Amyr Klink: viagem do navegador que atravessou o Atlântico a remo até a Bahia faz 40 anos

Em 18 de setembro, após 100 dias no mar, o navegador brasileiro desembarcava na Praia da Espera, em Itacimirim

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  • Marina Branco

Publicado em 18 de setembro de 2024 às 13:28

Amyr Klink navegando
Amyr Klink navegando Crédito: Divulgação I Amyr Klink

Cem dias sozinho entre o céu e o mar. Sete mil quilômetros da África à Bahia em um barco a remo. Vinte e duas tempestades. Incontáveis tubarões. Oito horas por dia remando. Uma mão lesionada e vinte quilos a menos. Essa é a história da travessia pelo Atlântico Sul realizada por Amyr Klink, o explorador brasileiro que, há 40 anos, chegava ao litoral da Bahia.

Klink não era navegador. Era apenas um jovem economista de 28 anos que se interessava pelo mundo das aventuras pelo mar e gostava de estudar os casos de quem já fez esse passeio. Mas, ao invés de ler as histórias de sucesso, lia as de fracasso, e de como os navegadores não completaram a viagem por erros de planejamento, equipamento e dieta.

Juntando os erros de todos os que vieram antes dele em uma coletânea de 70 páginas de histórias sem final feliz, ele se lançou ao mar no porto de Luderitz, na Namíbia, no dia 12 de junho de 1984. Foi assim que, sem experiência alguma em navegar ou formação como explorador, ele foi o primeiro a completar o caminho entre os dois continentes.

A partida

A saída já começou tão turbulenta quanto todo o resto da viagem prometia ser - uma tempestade intensa fez com que o governo de Luderitz só liberasse a partida com a assinatura de um termo por parte do navegador. No documento, ele afirmava que Luderitz não tinha responsabilidade alguma sobre ele, abrindo mão até mesmo do direito a resgate caso necessário. Navegador de primeira viagem - e completamente sozinho.

Três militares antes dele haviam morrido tentando o mesmo trajeto. A África do Sul buscou os três por anos e nunca os encontrou. 

Se já não fosse suficiente, o corpo de Klink tinha seus próprios desafios. Três anos antes, um acidente que cortou seu pulso com vidro o obrigou a fazer uma cirurgia na mão direita. Na época, uma seguradora o classificou como inválido, por conta das sequelas e falta de sensibilidade do membro. Para ele, o desafio se tornou solução - quando perguntado sobre sua mão, Amyr diz que a pouca sensibilidade foi boa, porque assim, foi a parte do corpo que menos doeu no trajeto.

Ele mesmo contou que, no início, quando começou seu planejamento três anos antes de embarcar, ninguém acreditava. “Achavam que eu era maluco, aventureiro”. Mas o preparo foi grande. O planejamento para uma viagem de 105 dias, terminando no seu aniversário, em 25 de setembro, deixou sobras quando ele chegou ao seu destino em apenas 99, quase uma semana antes. A programação foi perfeita e seguida à risca. Para ele, “com um projeto bem elaborado, se controlar o medo, qualquer pessoa pode fazer o que eu fiz”, disse ele ao CORREIO na semana da sua chegada. 

Ele levou uma grande quantidade de água doce, para garantir os três litros diários, o que pesava o barco. Atualmente, a viagem conta com dessalinizadores, que garantem uma redução de mais da metade do peso na embarcação.

A viagem

Após uma festa de despedida com os amigos na última noite antes de partir, ele foi até seu barco, às 5 da manhã. Ao perceberem que ele esqueceu um casaco, os amigos tentaram levar o objeto até ele, mas foram impedidos por ondas de três metros. O casaco se prendeu ao remo de Klink, o barco bateu no veleiro dos amigos, e o casco da embarcação ficou prejudicado. Com risco de naufragar, os amigos voltaram à Terra, e ele seguiu sozinho.

Já no mar, os obstáculos eram outros. Além das 22 tempestades enfrentadas, Klink conheceu os moradores das águas do Atlântico e aprendeu a conviver com os sinais dados por eles. Volta e meia, tubarões batiam no casco de seu barco, que de tão simples, poderia ser facilmente virado.

Barco usado por Amyr Klink
Barco usado por Amyr Klink Crédito: Divulgação

Foi assim que Amyr entendeu o motivo das batidas. Os tubarões tentavam remover os moluscos que se prendiam ao barco, e atraíam peixes dourados, presa preferida dos predadores. Por isso, o navegador precisava fazer paradas periódicas e mergulhar na água para remover por si só os moluscos.

