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Nilson Marinho
Publicado em 11 de janeiro de 2025 às 11:52
Há cerca de dois anos, Raimunda Conceição Bonfim, de 65 anos, saiu de sua casa, no bairro de Águas Claras, em Salvador, para trabalhar como ambulante, quando recebeu uma ligação do seu filho primogênito, Alexandre. Ele havia acabado de receber a visita de uma mulher desconhecida com informações que transformaram a vida da família, acendendo um sinal de esperança de um reencontro após longas e sofridas quatro décadas de separação entre a mãe e seus dois filhos gêmeos, Alex e Alexssandro.
“Um dia recebi uma ligação estranha de Alexandre, meu filho. Ele dizia: ‘Mãe, onde a senhora está?’. Fiquei nervosa, achando que algo ruim tinha acontecido. Quando cheguei em casa, ele me abraçou e falou: ‘Mãe, seus filhos estão procurando a senhora’”, lembra.
Raimunda caiu em lágrimas. Finalmente poderia ver os seus caçulas e acabar com uma dor que lhe assolava desde 1985, quando recebeu a informação de que os gêmeos haviam deixado o país, rumo à então Alemanha Ocidental, em um processo de adoção considerada por ela como ilegal.
A mulher que trouxe a boa nova era uma investidora. Ela chegou à mãe dos baianos depois de um deles entrar em contato com uma organização alemã de direitos humanos para ter acesso a sua verdadeira origem. A profissional já estava em busca da ambulante havia dois anos.
“Hoje, agradeço a Deus todos os dias por meus filhos estarem vivos. Não estão no mundo do crime, nem perdidos. Alex é um menino maravilhoso e me disse: ‘Mãe, eu sempre soube que a senhora lutou. Sempre foi a senhora sozinha.’ Essa frase é uma dádiva para mim. Tudo que quero é estar perto deles, ver meus filhos felizes, depois de tudo que passaram. Eles são guerreiros.”
Mãe e filhos puderam conversar pela primeira vez com ajuda de uma intérprete por meio de videochamadas. Nessas conversas, vieram à tona informações que atravessaram Raimunda. Seus filhos, na verdade, tiveram uma infância e adolescência de maus-tratos cometidos pelos pais adotivos europeus.
“Ele disse assim: ‘Mãe, eu odeio a Alemanha, por tudo que fizeram comigo e o que passei. O coração dos alemães é na sola do pé, entende? É muita coisa, é muita maldade’. Ele contou que só quem o apoiou lá foi a madrinha, porque ela, por muito tempo, não tinha conhecimento dos maus-tratos”, conta Raimunda.
“Hoje, eles estão na Alemanha, mas a vida não é fácil. Alex trabalha como segurança em boates e faz bicos. Eles enfrentam preconceito por serem brasileiros e negros. Às vezes, escondem as dificuldades de mim, mas coração de mãe sabe”, completa a ambulante.
História da adoção
A ambulante, com seus 20 e poucos anos, tinha uma grande responsabilidade: fazer com que seus três filhos vingassem. As coisas eram difíceis no início da década de 80: o dinheiro era pouco, a comida idem, e a instabilidade econômica e a informalidade eram fantasmas para toda a população carente. Sendo mãe solo, com o pai dos recém-nascidos morto havia pouco tempo, tudo era ainda mais difícil. Vivendo sozinha com os pequenos no bairro de Santa Cruz, em Salvador, onde a violência já assolava, a situação era ainda pior.
A violência, inclusive, começou a bater à porta da jovem mãe. Não demorou para ficar insustentável morar naquele bairro com três crianças. Por sorte e de favor, Raimunda conseguiu um teto para viver em Pernambués, mas por lá as coisas não eram diferentes.
“Como eu era jovem, sofri muita perseguição de marginais. A mulher, principalmente jovem e vulnerável, fica desprotegida, sem ninguém para defendê-la. Eu tinha medo que me estuprassem, que fizessem o mesmo com os meninos. Então, fui para a casa de uma irmã minha, mas, às vezes, quando a gente está precisando, os parentes nem sempre estendem a mão”, diz a ambulante, hoje com 65 anos.
