A Mulher de Roxo: aparição pós-morte, mãe cuidadosa e enormes lacunas

Livro resgata a memória da mulher que virou uma figura mítica na cidade de Salvador

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  • Nilson Marinho

Publicado em 26 de agosto de 2024 às 05:00

Descalça e de traje roxo aveludado a Dama da Rua Chile caminha pela rua
Descalça e de traje roxo aveludado, a Dama da Rua Chile caminha pela rua Crédito: Jorge de Jesus/Arquivo CORREIO

O professor, psicólogo e escritor Adson Brito do Velho estava com o pai. Tinha oito anos e caminhava pela Rua Chile, no Centro Histórico de Salvador, quando se deparou com uma figura que lhe causou arrepios na alma. Uma senhora que parecia ter saído de um conto de horror infantil, contrastando com as demais pessoas que por ali passavam.

A idosa corpulenta, de bochechas levemente caídas, nariz proeminente, sobrancelhas arqueadas, olhos grandes e profundos, que lhe davam um aspecto sisudo e ainda mais misterioso, vestia uma espécie de túnica de veludo e carregava pendurado ao pescoço um enorme crucifixo. Era a Mulher de Roxo. "Inofensiva", disse o pai do menino, já percebendo o desconforto do filho.

Aquela imagem ficou gravada na memória do garoto que, anos mais tarde, resolveu escrever um livro sobre aquela figura que, entre as décadas de 1960 e 1990, causou espanto a tantos outros moleques e despertou os mais variados sentimentos nos comerciantes e transeuntes da Rua Chile.

A Mulher de Roxo, assim chamada pela tonalidade de sua veste, podia ser vista quase sempre no endereço mais antigo do Brasil, sobretudo em frente à extinta loja de moda Casa Sloper. Seu nome verdadeiro não sabemos. Alguns a chamavam de Doralice; outros, Nair, Sandra e, com mais frequência, Florinda.

As versões sobre como foi levada à "loucura" também são distintas. Há relatos de que ela presenciou a mãe assassinar o pai, de que perdeu tudo em jogos de azar e que ficou sem lar após um incêndio destruir sua casa na Ladeira da Montanha. Nada pode ser confirmado.

Há também a tese de que foi abandonada no altar pelo noivo — essa última narrativa é reforçada porque, em raros casos, a senhora aparecia vestida de branco, com véu, grinalda e buquê em mãos, como se estivesse prestes a dizer um "sim" para um noivo que só existia em seus devaneios.

O que pode ser comprovado é que ela vivia em uma realidade paralela e que morou durante anos em um albergue da prefeitura, na Baixa dos Sapateiros, onde hoje é o Centro de Saúde Pelourinho. Dizia ser dona de todas as lojas da Rua Chile, proprietária do Palácio Rio Branco e até que tinha nascido ali próximo, em meio ao altar da Igreja e Convento de São Francisco, aquele templo revestido de ouro localizado no Largo do Cruzeiro.

Investigação

Adson passou dois anos tentando reunir informações sobre essa figura popular para construir uma narrativa baseada em fatos. Não foi fácil conseguir peças desse grande quebra-cabeça porque tudo o que se tinha à disposição eram versões diversas sobre quem teria sido a também chamada Dama da Rua Chile.

Ele sabia que o desafio era grande, mas mesmo assim foi adiante na construção do livro "Quem tem Medo da Mulher de Roxo?", da editora Novos Sabores. A publicação tem 70 páginas e foi lançada no último dia 10 deste mês durante um evento no Cine Glauber Rocha, na Praça Castro Alves.

Adson foi em busca de informações sobre a verdadeira história da Mulher de Roxo
Adson foi em busca de informações sobre a verdadeira história da Mulher de Roxo Crédito: Divulgação

"O ponto de partida foi justamente ter a certeza de que eu estava mergulhando em um oceano de dúvidas. Eu sabia que não encontraria respostas para muitas coisas. São justamente essas incertezas que fazem da Mulher de Roxo um grande mistério. Um grande quebra-cabeça de mil peças, onde muitas delas se perderam e outras já não se encaixam mais", disse o escritor em entrevista ao CORREIO.

Durante o processo de pesquisa, Adson buscou jornais e revistas da época, acessou artigos publicados em blogs e colheu depoimentos de antigos comerciantes e frequentadores da Rua Chile que disseram ter a conhecido pessoalmente. Uma dessas declarações em especial, dada por uma senhora de 77 anos, chamou sua atenção.

A idosa disse que seus pais eram donos de uma casa nas proximidades da Rótula do Abacaxi, onde viveu a Mulher de Roxo, antes de receber esse título, na companhia do seu filho chamado Joselito, de aparentemente 10 anos. Afirmou ainda que ela se chamava Doralice, era professora e dava aulas na Ladeira de São Bento, bem próximo à escola onde seu pequeno estava matriculado: o Gymnasio de São Bento, como à época se chamava o atual Colégio São Bento.

Como mãe, foi extremamente correta. Estava sempre na companhia do filho, com quem almoçava todos os dias após as aulas em um restaurante que também pertencia aos pais da idosa entrevistada pelo escritor. Como mulher, gostava de andar elegante e bem alinhada antes de passar a viver fora da norma.

"Em um belo dia, os vizinhos foram informar ao pai dessa senhora entrevistada que a inquilina estava quebrando tudo dentro de casa e que seu filho chorava muito. O homem foi lá e a levou para um hospital psiquiátrico que, na época, chamava-se sanatório. A partir dali, ela sumiu e foi viver na rua, e assim nasceu a figura da Mulher de Roxo", conta Adson.