Quem dizia a ele quando e como eram os peixes: “Enquanto estava na água, ficava o tempo todo de olho nos dourados. Quando eles fugiam, era porque tinha um tubarão se aproximando. Aí, eu pulava para dentro do barco de novo”.

Justamente a vida do mar que fez com que Amyr não sentisse nenhuma solidão ao longo dos três meses embarcado. “A pior solidão é conviver no meio das pessoas. No mar, não existe monotonia. Um dia nunca é igual ao outro. Eu até tinha me preparado, pensando que os dias seriam monótonos, do tipo ver o nascer e o pôr do sol. Mas o mar é tão rico e fascinante! Eu tive tanta coisa a fazer que fui preenchendo o tempo. Uma dessas tantas coisas era falar sozinho, no início, bem baixinho, em um discurso às sereias”, disse à época.

Outro problema imaginário que não se concretizou foi o sono. Ele conta que não teve dificuldades para dormir, nem nunca teve delírios. “O único momento em que tremi foi na chegada. Foi como se eu estivesse acordando de um sonho, a certeza de que tudo terminara bem”, contou.

O real e maior problema veio três dias antes do final da viagem, quando uma baleia levantou o barco de Klink e ficou rolando em volta dele. Com as ondas, ele estabilizou a embarcação novamente e seguiu seu caminho. Logo após, acordou quase batendo em uma plataforma submarina de petróleo. Pelo menos, foi o que pensou, pela intensidade da luz. Mas a luz logo se apagou e ressurgia a cada 15 minutos, se revelando, na realidade, um rebocador puxando a plataforma.

A chegada

Cem dias e muitos medos depois, Klink chegou à Praia da Espera, em Itacimirim, às 15h, há 40 anos. A parada foi improvisada, para fugir de uma corrente marinha. Ele foi recebido por dois pescadores que, na simplicidade de quem não sabia do feito, o perguntaram como estava a pescaria no dia. Ele respondeu que não havia pescado nada, nem trazido nenhuma lembrança material da viagem. Os pescadores perguntaram de onde ele tinha vindo, e ele disse que veio da África, ao passo que eles responderam não saber onde ficava essa praia. 

Lá, o navegador fez exames médicos, e assinou o protocolo de chegada com as autoridades do II Distrito Naval, avisados da parada pelo radioamador. Toda terça e sexta, às 13h, ele avisava onde estava. Dessa vez, atrasou 30 minutos, e quando fez contato afirmou que não podia calcular a posição porque tinha chegado.

Na época, ele ainda pensava que falava apenas com cinco amigos pelo rádio, e não com milhares de radioamadores na frequência. Quando anunciou a chegada, foram inúmeras vozes falando. Ele desligou o rádio, recusou qualquer comida, e voltou ao seu barco para dormir. Em seguida, foi rebocado, e seguiu em sua embarcação até o Porto da Barra. De lá, seguiu remando até a rampa do Mercado Modelo, em um esforço final.

Correio da Bahia noticiando chegada de Amyr Klink
Correio da Bahia noticiando chegada de Amyr Klink Crédito: Correio da Bahia

A recepção merecida veio logo após, quando desembarcou oficialmente na rampa. Ao som de “Cisne Branco”, tocado pela banda da Marinha, a Bahia fazia uma festa para o ‘bravo herói do Atlântico Sul’, como diziam as cantigas cantadas pelos associados do Clube Esperia, de São Paulo, do qual faz parte, que foram recebê-lo. Junto a eles, estavam vários baianos, suas fitinhas do Senhor do Bonfim para dar sorte ao remador, e correntes de contas de Yemanjá, a rainha do mar.

Quem também recebeu Klink foi Jacques Eluf, amigo da família e patrocinador que investiu 100 milhões de cruzeiros no projeto de Amyr, e algumas dezenas de milhões na recepção montada em Salvador. Para ele, o navegador trouxe palavras de alegria e sucesso.

“Eu não disse que ia dar certo? Cheguei até mais cedo do que o previsto. E o que é mais importante, consegui sair de um lugar e chegar em outro igualmente planejado, algo que jamais tinham feito naquelas travessias do Atlântico Norte”, disse.

O navegador também foi recebido pelo comandante do II Distrito Naval, o almirante Murilo Cruz Guimarães. Na chegada, recebeu uma placa e uma medalha, pela IAT Companhia de Comércio Exterior, patrocinadora do desafio.

Correio da Bahia noticiando chegada de Amyr Klink
Correio da Bahia noticiando chegada de Amyr Klink Crédito: Correio da Bahia

Aos admiradores, ele dava abraços e dizia “Muito obrigado, você esteve no meu coração”. Aos repórteres, contava sobre fé, dizendo que agradecia a Deus a cada manhã. Amyr é greco-ortodoxo, uma vertente do Cristianismo, e diz que teve proteção divina para chegar onde chegou.