O sofrimento era grande, e as crianças já sentiam o reflexo de toda aquela vulnerabilidade e da insegurança alimentar. Os gêmeos, chamados Alex e Alexssandro, por exemplo, eram raquíticos. O ano era 1982, e a jovem, desesperada, pensou que a melhor opção fosse colocá-los em um local onde pudessem viver em segurança e longe da fome.
“Procurei um lugar onde pudesse colocar meus filhos, mas queria poder visitá-los para que crescessem sabendo que tinham mãe. Procurei o Juizado de Menores e conseguiram uma vaga para eles no orfanato. Para mim, naquela época, orfanato e creche eram a mesma coisa. Foi só há pouco tempo que entendi a diferença entre os dois”, diz Raimunda.
A ambulante garante que encarou uma assistente social e, firme, disse que só entregaria os filhos se tivesse certeza de que poderia visitá-los.
“Sempre insisti que queria visitá-los porque, nas vagas que conseguiram, a regra era deixá-los lá sem possibilidade de visitas. Eu não aceitava isso, pois queria que meus filhos soubessem que eu era a mãe deles”, lembra.
Os pequenos passaram por um centro de triagem e foram enviados a um orfanato da cidade. Raimunda chegou a visitá-los, mas eles continuavam mirrados e abatidos.
“Quando perguntei à assistente social por que eles estavam tão magros, ela me disse algo que doeu profundamente: que eles sentiam minha falta, pois eram muito apegados a mim. Aquilo me destruiu, mas eu não tinha opção. Não conseguia tirá-los de lá, pois já era difícil cuidar de uma criança, imagine três. Pensei até em morar na rua para ficar perto deles, mas tinha medo de ser estuprada ou que algo acontecesse com eles”, conta.
Em 1985, a mãe foi visitar os filhos, mas descobriu que eles já não estavam mais lá. Pior: que tinham sido enviados para a família Gusenburg, residente na Alemanha Ocidental. Os garotos, inclusive, já haviam sido registrados com novos nomes, e em suas certidões já não constavam os sobrenomes Bonfim e Conceição.
“Sempre fui sozinha na cidade, sem apoio familiar. Mesmo assim, um dia fui visitar meus filhos e descobri que eles não estavam mais lá. Foi um choque. Eu pensava que só veria esse tipo de coisa em filmes. Cada vez que ia ao orfanato, buscava informações, mas ninguém me dizia nada. Cheguei a acreditar que tinham doado os órgãos ou vendido meus filhos, já que, na época, ouvia-se falar muito de crianças desaparecendo”, conta a ambulante.
Raimunda não sabia o que fazer e afirmava a todos que não havia autorizado o envio dos seus gêmeos para uma família, tampouco para um país distante e desconhecido por ela, como a Alemanha. A doméstica continuou a ir ao local em busca de informações, mas, com o tempo, passou a ser ignorada pelos funcionários.
“Mesmo com todo o esforço, enfrentei várias dificuldades para encontrá-los. Descobri que tinham registrado meus filhos sem meu consentimento, usando trâmites que eu não entendia. As informações eram desencontradas, e nunca me deram respostas claras”, conta.
A jovem mãe foi orientada por uma tia a procurar a imprensa, e ela o fez. O caso estampou os periódicos locais, mas logo chegou aos veículos nacionais. A busca de Raimunda foi contada no Jornal do Brasil e até no Globo Repórter. O programa da TV Globo, inclusive, enviou um repórter à Alemanha.
“Chegaram até a casa das pessoas que estavam com meus filhos, fizeram entrevistas e, durante a gravação, perguntaram à mulher que estava com eles: ‘A senhora conhece Raimunda Bonfim da Conceição?’. Ela respondeu: ‘Nunca vi.’ Em seguida, admitiu: ‘Sei que ela está procurando os filhos, mas agora ela tem que entender: eles são meus e de meu marido.’”
