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Maysa Polcri
Publicado em 10 de agosto de 2023 às 05:30
Desde muito antes de se tornar museu, a morada de Jorge Amado e Zélia Gattai, carinhosamente apelidado de Casa do Rio Vermelho, já atraia a atenção de visitantes. Ônibus de turismo estacionavam em frente a residência de número 33 da R. Alagoinhas, que recebia de desconhecidos até as mais ilustres personalidades mundiais. O museu-casa guarda, até hoje, as lembranças dos anos em que a família ali viveu e é um convite para adentrar a intimidade do escritor baiano, que completaria 111 anos nesta quinta-feira (10).
Pouco mudou desde que a Casa do Rio Vermelho se tornou um museu para receber oficialmente os visitantes, em 2014. É certo que as árvores do bosque plantadas por Jorge e Zélia na década de 60 cresceram, parte do acervo de 100 mil páginas de cartas agora é exposto e a piscina que recebia convidados não tem mais água. Mesmo assim, a sensação ao entrar no museu é que a qualquer momento podemos esbarrar com os donos da casa em algum cômodo. Os móveis antigos conservados e a máquina de escrever de Jorge em cima da mesa da sala ainda carregam a presença dos antigos moradores.
Nada disso é por acaso. Quando Zélia Gattai, já viúva, concordou que a casa se tornasse um museu, fez um pedido que foi seguido à risca pela neta Maria João Amado. “Ela queria uma casa que fosse casa, que sofresse o mínimo de interferência possível”, relembra. Maria se identifica como a primeira funcionária do museu e foi quem deu início a catalogação das peças, que chegam a 3 mil. Somente no ano passado, a Casa do Rio Vermelho recebeu 37.864 visitantes vindos de mais de 80 países.
A maior parte deles, no entanto, são moradores da Bahia interessados em conhecer mais da história do casal. No mês passado, cerca de 7 mil pessoas estiveram no museu. “Como neta, eu enxergo o museu como uma forma de retribuição de todo o carinho que sempre foi dado pelo povo. E, como gestora, sinto que é uma forma das pessoas terem uma diversão cultural de qualidade”, afirma Maria João. A neta e gestora não soube informar quantas pessoas passaram pelo local desde a inauguração.
As projeções de vídeos que contam as histórias da Casa do Rio Vermelho e do casal, dividem espaço com o acervo que aproxima os visitantes do cotidiano dos escritores. A coleção de objetos da cultura popular brasileira, entre eles, muitos sapos (animal preferido de Jorge), é integrada com obras de artistas consagrados. Quem olha com a devida atenção para os detalhes da casa, percebe que a residência é, na verdade, uma colcha de retalhos de afetos.
O gradil feito por Mário Cravo, pratos com poemas de Tom Zé na parede da cozinha, azulejos criados por Carybé e sugestão de Lina Bo Bardi para os mosaicos de azulejos no piso. Além de servir de ponto de encontro de nomes renomados na cena cultural baiana e nacional, a Casa do Rio Vermelho também era, em alguma medida, um pouco de cada um deles. “O casal sempre teve o costume de deixar à mostra os presentes de amigos e isso foi mantido no museu. A casa tem um dedinho de cada amigo de Jorge e Zélia”, explica Clarissa Nascimento, museóloga que trabalha há cinco anos no local.
Paloma Amado, filha de Jorge e Zélia, era criança quando os pais decidiram deixar o duplex em que a família morava no Rio de Janeiro e se mudar para a capital baiana. Ela lembra bem das visitas aleatórias de pessoas que subiam a ladeira para tocar a campainha da casa. “Muita gente passava por lá, desde absolutamente desconhecidos até as pessoas mais importantes que você possa imaginar”, diz. Um dos ilustres desconhecidos foi o autor Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, que foi recebido por Jorge e Zélia quando tinha 19 anos, em 1998. Com uma edição de ‘Capitães da Areia’ em mãos, o jovem ganhou um autógrafo de Jorge Amado e um exemplar de ‘Anarquistas, Graças a Deus’, escrito por Zélia.
