Após quatro décadas afastada, Irmã Ressurreição retorna ao Convento do Desterro

Religiosa passou esse período envolvida em ações sociais para crianças de periferias

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  • Raquel Brito

Publicado em 13 de setembro de 2023 às 05:00

Irmã Ressurreição retornou ao Convento do Desterro após mais de trinta anos afastada
Irmã Ressurreição retornou ao Convento do Desterro após mais de trinta anos afastada Crédito: Paula Froes

No último quarto do Convento do Desterro, em Nazaré, após caminhar por um longo corredor, uma figura de cabelos brancos e rosto marcado pelo tempo é avistada facilmente. Veneranda Lordello, conhecida como Irmã Ressurreição, ocupa a única cama do cômodo, e sorri ao avistar a Reportagem. Após mais de trinta anos, o convento é novamente o lar da freira, que se afastou na década de 1980 para dedicar-se à ação social. Uma das servas de caridade de Irmã Dulce, Veneranda foi responsável por cuidar do  galinheiro onde os doentes eram atendidos, local que viria a se tornar a sede das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid). Sempre ativa, peitou a santa baiana para virar enfermeira e, mesmo levando uma bronca, conseguiu servir mais próxima dos necessitados. 

Franciscana de espírito determinado, a Irmã de 92 anos lutou contra as normas da época para conseguir a licença e servir às crianças em situação de vulnerabilidade social. Precisou pedir uma licença especial à Congregação Franciscanas do Sagrado Coração de Jesus para seguir o caminho que a chamava. À época, como demonstração de apoio à freira, o arcebispo emérito primaz do Brasil, Dom Geraldo Magela, liberou que ela tivesse em sua casa um espaço de oração com o Sacrário.

No período fora do convento, Irmã Ressurreição fundou três creches, uma em Nazaré, Brotas e a última em Bosque Real. “Seja bem-vinda, seja bem-vinda à nossa creche, ó pessoa tão querida”, diz a canção entoada por Irmã Ressurreição, relembrando o tempo em que comandava os infantários e ensinava religião aos pequenos.

Foi na terceira que passou por mais dificuldades: com um teto que só tinha telhas até a metade e tinha a outra metade selada por uma lona fraca, um dia de fortes chuvas deixou a creche debaixo d’água. Com a ajuda de uma vizinha, foram mais de quinze dias para conter os danos causados pelo alagamento.

Hoje, a audição já comprometida não impede que ela se comunique e nem é sinônimo de menos lucidez. De memória invejável, a freira conta fragmentos da infância e relembra os anos que passou fora do convento para cuidar das crianças em condição de vulnerabilidade. Sua paixão sempre foi pelas crianças e pelos mais pobres, e vem desde cedo. Nascida em 1931 em São Félix, no Recôncavo da Bahia, mesmo criada numa família abastada, ela lembra que sempre reunia as outras crianças na varanda da fazenda do avô, que era senhor de engenho, para distribuir pedaços de rapadura e brincar.

Com os adultos, o efeito da presença da Irmã também é significativo. Clécia Rocha, antiga interna do convento, é uma prova viva: foi a convivência com Irmã Ressurreição que lhe reacendeu em meio ao luto. “O meu pai morreu em novembro. Eu vim para Salvador para tentar ajudar em alguma coisa e ocupar a minha cabeça, e passei aqui para ver se achava alguém da minha época, porque eu fui interna. Cheguei aqui e fiquei por uma semana, ajudando. No dia que eu decidi ir embora, a Irmã chegou, e eu fiquei, para ver como ela seria. Desde então, nós nos aproximamos muito. Ela deu um um ressignificar ao meu processo de luto, quando eu vi aquela vida toda, aquele ânimo, com aquele jeitinho dela dinâmico”, diz.

Durante um passeio pelo jardim do convento, Irmã Ressurreição relembra seus dias de interna. Numa cadeira de rodas conduzida por Clécia, a freira aponta para pontos onde antes ficavam escorregadores, gira-giras e áreas para que as crianças pudessem correr e brincar.

Com alma de eterna menina, ela lembra de quando jogava bola e pulava corda com os pequenos, antes de colocá-los para dormir. No trabalho com as crianças, ela também saía ganhando, com a oportunidade de reviver a própria infância. “Eu era criança em meio às crianças. Não importava a idade, não”, afirma.

