta do suposto sequestro. O corpo de Patrícia foi sepultado na tarde desta terça-feira em Recife (PE), onde vive a família da delegada. Ela deixou um filho de 7 anos de outro relacionamento.