A Mulher de Roxo nem sempre gostava de ser fotografada e não dava detalhes sobre sua vida Crédito: Jorge de Jesus/Arquivo CORREIO

O escritor afirma que o contato com a fonte durante a apuração do livro precisou ser interrompido a pedido dela. A idosa teria dito que a Mulher de Roxo apareceu por meio de um sonho para pedir que a deixasse em paz. Assustada com a manifestação da falecida, ela recomendou que Adson não finalizasse a obra.

"Eu pedi mais um depoimento, mas ela me disse: 'Você não deveria mais tocar no nome da Mulher de Roxo'. Eu falei: 'Mas o sonho foi para a senhora, não para mim. Se ela aparecer no meu sonho, vou ver o que faço. Tento negociar com ela'", brincou Adson.

Há também uma versão para o suposto filho da Mulher de Roxo. Não se sabe para onde ele foi levado e por quem foi educado após o possível surto da mãe, mas o garoto Joselito teria se formado em contabilidade. À imprensa baiana, nos anos 80, pessoas que se diziam próximas à pitoresca confirmaram que o menino, que possuía o sobrenome Santos, "fez-se homem" no Rio de Janeiro.

Mesmo com seus transtornos mentais não acompanhados, Adson diz que não há nenhum registro de que ela tenha sido agressiva ou agredida por alguém durante o tempo em que esteve a pedir esmola no Centro Histórico. Tratava as pessoas como "professorinhas" e "doutorzinhos". Dona de uma voz mansa, que diferia da sua feição, recusava agrados em moeda e só aceitava cédulas.

"Agora, falando como psicólogo, ela tinha uma voz suave que contrastava com seu semblante sisudo, talvez como um mecanismo de defesa. Mas, ao se aproximarem, percebiam que ela tinha uma voz infantilizada, era educada, com bons gestos e modos", analisa o escritor.

Mulher de Roxo em frente a uma das lojas da Rua Chile Crédito: Jorge de Jesus/Arquivo CORREIO

Morte

A Mulher de Roxo deixou a Rua Chile após uma erisipela acometer uma de suas pernas. Foi levada, em 1990, para tratamento nas Obras Sociais Irmã Dulce, onde perdeu sua inconfundível túnica ao dar entrada na unidade de saúde. Com singelas vestes brancas, comuns aos demais pacientes, deixou de ser dona da via histórica, empresária de magazine e proprietária do Palácio Rio Branco. Longe de sua armadura de veludo, foi apenas mais uma anciã enferma sob cuidados médicos.

Lá mesmo, no dia 5 de abril de 1997, durante um breve sono, deixou este mundo sem fazer alarde após sofrer uma parada cardiorrespiratória. Sua morte só foi constatada porque enfermeiras a tocaram, e a baixa temperatura do enrugado corpo denunciou a partida. A equipe do hospital retardou o sepultamento e anunciou a morte da paciente na esperança de que algum familiar procurasse a unidade de tratamento. Não aconteceu.

Adson bem que tentou descobrir com a equipe das Obras Sociais Irmã Dulce o local onde o corpo da Mulher de Roxo foi enterrado. Alegando questões éticas, os profissionais negaram-se a passar qualquer tipo de informação sobre o fim da idosa. O CORREIO, no entanto, foi atrás e descobriu, ao fuçar seu próprio arquivo, onde aconteceu o rito de passagem.

No dia 8 de abril, três dias após a morte, o corpo da Dama da Rua Chile chegou ao Cemitério Campo Santo, por volta das 15h, sendo acompanhado por um mirrado cortejo. A cerimônia fúnebre foi assistida por meia dúzia de outros idosos enfermos, companheiros de ala da falecida. Durante o sepultamento, surgiram outras versões sobre a origem da Mulher de Roxo, tão controversas quanto centenas de outras.

Uma delas é de que, de fato, chamava-se Florinda, pertencia às famílias Bebiano, por parte de mãe, e Caetano, pelo lado paterno, que viveu boa parte de sua vida em Paripe ou Periperi (há divergências), atendendo pelo apelido de Dodô. Seu pai teria sido funcionário da antiga fábrica de cristais Fratelli Vita, mas houve quem dissesse que, na verdade, era um professor chamado Antônio Vieira Mascarenhas que expulsou a filha de casa após a descoberta de uma gravidez antes do casamento.

A história do filho Joselito foi confirmada por pessoas mais próximas à Mulher de Roxo. Durante o velório, outra surpresa: uma jovem de 17 anos vinda de Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador (RMS), surgiu alegando que a falecida era sua avó, desaparecida havia meio século. A moça não teve como provar o parentesco.

Corpo da Mulher de Roxo é carregado no Cemitério Campo Santo
Corpo da Mulher de Roxo é carregado no Cemitério Campo Santo Crédito: Arquivo CORREIO

A Dama da Rua Chile foi enterrada em uma cova simples, de cerca de 80 cm de profundidade, bem longe dos imponentes mausoléus onde descansam os mais abastados finados. Sob a terra, fincaram uma cruz branca pintada com o número 213. Não houve choro, tampouco flores. Como nenhum parente comprovado apareceu, posteriormente, os restos mortais foram lançados em uma vala comum destinada a outros indigentes.

Era tarde demais para ter qualquer certeza sobre a senhora. Doralice, Sandra, Nair e Florinda, louca, bruxa, rainha, desiludida, renegada, professora ou pedinte. Não importava seu nome, nem o que fora, ou o que imaginaram que ela teria sido. A Mulher de Roxo levou consigo para debaixo da terra a sua verdadeira história. Tudo continuou a ser como em vida: o mais profundo mistério.