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Condutores sem habilitação, alcoolizados e superlotação: os problemas do transporte marítimo

Parte do setor ainda enfrenta problemas como falta de manutenção das embarcações

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 7 de janeiro de 2024 às 07:00

Embarque em Paripe, rumo à Ilha de Maré
Embarque em Paripe, rumo à Ilha de Maré Crédito: Ana Albuquerque/CORREIO

Por toda Morro de São Paulo, distrito da cidade de Cairu, vendem-se passeios. Tia e dois sobrinhos passeavam por lá, no verão passado, quando aceitaram uma das ofertas: R$ 700 para percorrer, de lancha, pontos paradisíacos da região. A viagem deles estava só no início quando os problemas começaram. Em terra firme, os três descobririam ter sido vítimas de uma viagem clandestina.

As memórias daquele 17 de janeiro de 2023 voltaram à tona no dia 29 de dezembro, quando dois turistas morreram depois da colisão entre duas lanchas, na Ilha de Boipeba. "Isso disparou a lembrança. A gente por milagre não morreu", diz a tia, que percorreu o mesmo trajeto (chamado “Volta a ilha”) onde ocorreu o acidente.

O comandante da embarcação de passeio envolvida na batida, segundo a Polícia Civil, apresentava sinais de embriaguez e foi preso. O outro barco fazia a travessia entre Valença e Boipeba. A Capitania dos Portos apura o ocorrido.

Pouco mais de um ano antes, a família de baianos, que pede para não ser identificada, iniciava o trajeto em uma tarde de sol. A primeira intercorrência logo aconteceu.

"Ele seguiu para alto-mar. A barra de direção quebrou e a lancha desgovernou. Rodava no meio do mar e a gente pulando dentro da lancha. [Mas] a gente ainda não tinha ideia do que estava acontecendo."

Passageira de embarcação ilegal.

Ela e machucou o cóccix durante as batidas na embarcação. 

O piloto, ainda na versão dela, mergulhou e reparou o problema. A viagem, então, seguiu. Em Boipeba, quando pararam em um restaurante, ela diz ter avistado o condutor beber uma cerveja.

No Rio do Inferno, no caminho de volta para Morro, os problemas seguiram. A lancha, dessa vez, atolou. Os passageiros, em pedido de socorro, acenavam para barcos vizinhos. "Mas ele [piloto] dizia para não chamarmos, que íamos atrapalhar", recorda a mulher.

Passava das 18h quando desembarcaram em Morro. No hotel, relataram o ocorrido para o proprietário, que chamou agentes da Prefeitura de Cairu. Deles, os turistas ouviram ter partido em um barco ilegal.

Depois disso, ainda de acordo com eles, o piloto da lancha os perseguiu. "Dizia que se acontecesse algo com ele, a gente ia ver". No dia seguinte, eles voltaram para Salvador. "Cheguei pensar em fazer a denúncia, mas fiquei com medo. E tem a dificuldade de falar sobre quase morrer. Esse negócio me fere até hoje".

A situação relatada pela família está base de problemas que ainda afetam parte do setor marítimo, segundo condutores que trabalham legalmente, empresários, turistas e nativos.

Os principais desafios, eles dizem, são a falta de formação de alguns condutores, superlotação das embarcações, condição dos barcos e uso do álcool durante o trabalho.

"O conjunto da obra em todo lugar é sempre o mesmo", afirma um condutor de embarcações de Valença, cidade de onde também saem embarcações de passeio. Ele diz que barcos guiados por pessoas sem habilitação correta são uma realidade, seja pelos próprios proprietários ou contratados por empresas e associações.

"Temos embarcações classificadas como miúdas, das quais os comandantes são auxiliares de convés. E temos uma embarcação com o porte maior, que lota moço de convés. A primeira precisa de duas semanas de curso e o segundo de seis. Olhe a disparidade. Aí os donos dessas embarcações, visando o lucro, contratam pessoas não capacitadas. É como um ônibus guiado por uma carteira de moto", compara ele.

