Antes do acarajé, Rio já tentou se 'apropriar' de ícones da Bahia; veja lista

Do samba a Gilberto Gil, cariocas perderam 'réu primário' há séculos

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  • Gabriel Moura

Publicado em 1 de novembro de 2023 às 13:48

null Crédito: Acervo CORREIO

Quando a Mangueira entrou - lá ele - na Avenida em 2023, o enredo tratava da Bahia, Estação Primeira do Brasil. As moças rodando saia? Baianas, é claro. Até o ritmo puxado pelos tambores e pandeiros fora forjado com dendê no Recôncavo. A transmissão global, no entanto, garantia: era o 'Carnaval Carioca'.

A carioquização de elementos da baianidade já vem de outros carnavais e voltou à tona nesta semana quando o Rio de Janeiro transformou o acarajé em patrimônio cultural deles.

Antes, um esclarecimento. Receber tal honraria no Rio não impede que nosso bolinho de feijão frito no dendê receba o mesmo título em outro lugar. O acarajé, inclusive, é patrimônio cultural de Salvador desde 2002.

Mas a gangue do 'S' chiado perdeu o reú primário há séculos e todo cuidado é pouco para que eles não busquem patentear outro símbolo baiano. Relembre o histórico:

Erro capital

Buenos Aires? São Paulo? New York? Que nada. A grande metrópole das Américas nos séculos XVI e XVII era Salvador, capital da então colônia portuguesa. O trono só deixou de ser soteropolitano quando em 1763 o poder saiu do Palácio Rio Branco para terras cariocas.

"Salvador era a evidência da América Portuguesa, um dos principais portos do mundo, o centro político, religioso e econômico. Já o Rio vinha em um segundo lugar, se destacando, dentre outros motivos, pela descoberta das jazidas de ouro em Minas Gerais. Além disso, aquela região mais ao sul era estratégica para manter o controle da colônia", explica o historiador Rafael Dantas.

"A mudança de capital visou o controle do que estava sendo explorado em Minas. Foi uma questão estratégica, geográfica e política. Mas Salvador não perdeu totalmente o prestígio. O porto baiano no século XVIII e XIX chegou a ser o mais movimentado da colônia, além de seguirmos sendo o centro religioso. Esse prestígio é explicitado quando vemos que a família real portuguesa desembarcou aqui, em 1808, antes de seguir rumo ao Rio", destaca.

Que samba é esse?

Após digitar "onde surgiu o samba?", o Google nos responde: Rio de Janeiro. Partindo para uma pesquisa mais aprofundada, no entanto, surge a pulga atrás da orelha. "Qual a origem do samba?", bem, o ritmo começou a ser tocado na casa de uma mulher chamada Tia Ciata. "De onde era essa querida?", nascida no Recôncavo Baiano e migrou para o "errejota" aos 20 anos. "E que batuque era esse que faziam?", fácil: uma versão do samba de roda que era tradição há décadas na terra de onde veio Tia Ciata.

Tia Ciata, baiana que levou o samba ao Rio Crédito: Reprodução

Há diferenças entre o samba de roda e o samba carioca, mas trata-se de uma adaptação. É como se o Black Sabbath fosse apontado como criador do rock por ter popularizado o heavy metal.

Carnaval

Durante décadas, houve a disputa sobre qual era o melhor Carnaval: Rio ou Salvador. O veredito sobre o vencedor - se é que havia alguma dúvida - está claro com a baianização da festa '021': enquanto a Barra da Tijuca e afins está lotada de trios elétricos, não há desfile de escolas de samba na capital baiana.

O cuidado agora é para não começarem a falar que a criação de Dodô & Osmar é carioca.

Preta Gil levando trio para o Rio de Janeiro Crédito: Shutterstock

Gil carioca do ano

Gilberto Gil nasceu em 26 de junho de 1942, em Salvador, Bahia. Mas parece que a revista Veja Rio ignorou este detalhe histórico-geográfico e, por conta própria adulterou o gentílico do baiano da gema, congratulando-o com o prêmio de "Carioca do Ano" em 2021, ao lado da, essa sim, nascida no Rio de Janeiro, Fernanda Montenegro.

A motivação do prêmio foi justa, a entrada de Gil na Academia Brasileira de Letras. "Curioso" é que no texto que anuncia o prêmio não é informado em nenhum momento onde realmente nasceu o autor de "Tempo Rei", apenas que ele é "radicado no Rio desde 1970". Enquanto isso, a publicação fez questão de ressaltar o carioquismo de Montenegro.

null Crédito: Reprodução

Até o perfil da Prefeitura de Salvador reclamou no Twitter. "Dos mesmo criadores de São Paulo, capital do Nordeste, veio aí Gilberto Gil carioca. Eu conto ou vocês contam?", publicou.

Bônus

Não são apenas os baianos que sofrem. Suposto ícone do Rio, o biscoito Globo é um mineiro biscoito de polvilho. Até o "feijão carioca" é paulista.