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Larissa Almeida
Publicado em 23 de janeiro de 2025 às 07:27
Durante três anos, Paulo* recebeu ofensas diárias sobre a sua sexualidade no ambiente de trabalho. Os insultos, que começaram com o apelido de “goiabinha”, evoluíram para ameaças. Ele chegou a ouvir de colegas que "viado merece morrer" e ele era a "desonra da família". O influenciador Ney Lima, quando foi a uma delegacia de Serrinha para registrar um boletim de ocorrência, foi surpreendido com perguntas dos policiais sobre a orientação sexual dele e uma ‘profecia’ de que se casaria com uma mulher. Ambos os casos, que são exemplos de LGBTfobia, refletem a violência sofrida pela comunidade LGBTQIA+ na Bahia, que é o segundo estado mais violento para os integrantes da sigla.
Somente em 2024, a Bahia computou 31 mortes violentas de LGBTs, de acordo com o Observatório de Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil, levantamento feito anualmente há 45 anos pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). A entidade é a mais antiga organização não governamental LGBT+ da América Latina e apura os dados a partir de informações coletadas na mídia, em sites de pesquisa na internet e em correspondências enviadas à ONG.
O estado, que já lidera outros indicadores de violência – como o número de mortes de negros e mulheres, número de óbitos decorrentes de letalidade policial e o número de mortes violentas totais – só ficou atrás de São Paulo, que registrou 53 mortes de LGBTs em 2024. Contudo, conforme destacado pelo GGB, proporcionalmente, a Bahia é a unidade da federação onde os homossexuais, bissexuais, transexuais e travestis correm maior risco de morte, já que, ocupando o quarto lugar em população, com aproximadamente 25 milhões de habitantes, encontra-se na segunda posição em criminalidade contra esses grupos.
O total de mortes de integrantes da comunidade LGBTQIA+ na Bahia corresponde a 10% das mortes de queers em todo o território nacional – foram 291 no ano passado. O GGB enfatiza, no entanto, que essa é só a ponta do iceberg, uma vez que há subnotificações de dados devido à falta de estatísticas oficiais específicas sobre crimes de ódio contra a população LGBT+ no Brasil.
Contexto da violência queer no estado
Para Luiz Mott, antropólogo, fundador do Grupo Gay da Bahia e idealizador do levantamento, não é possível prever quais estados ou cidades vão registrar mais mortes ou definir um local como mais violento. Por outro lado, ele aponta que é inegável o fato de que a Bahia tem um código de violência muito forte, que é forjada na desigualdade social e econômica.
“Matar para roubar é uma prática que se desenvolve, sobretudo, em ambientes muito homofóbicos e com desigualdade econômica tão grave como acontece, por exemplo, em Salvador”, afirma o antropólogo.
Luiz também acrescenta que o passado escravista explica parte das relações de ódio presentes na sociedade brasileira. “Matamos três vezes mais LGBTs no Brasil do que nos Estados Unidos, que tem 130 milhões de habitantes a mais do que o Brasil, por conta da nossa tradição escravista e racista. No Brasil colonial, apenas 10% dos homens brancos mandavam em 90%, composto por mulheres, homens negros, indígenas e escravizados. Para 10% mandar em 90%, tinha que ser ultraviolento e ‘cabra macho’. Então, qualquer homem afeminado ou travesti era uma ameaça à hegemonia”, pontua.
Já Horácio Nelson Hastenreiter, professor e coordenador de uma das turmas de Mestrado em Segurança Pública, Justiça e Cidadania da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (Ufba), analisa que a posição da Bahia na lista de estados que mais matam LGBTs tem razões multifatoriais.
“A Bahia é o segundo estado com maior percentual de homicídios per capita do Brasil. Isso se dá em dados mais gerais e se replica em diversas estatísticas mais particulares, inclusive naquelas sobre a comunidade LGBT. O aumento da violência contra a comunidade – no ano passado, a Bahia ocupava a 4ª posição –, assim como o aumento no número de feminicídios, vão no sentido contrário da diminuição de homicídios per capita no país”, destaca.
Na perspectiva do especialista em segurança pública, a prevalência de homicídios contra LGBTs tem como reflexo direto o espaço dado a discursos extremistas. “Discursos antiminorias, anti-indentitário e misóginos ganharam destaque no governo federal passado, mas verificamos eles não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos. Acho que isso não é um fenômeno exclusivo da Bahia e tende a ser uma tendência em diversos países que estão tomando caminhos mais antidemocráticos e contrários a um mundo mais diverso”, salienta Horácio.