Verão eleva procura por passeios 

Até fevereiro, são aguardados na Bahia 6,5 milhões de turistas, calcula a Secretaria de Turismo do Estado (Setur). Entre os oito destinos mais procurados, seis são litorâneos, como Morro de São Paulo.

Em Cairu, explicou o secretário municipal de Turismo, Cláudio Brito, o verão também era – ele flexiona o verbo no passado - o período de proliferação da clandestinidade. “Em um grande dia de movimento, saíam até 25 embarcações ilegalmente”, estima.

Mas, segundo o gestor, a criação de um aplicativo chamado Viva Cairu, em novembro de 2021, enfraqueceu as embarcações ilegais.

"Agora, as embarcações são cadastradas, temos uma fiscalização atuante. Hoje, posso garantir que pode acontecer de sair um barco ilegal, uma vez por semana, talvez, mas logo é detectado."

Secretário de turismo de Cairu.

Gestor diz não lembrar da situação dos turistas de Salvador em uma embarcação ilegal, no verão passado.

O fluxo de turistas nesta época do ano eleva, é claro, a procura por passeios marítimos. Enquanto conversava com a reportagem, na tarde da última sexta-feira (5), Cláudio acompanhava, pela tela do celular, o fluxo de turistas no mar. “837 turistas estão em passeio agora”.

Por isso, a Capitania dos Portos intensifica, no período, as fiscalizações. Em dezembro passado, 22 condutores foram abordados sem a habilitação - 11 deles entre Morro de São Paulo, Boipeba e região.

Ao longo de todo o ano passado, foram 18,9 mil abordagens, que geraram 907 notificações e 153 apreensões. A Capitania, no entanto, diz não recebido "denúncia de contratação de condutores sem habilitação". "Esse órgão fiscalizador não chega como deveria. Se chegasse, com certeza donos de embarcação não negligenciavam", contrapõe um condutor de embarcações de Valença. 

É no verão, também, que cresce o fluxo de pessoas que burlam a lei e vendem passeios em busca de renda extra. Em janeiro de 2021, outra colisão entre duas lanchas, em Boipeba, matou uma criança de 12 anos. Uma das embarcações estava legalizada. A outra, não.

Hoje, está em curso apenas um Inquérito sobre "acidentes e fatos da Navegação" - ocorrido em Boipeba, em 2023. A Polícia Civil não respondeu sobre o andamento do inquérito ligado à morte registrada em 2021.

Boipeba, na Ilha de Tinharé
Boipeba, na Ilha de Tinharé Crédito: Tatiana Azeviche/Setur-BA

As estatísticas de acidentes também estão dispersas. De 1996 a 2022, 72 pessoas morreram em acidentes de transporte por água na Bahia, segundo o DataSus.

Os dados, no entanto, apresentam inconsistências. Por exemplo: em 2017, 19 pessoas morreram no maior acidente marítimo do estado, quando a embarcação Cavalo Marinho 1 virou na Baía de Todos-os-Santos. Mas, no Datasus, aparecem dois mortos no ano. Questionado, o Ministério da Saúde não explicou a discrepância.

Para a empresa Princesinha, que atua há 20 anos na Baía de Camamu, dois dos principais problemas que atingem o setor são:

"Tem gente sim habilitada para lancha que está guiando escuna. Tem alguns que têm lancha própria que acabam fazendo isso. Outro problema é a falta de manutenção em embarcações. Se falhar um motor, e tiver algo na frente, ninguém consegue desviar".

Segundo a Capitania dos Portos, nenhuma empresa foi notificada, em 2023, por empregar condutor não habilitado. A Associação dos Transportadores Marítimos da Bahia (Astramab) não atendeu à reportagem. As prefeituras de Valença e Camamu também não responderam às solicitações.

'Há pessoas que bebem comandando', diz condutor de embarcação

O transporte hidroviário é um serviço de competência do Estado, mas outorgado à iniciativa privada. É a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) quem regula e fiscaliza os serviços, mas não respondeu quantas empresas podem realizar transporte marítimo.