Discípula da Santa dos Pobres

No fim da década de 1940, ela conheceu o trabalho de Irmã Dulce, pelo qual rapidamente se admirou, e foi trabalhar junto com ela. No livro “Além da Fé”, que conta a história de Irmã Dulce, o jornalista Valber Carvalho conta a chegada de Irmã Ressurreição ao Convento Santo Antônio, quando foi trabalhar com a atual Santa dos Pobres.

"A responsabilidade de fazer prosperar a criação de galinhas foi entregue a uma bela jovem recém-chegada de São Félix. Veneranda Lordello chegou com vontade de trabalhar; seu grande sonho era ingressar na vida religiosa"

Valber Carvalho, na página 493 de Além da Fé
Jornalista e autor de livro sobre a vida de Irmã Dulce

Em sua pesquisa para escrever o livro, Carvalho diz ter percebido que Irmã Ressurreição, na época conhecida apenas por seu nome de batismo e como a irmã de Iracy Lordelo, que era uma das mais fiéis escudeiras de Irmã Dulce, era uma das chamadas servas de caridade. Esse nome é dado às pessoas cujas almas vêm com o sentimento de que a dor do outro também é delas.

O jornalista notou também, olhando atentamente os trajes das religiosas, que a vida da jovem Veneranda era caótica. “Algo que me chamava muita atenção em Irmã Dulce era que ela tinha quem lavasse o hábito dela, que só andava imaculadamente limpo, e o da Irmã Ressurreição não era. Então eu me dei conta do quanto ela também se doava para o pobre. Só que Irmã Dulce se doava demais e tinha roupas limpas. Ela se doava demais, mas não tinha nem uma pessoa para fazer isso por ela”, afirma.

No início dos trabalhos com Irmã Dulce, Ressurreição ficou responsável pelo galinheiro, trabalho que deixava a jovem de vinte anos frustrada: queria ser enfermeira, mas, pela pouca idade, Irmã Dulce não permitia. Isso a levou a fazer sua própria manifestação. “Peguei um peru, coloquei a crista para cima, cortei e depois fiz um curativo. Quando Irmã Dulce chegou na janela, falou: 'o que é isso?', e eu respondi: 'fui eu! Porque a senhora não quer me deixar ser enfermeira. Eu quero ser enfermeira dos pobres, quero trabalhar com eles. Aqui vai ser a casa dos pobres'”, conta.

Depois disso, e de uma bronca da freira mais velha, Irmã Ressurreição recebeu a autorização para exercer a enfermagem. De chapeuzinho branco estampado com uma cruz vermelha, receitava remédios e fazia curativos.

A freira de espírito determinado

Ao ingressar no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5) em 1994, Maria Augusta Kolbe logo percebeu o movimento de crianças na rua, devido a uma creche instaurada no local. Não demorou muito até conhecer a responsável por manter o local: todos os meses, era certa a presença da Irmã no Tribunal, de setor em setor, pedindo colaborações. Se alguém ajudasse uma vez, ela registrava o nome numa lista e voltava no mês seguinte para cobrar o próximo auxílio.

Isso fez com que a contribuição entre os funcionários do TRT se tornasse regular, e a visita mensal já era esperada. Na pandemia, todos por lá se preocuparam quando a freira parou de aparecer. Maria Augusta falou com outra servidora, Karina, e foram visitá-la. Irmã Ressurreição, que morava sozinha, estava abatida e o peso da idade avançada começava a lhe afetar mais fortemente. Ela, entretanto, relutava inicialmente a ir para um abrigo ou voltar para o convento, temendo o fim das atividades para as crianças.

“A gente passou então a fazer esse papel de arrecadar, eu e Karina. Através do WhatsApp, todo mês, assim que saía o dinheiro, a gente mandava mensagem para os colegas perguntando quem podia ajudar. Arrecadávamos, o dinheiro ia para a conta de Karina, a gente ia ao mercado, fazia as compras e deixava na casa dela”, diz Maria Augusta. Agora, após a pandemia, elas continuam arrecadando para a causa da Irmã, além de visitá-la com frequência.

Perfeccionista, Irmã Ressurreição não queria que as servidoras fizessem a cesta básica para ela após fazerem as compras – gostava de montar a cesta ela mesma. Hoje, com a rede formada por Maria Augusta e Karina do lado de fora do convento, ela consegue ficar mais calma acerca das arrecadações. Ainda assim, a reivindicação se mantém constante. Para ela, o mais importante sempre será a ajuda para as suas crianças.

*Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo