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Nilson Marinho
Publicado em 31 de março de 2025 às 05:00
Hilary Frank, tem 41 anos, é empreendedora e mora em Charlotte, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Ainda bebê, deixou Salvador e, na companhia dos seus pais adotivos, um casal de americanos, viajou para o norte do continente para morar em um lar cercado de afetos. >
Há um registro desse dia. Uma foto em que a pequena Hilary aparece, de cachinhos apertados e olhos atentos, em um carrinho de bebê azul, ao lado de seu novo pai, um recrutador de recursos humanos, e da sua nova mãe, uma dona de casa. O casal sorri para a foto. Parecem expressar felicidade por seus destinos estarem se entrelaçando para sempre com aquele bebê brasileiro de origem desconhecida.>
Os americanos não sabiam, mas estavam sendo enganados por uma quadrilha especializada no tráfico de bebês brasileiros para adoção ilegal no exterior — um esquema de grandes proporções que operou em diversas regiões do Brasil durante a década de 1980. >
Tráfico de bebês>
Uma das figuras mais conhecidas desse submundo foi Arlete Hilú, mineira que se tornou símbolo desse tipo de crime. Responsável por enviar mais de 10 mil crianças da região Sul do país para Israel e países da Europa, Arlete confessou ser uma contrabandista. Em 1988, foi condenada a dois anos de prisão pelos crimes de tráfico de crianças, falsidade ideológica e formação de quadrilha. Faleceu em 19 de dezembro de 2023, aos 78 anos, em Porto Feliz, interior de São Paulo.>
Na Bahia, o esquema envolvia uma rede que incluía assistentes sociais, advogados, escrivães e até juízes, que atuavam em diferentes regiões do estado em cidades do Recôncavo Baiano, como Cachoeira, da Região Nordeste, como Serrinha, do Sul, como Eunápolis e Camamu, e do Centro-Norte, como Feira de Santana e municípios vizinhos.>
Segundo reportagens da época, os traficantes persuadiam famílias em situação de vulnerabilidade a entregarem seus filhos em troca de quantias irrisórias, com a promessa de que as crianças teriam uma vida melhor no exterior, adotadas por casais com melhores condições financeiras. Cada bebê podia ser negociado por até US$ 10 mil dólares, conforme os valores da época.>
Os pais de Hillary não podiam ter filhos. Sentindo a falta da ternura e da alegria de uma criança em casa, começaram a buscar por agências de adoção. Foi assim que chegaram a uma organização sem fins lucrativos, com sede em Nova Jersey, Nova York, especializada em ajudar famílias americanas interessadas em adotar crianças latino-americanas disponíveis para adoção. Através dela, conheceram uma assistente social brasileira, nascida em Feira de Santana e residente em Salvador, que seria a responsável por intermediar os trâmites da adoção de bebês no Brasil.>
A assistente social em questão chegava a cobrar milhares de dólares das famílias americanas para viabilizar o processo de adoção. O valor, porém, era destinado a remunerar os diversos envolvidos no esquema — desde os responsáveis por localizar e convencer as mães biológicas a entregarem seus filhos, até aqueles encarregados de fraudar documentos e falsificar passaportes. Apenas uma pequena parte desse montante chegava, de fato, às mãos das mães.>
“Eles acreditavam que era um processo legítimo, por se tratar de uma organização confiável e por outros americanos estarem passando pelo mesmo caminho, com a ajuda dessa assistente social. Meus pais pagaram e se comunicaram com ela durante o processo de adoção. Eles também se lembram de que, quando estavam em Salvador tentando voltar para os EUA comigo, a assistente social disse que o juiz iria sair de férias e não poderia assinar a papelada, a menos que fosse pago para fazê-lo antes da viagem. Meus pais pagaram para que pudessem voltar para casa comigo mais cedo”, conta Hillary.>
Busca pelas origens>
A brasileira recebeu dos pais adotivos uma educação de qualidade, cuidado e tudo de que precisava para crescer com dignidade. Desde muito pequena soube que era adotada, mas nunca alimentou sentimentos negativos em relação a isso. Sempre se sentiu acolhida, amparada e, acima de tudo, amada.>
“À medida que fui crescendo, por volta da idade universitária, comecei a me perguntar sobre minhas origens e minha família biológica. Comecei a querer saber quem eram meus pais. Me perguntava se tinha irmãos e se havia alguém da minha família que se parecia comigo. Seria tão bom ver meus gestos e jeitos em pessoas que eu sei que estão ligadas a mim pelo sangue e pela herança”, diz.>
