Baianinha gigante: conheça a menina de 10 anos que enfrentou as tropas portuguesas com as palavras

Identidade de Urânia Vanério só foi descoberta no ano passado por uma professora da Ufba; menina escreveu o panfleto "mais radical" pró-independência

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 1 de julho de 2023 às 05:00

A identidade de Urânia Vanério só foi conhecida no ano passado, com a pesquisa da professora Patrícia Valim, da Ufba. Não há registros imagéticos conhecidos dela até então
A identidade de Urânia Vanério só foi conhecida no ano passado, com a pesquisa da professora Patrícia Valim, da Ufba. Não há registros imagéticos conhecidos dela até então Crédito: Ilustração: Quintino Andrade

Entre os dias 19 e 21 de fevereiro de 1822, a menina Urânia Vanério decidiu colocar em palavras a indignação que tanto sentia pela violência entre tropas portuguesas e baianas na guerra pela independência. Da janela de casa, no Centro de Salvador, assistiu a episódios marcados pela brutalidade, como quando a freira Joana Angélica foi morta pelos soldados lusitanos.

Foi assim que, do alto de seus 10 anos de idade, Urânia escreveu aquele que é considerado um dos mais radicais panfletos pró-independência. "Justos céus, de que nos servem/ bases da Constituição/se a lusa tropa só quer/ impor-nos a escravidão?", dizia, no panfleto intitulado Lamentos de uma Baiana.

Este talvez seja o momento em que você se pergunte por que nunca ouviu falar de Urânia. É provável que nunca tenha escutado seu nome nas aulas da escola, nem mesmo visto por aí retratos dela ao lado de outras heroínas da independência, como Maria Quitéria, Joana Angélica ou mesmo Maria Felipa, cujas tentativas de apagamento vêm sendo denunciadas há mais tempo por historiadores e movimentos sociais. De fato, nem mesmo há registros imagéticos conhecidos de Urânia até então.

A existência de Urânia tornou-se conhecida nas últimas décadas, entre pesquisadores que se dedicam a estudar a história da Bahia ou a independência. No livro Guerra Literária: Panfletos da Independência, de 2014, por exemplo, os autores destacavam o poema escrito pela menina, chamando-o de "revoltado e dolorido protesto contra a ação das tropas do general Madeira de Mello". Só que, durante todo esse tempo, Urânia nem mesmo tinha nome. Era conhecida como a "baianinha".

Isso só mudou no ano passado, quando a historiadora Patrícia Valim, professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia (Ufba) conseguiu resgatar sua trajetória e sua identidade. "Urânia Vanério é a autora do principal panfleto produzido nas lutas das províncias", diz a professora. A nota de rodapé do panfleto dizia que a menina tinha 13 anos, o que foi erroneamente difundido mesmo entre estudiosos do tema, por muito tempo.

""Urânia Vanério é a autora do principal panfleto produzido nas lutas das províncias","

Patrícia Valim
Historiadora e professora da UFBA que identificou Urânia Vanério

Na época, os panfletos eram uma forma eficaz de comunicação política. No artigo em que discorre sobre a identidade de Urânia, a professora Patrícia Valim explica que eles eram tanto afixados em locais de grande circulação de pessoas quanto lidos em diferentes estabelecimentos, sempre com o objetivo de mobilizar mais gente em torno de uma causa - neste caso, a independência. A autoria deles, contudo, era majoritariamente masculina.

"São apenas cinco mulheres (autoras de panfletos). Duas são portuguesas e três são brasileiras, sendo uma delas uma menina baiana de 10 anos que precisou alterar a idade para ser lida e ter seu panfleto lido na época", reitera, em entrevista ao CORREIO.

Urânia era uma menina branca, filha de portugueses, nascida na Bahia e que se reconhecia como baiana. Ainda hoje, há quem a confunda por uma pessoa parda. "Não adianta escurecê-la. Ela tem pai e mãe portugueses, o que não tira sua importância nesse conjunto de mulheres que lutaram e se envolveram na independência", acrescenta Patrícia, em entrevista.

O panfleto Lamentos de Uma Baiana foi escrito por Urânia Vanério, na época com 10 anos
O panfleto Lamentos de Uma Baiana foi escrito por Urânia Vanério, na época com 10 anos Crédito: Reprodução

Descoberta

Urânia nasceu em 1811. Era filha única de Angélica e Euzébio Vanério, dois professores que chegaram a fundar um colégio na Barroquinha. Ainda que não fossem uma família rica, eram pessoas dedicadas à educação. A menina foi, inclusive, alfabetizada também em outras línguas, como inglês, francês e italiano - essas habilidades viriam, no futuro, capacitá-la até para traduzir obras literárias.

Segundo os achados da pesquisadora Patrícia Valim, portanto, Urânia pode ser considerada a primeira tradutora do Brasil, já que começou cerca de 10 anos antes de Nísia Floresta, que detinha o posto.

O caminho até essas descobertas - em especial, a identidade da baianinha -, porém, não foi tão simples ou rápido. Passou pela própria trajetória de pesquisa da professora Patrícia, que se tornou docente da Ufba em 2015, mas já se dedicava à história da Bahia desde o mestrado e o doutorado feitos na Universidade de São Paulo. Com estudos sobre a Conjuração Baiana, ela entrou em contato com o panfleto de Urânia no passado.

Ao ler a tese do pesquisador Roberto Paixão sobre o pai de Urânia, Euzébio, defendida no doutorado em Educação na Universidade Federal de Sergipe, Patrícia encontrou a menção de que ele era pai de uma única filha, que teria cuidado de sua escola.

"Quando vou pesquisar, encontro o nome de Urânia Vanério. Isso demora muitos anos. Ouvindo assim, parece que é rápido", lembra. A confirmação também veio com o obituário de Urânia, publicado no Correio Sergipense em 1850. No texto, o autor cita que ela tinha escrito versos pela "desgraça da pátria".

Ao encontrar Urânia, Patrícia conta ter ficado profundamente emocionada. Foi como uma consagração do trabalho. “Me sinto muito agradecida. A história da Bahia me dá régua e compasso. Sou profissional historiadora graças à história da Bahia”, afirma. “Eu fico andando ali pelas ruas e imaginando que ela viu o assassinato de Joana Angélica da janela do quarto. Ando ali e fico emocionada imaginando essas pessoas nos séculos 18, 19, vivendo, andando e sonhando”, acrescenta.

Vida

Alguns meses após a circulação do panfleto, Urânia e os pais se mudam para Cachoeira, porque Euzébio se torna integrante do conselho de governo da cidade. No ano seguinte, após a independência, passam a viver em Sergipe. Em um contexto cheio de tensões e divergências políticas, as disputas locais fizeram com que ele fosse preso e, assim, enviado ao Forte de São Pedro.

É dessa forma que, em 1824, Urânia e sua mãe também retornam a Salvador e decidem reabrir o colégio da família. Ela chegou a enviar um ofício ao imperador pedindo uma licença para a abertura da escola, o que foi aceito. Dois anos depois, a imprensa noticiava a tradução de Triunfo e o Caráter de Patriotismo, obra assinada pelo poeta e romancista francês Jean-Pierre Claris de Florian, sob seu pseudônimo M. de Florian. Com essa obra, Urânia pode ser considerada a primeira tradutora brasileira.

Para a professora Patrícia Valim, é preciso ter em mente que o conceito de infância tido na época era diferente do atual. Não seria estranho, portanto, nem o seu envolvimento com a luta pela independência, menos ainda com a educação.

"“Ela está fazendo isso na província que tem o porto mais importante. Não é à toa que tem tanta tropa portuguesa e o plano de Portugal era quebrar o que viria a ser o Brasil ao meio a partir da Bahia”."

Patrícia Valim
Historiadora e professora da UFBA

Urânia se casou em 1827 com Felisberto Gomes de Argollo Ferrão, integrante de uma das famílias mais ricas e importantes da Bahia. Mesmo nessa época, ela continuou trabalhando no colégio de seus pais. A baianinha e Felisberto tiveram 13 filhos até que, no parto do último, Urânia faleceu devido a uma infecção.

"A gente acha que 10 anos é cedo, mas, para a época, não era. Ter tido 13 filhos e morrido no parto é lamentável, mas ela deixou um legado. Ela já estava em outro lugar. Não sei se à frente de seu tempo, mas numa luta com a prática para a conquista de direitos", acrescenta Patrícia.

Livro

O artigo com a história de Urânia Vanério assinado pela professora Patrícia Valim foi publicado no ano passado no livro Independência do Brasil: As Mulheres que estavam lá, organizado pela roteirista Antônia Pellegrino e pela professora Heloísa Starling, docente titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A professora Heloísa cita um episódio em que a professora Lúcia Bastos, docente da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e uma das autoras do livro Guerra Literária, encontrou o panfleto de Urânia Vanério na Biblioteca Nacional, durante a pesquisa de seu doutorado, defendido na USP em 1992. Ali, Urânia ainda não tinha nome conhecido - era a “Baianinha”.

“Ela (Lúcia) fez várias fichas, porque naquele tempo não tinha celular e não podia tirar xerox de um documento de 200 anos. Então, ela copia o panfleto em várias fichas e eu consegui que ela me passasse uma dessas fichas”, conta.

A historiadora Lúcia Bastos, professora da Uerj, documentou o panfleto da baianinha em 1992
A historiadora Lúcia Bastos, professora da Uerj, documentou o panfleto da baianinha em 1992 Crédito: Lúcia Bastos/Reprodução

Heloísa enfatiza o fato de que Urânia escreveu o panfleto em uma província estratégica. “Ela está fazendo isso na província que tem o porto mais importante. Não é à toa que tem tanta tropa portuguesa e o plano de Portugal era quebrar o que viria a ser o Brasil ao meio a partir da Bahia”.

"“Ela (Urânia) está fazendo isso na província que tem o porto mais importante. Não é à toa que tem tanta tropa portuguesa e o plano de Portugal era quebrar o que viria a ser o Brasil ao meio a partir da Bahia”."

Heloísa Starling
Professora da UFMG

Para ela, a história ficou esquecida por tanto tempo porque é comum que mulheres que conseguem romper fronteiras proibidas, como a política, sejam condenadas ao esquecimento. “A punição que se deu a ela foi essa. Os gregos diziam que o esquecimento é pior do que a morte. Os baianos têm que conhecer e bater palma para ela”, acrescenta.

O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.