Outra figura que recebeu Klink foi Roberto Muylaert, da Editevê, responsável por enviar a história do navegador para o Guinness Book, livro de recordes mais famoso do mundo. “O que importa é que ele é brasileiro. E fez isso em apenas 100 dias e mais algumas horas. Esse moço é um herói”, comentou.

Estavam por lá também Asa, Jamil e Temur, mãe, pai e irmão do explorador, que tem ainda duas irmãs gêmeas, Ashraf e Irana. Foi no momento em que, após atravessar um arco montado com remos para sua chegada, ele abraçou a família, e veio o choro de emoção.

“A ansiedade e a expectativa maltratam qualquer mãe que desconhece os perigos do mar. Foram 99 dias de muita preocupação, em que os contatos com Amyr por radioamadores não eram suficientes para me tranquilizar porque todos sabemos que o mar é muito imprevisível. Ele está muito magro, abatido, cansado, com as mãos ásperas e cheias de calos. Precisou de apoio para conseguir caminhar aqui. Tem que descansar muito”, disse Ava Klink na chegada.

A mãe contou ainda, que enquanto arrumava o quarto de Amyr, encontrou um livro chamado “Escalação do Monte Everest sem oxigênio”. O paulista, por sua vez, disse que “não se corre atrás da sorte duas vezes”, e por isso não faria a travessia do Atlântico novamente. Mas nada prometeu sobre outras aventuras, e foi o que fez.

A continuação

Quatro anos depois, Amyr viajou de Paraty, onde morava, até a Antártica em um veleiro. Passou um ano por lá, seguiu para o Polo Norte, e voltou a Paraty em 1991. Entre 1998 e 1999, fez uma viagem ao redor da Terra sozinho, e outra em 2003, com outros cinco tripulantes em um veleiro que levava o nome de sua cidade. Hoje, é dono de uma marina em Paraty.

Amyr Klink no barco Paratii - 2
Amyr Klink no barco Paratii - 2 Crédito: Divulgação I Petrobras

O personagem de Júlio Verne da vida real fez jus às aventuras e, canhoto - já que a mão direita era prejudicada -, escreveu seis livros sobre suas aventuras. Um deles, “Cem dias entre céu e mar”, vai virar filme e será dirigido por Carlos Saldanha. No longa, Klink é interpretado pelo ator Filipe Bragança.

Livro de Amyr Klink
Livro de Amyr Klink Crédito: Companhia de Bolso

“Gostaria de ter morrido antes de assistir a um filme sobre mim. Acho muito estranho. Não estou acompanhando as gravações e nem pretendo. Não quero ficar dando palpites e tenho até medo de não gostar do resultado. Mas estou impressionado com o nível de detalhamento, a competência da equipe e a quantidade de dinheiro que levantaram. Posso dizer, com segurança, que atravessar o Atlântico foi 550 vezes mais fácil do que fazer um filme desse tamanho”, comentou Amyr.

Amyr Flink e Filipe Bragança
Amyr Flink e Filipe Bragança Crédito: Divulgação I Adriano Vizoni

Para além dos livros e do filme, suas aventuras seguem vivas também em suas filhas. Pai de três meninas, Amyr passou para a filha Tamara Klink, de 26 anos, o espírito de aventura. Em 2020, Tamara foi da Noruega à França, atravessando o Mar do Norte. Em 2021, foi da França ao Recife, cruzando todo o Atlântico. Atualmente, ela está sozinha na costa da Groenlândia. As notícias, em um mundo muito mais tecnológico do que o de seu pai, passaram de radioamadores para um perfil de 350 mil seguidores no Instagram, @tamaraklink, onde ela relata alguns dos obstáculos, como a tempestade com ventos de 50 nós que enfrentou. Como o pai, Tamara também tem um livro, "Nós: O Atlântico em solitário". 

Tâmara Klink
Tamara Klink Crédito: Reprodução I Redes sociais

Já Amyr, confia mais no mar do que sua mãe confiava quando era ele nas águas. “Não sabemos quando ela volta, nem pra onde ela vai, mas espero que dê tudo certo. Na verdade, fico mais preocupado com a minha outra filha pedalando no Ibirapuera, em São Paulo”, comentou.

Amyr Klink, sua esposa e as três filhas
Amyr Klink, sua esposa e as três filhas Crédito: Divulgação I Família Klink

*Sob orientação do editor Wladmir Pinheiro