Por volta dos 20 anos, Hillary passou a sentir uma curiosidade sobre suas origens e sua família biológica. Tentou entrar em contato com a assistente social baiana que havia intermediado sua adoção, mas descobriu que ela havia se mudado ou trocado de número. Sobre o Brasil, e especialmente sobre a Bahia, Hillary sabia muito pouco.>
De volta ao Brasil>
Em junho de 2018, decidiu viajar a Salvador. Queria se reconectar com suas raízes e buscar qualquer pista que a ajudasse a encontrar seus pais biológicos. Foi então que, após alguma insistência, conseguiu finalmente retomar o contato com a assistente social.>
“Me encontrei com ela, acompanhada de uma amiga. Ela me disse que não se lembrava da minha adoção nem da minha mãe. Afirmou que havia perdido muitos arquivos em um incêndio em seu apartamento, mas que, caso contrário, tentaria me ajudar a encontrar minha família. Ela queria saber se eu tinha crescido em uma família amorosa, isso parecia importante para ela. Também comentou que provavelmente eu havia ficado com a irmã dela em Feira de Santana enquanto aguardava a adoção”, recorda Hilary.>
Documentos oficiais do Poder Judiciário do Estado da Bahia revelam que Hillary, antes do processo de adoção, se chamava Nilda Bahia. Nascida em 18 de fevereiro de 1984 e registrada como filha de pais ignorados, no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Subdistrito da Vitória, localizado no bairro da Graça, em Salvador, seu processo de adoção foi concluído no dia 7 de junho de 1985, quando ela tinha pouco mais de um ano. A criança foi oficialmente entregue à nova família por meio de um alvará judicial expedido pela Vara de Menores, passando a se chamar Nilda Hillary Robin Frank.>
Hillary foi até o cartório em busca de informações sobre seu processo de adoção, na esperança de encontrar pistas sobre suas origens. No entanto, se decepcionou ao perceber que os documentos não traziam nenhum dado que revelasse os nomes de seus pais biológicos, sua cidade de origem, o hospital onde nasceu ou qualquer referência a uma agência que pudesse conectá-la à sua história.>
“Parecia um beco sem saída, sem dados que eu pudesse usar para procurar minha família, mas estar em Salvador foi muito especial. Foi a primeira vez que vi pessoas que se pareciam comigo. Isso me tocou profundamente. Senti que havia chegado a um lugar que meu sangue e minha alma já conheciam. Ao mesmo tempo, me senti distante, pois não conheço o idioma e não consegui me conectar com as pessoas como gostaria. Sou uma pessoa social e amo aprender sobre outras culturas e sentir conexão com as pessoas pela essência delas. Foi muito difícil não poder conversar com quem faz parte de quem eu sou”.>
Descoberta>
Ainda na esperança de encontrar seus familiares biológicos, Hillary realizou um teste genético para que seu DNA fosse comparado ao de milhões de pessoas ao redor do mundo que também passaram pelo mesmo procedimento e autorizaram o compartilhamento dos dados em bancos genéticos globais. É por meio desse cruzamento que muitas pessoas acabam descobrindo parentes desconhecidos e revelando histórias familiares que, por muito tempo, ficaram escondidas ou foram varridas para debaixo do tapete.>
A descoberta finalmente veio. Hillary pôde se agarrar a um fio de esperança ao encontrar, em uma dessas plataformas genéticas, alguns parentes distantes. Muitos deles também foram adotados e, assim como ela, sabem muito pouco sobre suas origens e buscam pistas sobre a verdadeira história familiar. “É muito triste ver quantas pessoas estão procurando, e como, mesmo assim, ainda é difícil conseguirmos nos ajudar a desvendar nossos laços de sangue”, lamenta.>
Uma dessas pessoas, em especial, conhecia parte da própria história, embora não soubesse que havia, em sua família, uma criança que teria sido entregue para adoção na década de 1980. Trata-se de Alyda Moraes, uma jovem de 25 anos, natural de Recife, Pernambuco, identificada como prima de segundo grau de Hillary, segundo o teste genético.>
Em 2022, Alyda embarcou para os Estados Unidos para um intercâmbio. Durante uma conversa com uma de suas anfitriãs, comentou que havia assistido a um vídeo na internet sobre testes genéticos. O tema chamou sua atenção, já que ela sempre teve o desejo de conhecer mais sobre suas origens.>
