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Maysa Polcri
Publicado em 14 de outubro de 2024 às 15:22
Uma campanha publicitária do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), veiculada em outdoors espalhados por Salvador, gerou polêmica entre a classe médica baiana - e não somente nela. Em uma das três peças da publicidade, a imagem espelhada de uma mulher negra é acompanhada da frase: “Uma delas é falsa. Na dúvida, consulte o site do Cremeb”. O intuito era alertar sobre os riscos dos falsos profissionais, mas pessoas apontam que a campanha incita o racismo.
As discussões sobre a campanha ganharam força nas redes sociais a partir de um vídeo publicado pela professora e escritora Bárbara Carine. Em seu perfil no Instagram, ela denuncia a campanha e defende que a publicidade reforça estereótipos racistas. O vídeo teve mais de 750 mil visualizações em dois dias. Além de 2,6 mil comentários, a maioria deles questionando a peça publicitária.
“Isso que o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia fez é muito bizarro. Incita pensamentos racistas, reforça o estereótipo racista do ponto de vista social que permeia esse imaginário coletivo social”, diz Bárbara Carine, que é idealizadora da primeira escola afro-brasileira do Brasil. Na publicação, a professora não diz que a campanha é uma das três veiculadas pela instituição médica.
Além do outdoor que contém a imagem de uma mulher negra que representa uma médica, outras duas estão espalhadas em Salvador. Em uma delas, uma mulher branca e, em outra, um homem branco aparecem representando médicos. Um dia após a primeira publicação, Bárbara Carine publicou outro vídeo, comentando as demais campanhas e reforçando seu posicionamento.
“Uma diversidade muito pouco inteligente, ao colocar um sujeito isolado ali, para representar algo de negatividade. Como falei, eu só vi, no meu trajeto, pessoas negras. Muitas outras pessoas negras podem só se ver. E se pessoas negras estão trazendo que estão incomodadas, isso deveria ser minimamente um sinal de sensibilidade para essa problemática”, afirma.
Até a manhã desta segunda-feira (14), a publicação tinha alcançado 143 mil pessoas e tinha cerca de 400 comentários. A repercussão foi significativamente menor do que a primeira publicação. Bárbara Carine foi procurada pela reportagem, mas preferiu não conceder entrevista sobre o assunto.
O médico Otávio Marambaia, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia, rechaçou as denúncias de que a propaganda é racista. As três peças publicitárias foram lançadas no dia 5 deste mês. “Não houve nenhuma intenção de fazer qualquer referência a uma raça ou outra. Mas, justamente, mostrar a diversidade. O falso médico se apresenta, obviamente, de qualquer gênero, etnia e idade”, afirma.
Otávio Marambaia chama atenção para o aumento das denúncias e os riscos de ser atendido por profissionais falsos. Desde janeiro até esta segunda-feira (14), o Cremeb recebeu 54 denúncias de falsos médicos atuando na Bahia. “Nós queremos que as pessoas saibam que é possível fazer a denúncia ao conselho. Enquanto alguns ficam acusando o conselho, nós estamos interessados na segurança da população”, completa.
O Cremeb também justifica, em nota, que a campanha tem o intuito de contemplar a diversidade. Por isso, foram criadas três peças publicitárias, com atores que representam médicos brancos e negros. “A autarquia federal tem como objetivo refletir a pluralidade da sociedade em todas as suas iniciativas, assegurando que diferentes grupos sejam igualmente representados e respeitados”, pontua. A lista de profissionais aptos a exercer a medicina pode ser conferida no site do conselho.
Para a professora Bárbara Carine, no entanto, os falsos médicos se aproveitam da passabilidade das pessoas brancas para enganar os pacientes. A passabilidade é a capacidade de uma pessoa ser considerada membro de um grupo ou categoria diferente da sua. "São pessoas brancas que tem passibilidade, estética do poder, para cometer certos tipos de crime de falsidade ideológica", diz.
A campanha publicitária repercutiu rapidamente entre a classe médica baiana e, em alguns casos, trouxe lembranças amargas de um cotidiano de preconceito. É o caso da médica obstétrica Jaqueline Neves, que é negra. Ela conta que só viu a peça da campanha que apresenta uma mulher negra enquanto transitava pela cidade.
Ter que comprovar que é, de fato, formada em medicina é recorrente no seu trabalho. Em uma das clínicas que já atendeu, Jaqueline passou a andar portando o crachá, justamente para não ter que se explicar.
"É comum que as pessoas desconfiem dos médicos negros e questionem a nossa conduta. Pedem para ver nosso crachá ou até o diploma. Eu passei por uma situação que, de tanto as pessoas perguntarem, eu andava de crachá. Estava cansada de ter que me identificar toda hora", diz a médica. "Colocar um outdoor desse é reforçar o racismo e estereótipo de que o negro não é para aquela profissão", opina Jaqueline Neves.
Um outro argumento citado tanto por Bárbara Carine como por Jaqueline é a representatividade dos negros na medicina. Um levantamento de Demografia Médica do Brasil, publicado em 2020, revelou que apenas 3,4% dos concluintes de medicina em 2019 se autodeclararam negros, 24,3% se declararam pardos e 67,1% se declararam brancos. São os dados mais atualizado sobre o assunto.
A médica Andreia Betriz, especialista em medicina da Família e Comunidade, também se incomodou quando recebeu a peça publicitária do Cremeb em um grupo de mensagens de colegas de profissão. "Em uma sociedade racista como a nossa, dizer para a população em geral que uma médica negra pode ser falsa soa muito diferente de dizer que um médico branco ou médica branca podem ser falsos. Reforçar estereótipos arraigados não contribui para superar as desigualdades raciais que exitem", observa.
O Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb) esclarece que o outdoor citado é apenas um dos três modelos utilizados nesta campanha publicitária, que visa combater o exercício ilegal da medicina.
A autarquia federal tem como objetivo refletir a pluralidade da sociedade em todas as suas iniciativas, assegurando que diferentes grupos sejam igualmente representados e respeitados.
Enfatizamos que os que praticam o exercício ilegal da medicina têm representantes em todas as etnias, cores, gêneros e faixa etária. A campanha traz a diversidade da nossa sociedade e o seu objetivo é despertar em todos o cuidado com quem trata a sua saúde. Na dúvida, consulte o site do Cremeb