Os destinos mais próximos de Salvador, pelo mar, são as ilhas de Maré e dos Frades e Mar Grande, distrito de Vera Cruz.

Para chegar à Ilha de Maré, um dos pontos de partida é o Terminal de São Tomé de Paripe, a 15 quilômetros de distância. Um dos condutores habilitados que percorre essa rota há dez anos conversou com a reportagem, sob anonimato.

"O principal problema é que há pessoas que bebem comandando. Às vezes, até um proprietário de lancha navega bebendo."

Condutor de lanchas.

Há 10 anos no trajeto Salvador-Ilha de Maré, ele elenca problemas na rota.

No ano passado, a Capitania aplicou 997 testes de bafômetro em condutores de embarcações. O número de resultados positivos, no entanto, não foi compartilhado.

Trânsito de embarcações em Ilha de Maré Crédito: Arquivo CORREIO/Angeluci Figueiredo

Nascido na Ilha de Maré, o condutor conhece quem vende passeios e travessias sem habilitação e com superlotação de embarcações. "Isso está à vista. Parece que não tem medo. A gente não fala sobre. Cada um segue sua vida".

A travessia, por pessoa, custa em média R$ 10. Caso opte por viajar sozinho ou em pequeno grupo, o passageiro pagará até R$ 250.

O condutor de embarcações e empresário Jorge Santiago, 26, organiza um percurso diferente: sai de Madre de Deus com destino a Ilha dos Frades ou em passeios pela Baía. Mas afirma que os problemas na rota são semelhantes.

"Tem muita gente, antiga, que conhece bem o mar, mas se a Marinha disponibiliza cursos, tem que fazer. Imagina, você trabalha vidas. Condutor sem habilitação pode causar um acidente, além de embarcações mal preparadas, lotadas. O trabalho tem que ser exemplar para que não ocorra nenhum erro. "

Jorge Santiago

Condutor de embarcações e sócio da Felicidade Passeios.

Para impedir a ingestão do álcool no serviço, Santiago apela para o currículo dos profissionais contratados e diálogo com restaurantes e bares por onde suas embarcações passam.

"Geralmente, temos parcerias com restaurantes, para facilitar para o cliente até. Eu checo os condutores, são pessoas de confiança minha, mas eu preciso olhar, conferir. No restaurante, já peço que disponibilizem, de bebida, só água, um refrigerante", afirma ele.

A modernização dos anos 80 

A história do transporte hidroviário na Bahia começa com as populações indígenas. De troncos de madeira, moldavam as embarcações. A colonização portuguesa inaugura, no século 16, uma nova era, com a chegada de naus, caravelas e saveiros.

O século 20 traz novas inovações para as águas, com o surgimento de tecnologias mais modernas e as matérias-primas derivadas do petróleo. É quando surgem embarcações construídas em fibra de vidro, como lanchas. O tempo de viagem é reduzido — e o turismo se beneficia disso.

Imagem Edicase Brasil
Morro de São Paulo , distrito de Cairu  Crédito: ThalesAntonio | Shutterstock

Até os anos 80, Morro de São Paulo, por exemplo, era acessado por três tipos de embarcação. O guia de turismo Walter Araújo, 72, acompanhou esse período.

"Fazíamos tudo isso em saveiro. Com a modernização chegou a lancha, aí começou a ter mais apoio. Aí chegava a Capitania aqui com 35 vagas para curso. E fazia uma prova de português e matemática, um monte de assunto que o pescador desconhecia. Quem passava era secretário, engenheiro. Eu digo e assumo isso."

Walter Araújo

Guia acompanhou de perto modernização das embarcações.

Para ele, "é a minoria que faz coisa errada, mas lidar com o ser humano sempre traz exceções. Agora, tem a dificuldade de ter condutores capacitados".

A reportagem acionou o Ministério Público da Bahia e o Ministério Público do Trabalho sobre ações relacionadas ao transporte marítimo. Ambos, no entanto, estão em recesso.