“No Natal daquele mesmo ano, eles me deram de presente um teste genético. Fiz o teste e enviei em 2023. Como eu não tinha grandes expectativas — queria só conhecer mais sobre minhas origens mesmo —, quando o resultado ficou pronto, entrei no aplicativo, olhei tudo, tirei print e mandei para a minha família no Brasil. E foi isso: parei de usar o aplicativo”, conta.>
Depois de enviar o teste em 2023, a jovem só fui entrou no site novamente em dezembro de 2024, momento em que se deparou com uma mensagem de Hillary. “A primeira mensagem tinha sido enviada em fevereiro de 2024, mas eu só vi no final do ano. Nessa mensagem, ela contava um pouco da história dela: disse que tinha sido adotada e que queria muito descobrir suas origens, entender de onde vinha sua família biológica e tudo mais. Falou que tinha feito o teste e que o sistema apontava que nós éramos primas de segundo grau”, continua.>
As duas iniciaram uma troca de mensagens, e Alyda se prontificou a ajudar a brasileira adotada com todas as informações que pudesse reunir sobre sua família, inclusive consultando outros parentes em busca de pistas que pudessem esclarecer a origem de Hillary.>
“Fiquei muito impactada com a história dela. Lembro que era de madrugada quando vi as mensagens. Corri para contar à minha mãe. Falei: ‘Mãe, olha que loucura!” E contei tudo para ela. No dia seguinte, levei a história para o resto da família. Todo mundo ficou muito impressionado. Eu nem cogitei levar para o lado da família do meu pai, porque ela se parece muito com a família da minha mãe, tanto quando era criança, quanto agora adulta”, conta a jovem.>
A avó materna de Alyda, por exemplo, diz não se lembrar de nenhuma história de adoção ou sequestro de criança naquela época. Mesmo assim, a jovem continuou buscando informações com outros parentes, na tentativa de encontrar alguma pista — mas, até então, sem sucesso.>
“A gente começou a desconfiar que talvez ela nem tivesse nascido na Bahia, porque, na época, não tínhamos nenhum parente morando lá. Então levantamos a hipótese de que ela pudesse ter nascido em Pernambuco ou nos arredores, e depois sido levada para a Bahia, onde foi adotada”, desconfia.>
Alyda começou a montar uma abordagem mais lógica, tentando entender de quem Hillary poderia ser filha. Chegou à conclusão de que ela poderia ser filha de algum dos irmãos de sua avó. A partir daí, passou a sondar os filhos desses irmãos, tentando descobrir se alguém se lembrava de alguma história de gravidez fora do casamento, especialmente na juventude.>
“Como muitos desses tios já são idosos — alguns até já faleceram —, não queríamos chegar diretamente com uma notícia tão impactante. Até cogitamos a possibilidade de ser filha de alguma das irmãs da minha avó, mas minha avó descartou isso. Disse que era impossível uma delas ter engravidado sem ninguém perceber, porque todas moravam juntas na época”.>
Com isso, a hipótese mais provável passou a ser a de que algum dos irmãos homens da avó tenha engravidado uma moça, e a criança, no caso, Hillary tenha sido adotada sem que ninguém soubesse da existência dela.>
“Eu espero de coração que ela consiga encontrar seu lugar no mundo, entender suas origens e encerrar essa busca que já dura tantos anos. Ela vai ser sempre muito bem-vinda. Minha família está de braços abertos para recebê-la, para fazer testes, o que for preciso. Espero, de verdade, que ela consiga finalmente as respostas que tanto procura”, finaliza Alyda.>
Hillary, por sua vez, diz que um reencontro com seus pais biológicos representaria muito mais do que apenas descobrir nomes ou rostos, seria como recuperar uma parte fundamental de sua identidade, que esteve ausente por toda a vida.>
“Se eu pudesse encontrar minha família biológica, não conseguiria expressar em palavras o quanto isso significaria para mim. Luto com minha identidade há anos, sem conhecer uma parte essencial de quem sou. Ser uma mulher brasileira é motivo de orgulho. Sou única e venho de um país lindo, cheio de amor, história e expressão. Gostaria de olhar nos olhos da minha mãe e do meu pai e ver uma parte de mim neles”, comenta.>
“Quero abraçá-los e dizer o quanto meu coração ansiava por eles mesmo antes de eu ter palavras para entender esse sentimento. Seria tão especial descobrir de quem herdei o amor pelos animais, pela leitura, pela dança, música, pela água, pelos abraços e pelo carinho de passar um tempo de qualidade com quem se ama. Só de escrever essas palavras, me emociono com lágrimas de esperança e renovação, nesse processo tão longo de, um dia, poder me reconectar com minha família”, completa a brasileira.>