Se agora o local serve de lembrança de como eram os dias na residência, a história dos escritores com o local não teve início com amor à primeira vista. Na verdade, a casa estava longe de ser a dos sonhos do casal, que se apaixonou por outras, da Pituba até Itapagipe. No livro ‘A Casa do Rio Vermelho’, Zélia Gattai descreve a dificuldade.“Quem tinha uma boa casa não queria vendê-la”. Só na segunda viagem em busca de uma casa na capital baiana, a escritura da casa foi assinada. O terreno grande e a vista para o mar serviram de atrativo, já que a construção, àquela altura, era “grande e desconfortável”.
De frente para a porta de entrada da casa, uma escultura de Exu observa a movimentação de quem entra e sai. Encomendado ao ferreiro Manu, a obra foi instalada no jardim em 1966, antes de Jorge e Zélia se mudarem. Em suma, Exu foi o primeiro morador da casa de número 33. Quando soube da sua presença, Mãe Senhora (Yalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá) mandou que seu filho, Mestre Didi, providenciasse o assentamento.
A passagem diz muito sobre a relação de Jorge Amado com a religiosidade. O baiano chegou a ser conselheiro (Obá de Xangô) no terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e, não por acaso, o sincretismo religioso está presente em diversas de suas obras. O arco e flecha, símbolos do seu orixá, Oxóssi, fazem parte dos azulejos azuis feitos por Carybé e espalhado pela casa. A imagem do espelho, ao lado, faz referência a Oxum, orixá de Zélia.
Os encontros de amigos como Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Glauber Rocha, Tom Jobim, e muitos outros, serviram de impulso para reformas. A cozinha precisou ser duplicada e, para isso, o casal comprou a casa do vizinho ao lado. A ampliação rendeu mais um quarto de hóspedes.
O closet ficou maior depois que Paloma se casou e deixou a residência. Mais espaço para as camisas coloridas de Jorge Amado, símbolo do escritor. No museu, as roupas dividem espaço com cartas trocadas durante o passar das décadas. Há correspondências de personalidades como Monteiro Lobato, Oscar Niemeyer e Carlos Drummond de Andrade.
Nem sempre os convidados rendiam só gentileza aos anfitriões. O escritor e político Pablo Neruda, por exemplo, se recusou a passar a noite no quarto de hóspedes da casa em uma visita a Salvador e se hospedou em um hotel. O motivo? Não aceitava dormir separado da esposa e o cômodo tinha duas camas de solteiro. Pouco depois, Jorge e Zélia, receptivos como eram, providenciaram uma cama de casal.
Mesmo com a passagem para outro plano, a presença do casal pode ser sentida em todos os cantos da casa e, mais especialmente, no jardim. No bosque recheado de árvores frutíferas, as cinzas de Jorge e Zélia foram depositadas ao lado do banco em que eles se sentavam. O entorno da casa foi modificado com a construção, mas, o local continua sendo reduto de tranquilidade e afeto. Um respiro em meio ao caos da cidade.
O escritor baiano Itamar Vieira Júnior, autor do best seller Torto Arado, participa nesta quinta-feira (10) de um bate-papo em comemoração ao aniversário de Jorge Amado. Se estivesse vivo, Amado completaria 111 anos. O evento acontece na Casa do Rio Vermelho, às 17 horas, e o espaço está sujeito à lotação. Além disso, os visitantes encontram, na casa, cartas trocadas pelo casal, coleção de objetos da cultura popular brasileira, biblioteca com todas as edições dos livros publicados e um acervo audiovisual.
As visitas mediadas, para quem deseja desvendar segredos da intimidade de Jorge e Zélia, acontecem no museu hoje (10), e sexta-feira (11), às 15h30 No sábado (12) e domingo (13), além deste horário, a visita mediada acontece às 11 horas. Há ainda uma programação especial para as crianças, o Caçadores de Sapos, que convida os pequenos a encontrarem os objetos que Jorge colecionava. A atração ocorre no final de semana, às 10h30.
A Casa do Rio Vermelho funciona de terça à domingo, das 10h às 18h. A entrada só é permitida até uma hora antes do fechamento no museu. Os ingressos custam R$20 (inteira) e R$10 (meia). Moradores de Salvador, que estiverem com comprovante de residência em mãos, pagam meia. Já nas quartas-feiras, a entrada é gratuita para todos. Para mais informações, acesse a página do Instagram (@acasadoriovermelho).