Vítimas da LGBTfobia relatam traumas
Há quase seis anos, Prettin D'kingo, 31 anos, artista e DJ da cena musical baiana, viveu uma noite que nunca esqueceu. Enquanto descia do ônibus, nas imediações da Rua Carlos Gomes, elu** ouviu gritos e, quando olhou para trás, recebeu um soco no rosto e um chute desferidos por um homem. A agressão sem nenhum motivo aparente se revelou, logo em seguida, o primeiro episódio de violência que sofreu por ser uma pessoa não binária.
“Ele me socou até eu cair no chão, desferindo vários golpes no rosto, enquanto gritava que "viado tinha que morrer". A agressão só parou quando uma pessoa que passava gritou, fazendo o agressor fugir. Fiquei com o rosto machucado, uma sequela no maxilar que até hoje me causa dores e desconfortos, e marcas emocionais que nunca se apagaram”, conta Prettin.
O segundo episódio ocorreu na última segunda-feira (22). Por volta das 7h, enquanto saía de casa rumo a rodoviária para viajar, Prettin solicitou um transporte por aplicativo e foi impedide de embarcar pelo motorista. “Ao me ver atravessar a rua para embarcar, gritou ‘deixa eu ir, pra não dar porrada em viado logo cedo", me ameaçou acelerou a moto para ir embora. Foi mais uma experiência de exclusão e humilhação, que reflete ao preconceito que venho enfrentando diariamente”, desabafa.
Assim como Prettin, quem também sentiu na pele o peso da discriminação foi o publicitário Roberto Júnior, 31 anos, que no último verão foi abordado por seguranças no banheiro do camarote do Festival de Verão e sofreu um ataque LGBTfóbico. “Fui acusado de furtar celulares e, durante as agressões físicas, fui chamado de ‘viadinho’ algumas vezes”, relata.
“Já teve um momento também em que estava me beijando com outro rapaz no Festival da Virada e um homem, do nada, pegou uma lata de cerveja e jogou em minha cabeça, gritando que ali tinha criança e que não era lugar de ‘viado”, lamentou.
Medidas
De acordo com Felipe Freitas, titular da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, a Polícia Civil tem atuado junto com o movimento LGBT da Bahia no sentido de aprimorar os registros dos crimes de ódio contra integrantes da sigla. “Existe, no âmbito do Ministério da Justiça, um grupo de trabalho do Sistema Nacional de Segurança Pública para que todos os registros de ocorrências em todo o país possam questionar sobre a identidade de gênero e a orientação sexual das vítimas para todos os crimes”, afirma.
O intuito da proposta desse projeto, segundo o secretário, é de que haja a classificação da motivação do crime de homicídio contra essa minoria. Felipe admite que não, atualmente, uma padronização nos registros criminais, e que as fontes que mais se aproximam de dados precisos são aquelas criadas pela sociedade civil, como o Grupo Gay da Bahia.
Além disso, Felipe Freitas disse que o governo estadual tem agido para combater a violência contra LGBTs em duas frentes. A primeira é de apoio, por meio de campanhas de conscientização e do Centro de Proteção dos Direitos LGBT, que teve aumento de 100% no orçamento em relação ao ano passado. Outra frente é o foco na especialização da Polícia Civil para investigar os crimes de LGBTfobia.
“Na terça-feira (21), foi feita a inauguração da delegacia especializada no combate aos crimes de racismo e intolerância religiosa, que está situado em um centro de promoção da cidadania e da diversidade da Polícia Civil, que visa integrar o atendimento também dos crimes contra os LGBTs e idosos”, frisa.
O secretário ainda lembrou que pessoas queers também estão amparadas pelo Código Penal brasileiro e devem denunciar ao serem vítimas de um crime LGBTfobia. “A violência praticada contra LGBTs é um crime imprescritível, inafiançável, sendo, portanto, o tipo de crime mais grave que se registra no ordenamento brasileiro”, finaliza.
*Paulo é um nome fictício para a vítima do crime real de homofobia
**Prettin solicitou que fossem utilizados pronomes neutros para se referir a elu como fonte