Em 10 de abril de 1987, o Jornal do Brasil dedicou meia página à história de Raimunda. A reportagem narra a ida da mãe ao encontro do então presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador Almir Castro, e ao juiz de Menores, Jafet Estuquiago da Silva. O processo de adoção foi visto pela Justiça como legal, embora a Polícia Federal apontasse “irregularidades”.
A Superintendência da PF encaminhou um relatório sobre o caso ao presidente do TJ-BA em outubro de 1986. Este o remeteu para a Corregedoria da Justiça, e o corregedor Wilde Lima optou pelo seu arquivamento. O órgão estimou que, entre janeiro de 1984 e abril de 1986, pelo menos 460 bebês e crianças baianas foram enviadas para fora do Brasil em processos de adoção considerados ilegais.
Pressionada pela mídia, a direção do orfanato entrou em contato com a família alemã. A intenção era provar que os garotos baianos estavam gozando de plena saúde e felicidade em seu novo lar no velho continente. Uma foto dos dois foi enviada ao Brasil. Nela, é possível ver Alex e Alexssandro, um ao lado do outro, de gravatas e roupas sociais brancas, à frente de seus novos pais, ao redor de seus outros cinco irmãos, em uma cerimônia de batismo na cidade alemã chamada Mandelbachtal.
Com o processo de adoção sendo considerado pelas autoridades brasileiras como legal, embora a mãe afirmasse que o processo foi feito sem seu consentimento, Raimunda deixou de ter notícias das crianças. Os anos se passaram, ela seguiu a vida, caminhando ao lado de um grande vazio provocado por um sentimento de culpa por não ter tido condições de criá-los.
Alex conta que ainda era muito pequeno quando começou a perceber que era um filho adotivo, em parte pela sua cor, que o diferenciava dos seus outros quatro irmãos — exceto seu irmão gêmeo —; por outro, pelo tratamento de desprezo e violência que passou a sofrer, sobretudo pela mãe adotiva.
O baiano diz que ele e o irmão foram obrigados a trabalhar para o casal dentro da própria casa, cuidando dos afazeres domésticos e em pequenas reformas, mas também na rua, onde entregavam jornais. Àquela época, era comum que estudantes usassem o contraturno escolar para realizar outras atividades, similar ao Jovem Aprendiz que conhecemos no Brasil. Os 250 francos que cada um dos gêmeos recebia mensalmente iam diretamente para o bolso dos pais adotivos.
Alex diz ainda que, à medida que ele e o irmão cresceram, a vontade de saber sobre a origem ficou cada vez mais forte, mas todas as vezes que perguntavam sobre a mãe brasileira eram repreendidos pela adotiva, muitas vezes com violência. Em uma das ocasiões, quando questionada pelos garotos, a alemã chegou a dizer que Conceição estava morta.
“Eu queria saber quem era minha mãe, sentia que em algum lugar no Brasil ela me procurava. Eu sentia isso dentro de mim, que ela estava viva. Como sempre apanhávamos quando a questionávamos, com o tempo paramos”, conta.
Alex, o filho que tem mais contato com a mãe, está aprendendo português e arrisca algumas palavras do seu idioma materno, mas a conversa entre os dois ainda é feita com ajuda de um tradutor online. Raimunda também tem a intenção de aprender alemão, mas lhe faltam recursos.
Os brasileiros não têm condições financeiras para retornar ao seu país de origem, Raimunda, tampouco para viajar à Alemanha. Enquanto isso, os dias passam e a saudade permanece viva, atravessando os mais de 8 mil quilômetros que separam a família. “Apesar de tudo, eu agradeço a Deus. Ele nos sustentou e protegeu meus filhos. Espero um dia poder abraçá-los novamente e viver em paz”, finaliza a ambulante.