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Larissa Almeida
Publicado em 25 de julho de 2024 às 06:00
As folhas e ervas encontradas na Feira de São Joaquim, nas prateleiras próximas aos condimentos no mercado ou no quintal de casa são, normalmente, utilizadas para incrementar o sabor das comidas caseiras. Cultural e historicamente, esses produtos assumem contornos medicinais e religiosos. Foi com o intuito de resgatar esses saberes que, nesta quarta-feira (24), dezenas de pescadoras e marisqueiras baianas e sergipanas participaram do curso “Formação e Troca de Saberes Fitoterapia”, em Salvador.
Conhecida como a prática terapêutica de manipulação das plantas e vegetais para prevenção e tratamento de doenças, a fitoterapia ou herbalismo foi primeiro praticada pelos povos originários e tradicionais. Durante o período colonial, quando os conhecimentos empíricos com elementos naturais foram considerados heresia pelos europeus, muito foi perdido ou usurpado. Por outro lado, o legado que sobreviveu ainda é bem vivo no cotidiano – afinal de contas, poucas são as pessoas que nunca recorreram a um chá de camomila para relaxar ou a um banho de folhas para limpeza com fins religiosos.
No caso da pescadora Carla da Silva Bastos, 42 anos, as folhas e ervas sempre foram usadas para fazer banhos de assento e de recuperação energética. Ela conta que, ao dividir uma casa com 21 irmãos, no Quilombo São Braz, situado no município de Santo Amaro da Purificação, a prática do cuidado com o próximo sempre esteve presente, embora o autocuidado sempre fosse frágil a ponto de favorecer o aparecimento de doenças.
Atualmente, ela - que foi diagnosticada com ansiedade e hipertensão - buscou o curso para não ficar dependente totalmente de medicamentos farmacêuticos. “Eu aprendi aqui a cuidar da minha ansiedade. Já fui para cardiologista e fiz consulta com psicólogo, e todos eles passaram medicamento. Optei por tomar chá e banhos para não ficar com vício. Meu remédio da pressão era para ser contínuo, mas agora não precisa ser mais porque eu alterno o tratamento com uma rodela de pimentão, que eu mastigo e sugo o sumo. Com a minha ansiedade, ajuda colocar o gelo nas mãos”, contou.
No Centro de Treinamento da EBDA (CTN), no bairro de Itapuã, Carla e outras pescadoras aprenderam novas práticas de fitoterapia, perpassando a teoria e a prática sobre os processos de colheita, higiene, armazenamento, controle de contaminação das plantas e aplicação. O curso foi voltado a elas, sobretudo, pelas condições de trabalho a que são submetidas, tendo como risco lesões por corte e aparecimento de doenças, como a erisipela.
A ação foi promovida pelo Conselho Pastoral de Pescadores (CPP) Bahia-Sergipe, que disponibiliza o curso até o dia 25 de julho como parte do Julho das Pretas, comemoração em homenagem ao Dia Internacional da Mulher Afro Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional da quilombola Tereza de Benguela e das Mulheres Negras. Daniela Bento, agente pastoral do Conselho, destacou a importância da iniciativa:“Entendendo esse lugar da medicina convencional, que não agrega os saberes tradicionais, o CPP pensou em como trabalhar uma formação que fosse do autocuidado, voltado às práticas originárias com a fitoterapia, com a aromoterapia, com a reflexoterapia. Conectar o Julho das Pretas a isso é integrar a luta coletiva que é dos territórios originários e entender que, quando nós restabelecemos a nossa relação com os saberes tradicionais, também resgatamos e valorizamos saberes ancestrais das mulheres negras, das iabás e dos territórios que vêm de África”, frisou.
Reunidas em uma grande sala do CTN EBDA, as marisqueiras e pescadoras assistiram a explicação da função de cada um dos elementos apresentados, que iam de gel de babosa até couve-flor, para o tratamento complementar medicinal. No centro do espaço, a terapeuta fitoterápica Eliane Moraes, que atua no ramo há pelo menos 40 anos, aplicou a mistura com argila e canela de velho sobre as pernas inchadas e com edemas da marisqueira Cristiane Vieira, 35 anos, e deu a elas uma demonstração prática dos efeitos das plantas.
Após a aplicação, Cristiane teve as pernas e pés envoltos com as partes moles do repolho e, cerca de 20 minutos depois, conseguiu mexer os dedos dos pés pela primeira vez, desde que foi diagnosticada com erisipela crônica. “Eu tenho muitas dores e continuo fazendo tratamento médico, mas até então nunca consegui desinchar. Hoje, eu estou vivendo uma experiência que está me deixando até emocionada, porque é a primeira vez que sinto meus dedos dos pés com a mesma grossura e o pé com a mesma leveza do outro. É um tratamento que vou levar para casa”, disse.
Segundo Eliane Moraes, o segredo da argila está na sua hidratação com minerais, que promove a ação anti-inflamatória e calmante. Já a canela de velho diminui as dores reumáticas e nas articulações. Ela conta que, apesar da descoberta do uso desses itens terem surpreendido as mulheres que marcaram presença no curso, não se trata nem da ponta do iceberg. “Eu penso que tem que ter mais cursos feito esse e maior continuidade de formação e conscientização de políticas públicas, que deem apoio a essas mulheres”, finaliza.
*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro