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Nilson Marinho
Publicado em 18 de janeiro de 2025 às 11:06
Mariá era uma jovem de beleza que saltava os olhos de qualquer pessoa, mas sobretudo daqueles forasteiros, desbravadores do leito do Rio Francisco e dos sertões sem fim daquela velha e desconhecida Bahia do século 17.
A moça, que vivia com a família às margens do Velho Chico, na pequena Ilha do Miradouro, em Bom Jesus do Xique-xique, hoje cidade de Xique-xique, já desabrochava para o tempo como uma delicada flor.
Um tropeiro que por ali passava arriou-se para a ternura da jovem, que correspondeu ao gracejo do cavalheiro das trilhas perdidas. Enamoraram-se em segredo, já que o amor era mais que proibido.
A família de Mariá, sendo seu pai um importante coronel da região, desejava homem de maiores honrarias a ela, mas as chamas do amor clandestino queimava o peito do casal e os encontros em silêncio partilhado a dois eram inevitáveis.
“Os dois se encontravam às escondidas, atrás das árvores de jatobá, que eram frondosas e ficavam afastadas. As lavadeiras, que costumavam lavar roupas à beira do rio, começaram a desconfiar. ‘A filha do coronel está de namoro com aquele tropeiro. Ela que se cuide’, diziam elas”, conta Giselda Meira, especialista em linguística e literatura,e atual coordenadora municipal de cultura da cidade de Xique-xique, uma das guardiãs dessa história.
Os dias se passaram e a semente de um amor proibido começou germinar no ventre da jovem, que decidiu contar ao tropeiro sobre a consequência dos seus encontros à margem do mundo. “Ao sentir sua barriga crescer, ela se deu conta de que estava grávida. Quando contou ao tropeiro, ele fugiu, temendo a ira do pai de Mariá, conhecido como um homem valente e rígido. O tropeiro nunca mais apareceu, deixando Mariá sozinha e desolada”, continua Giselda.
Temendo o desgosto e a cólera do pai, a jovem passou a ocultar os sinais da gravidez com roupas apertadas, mas as lavadeiras, as únicas testemunhas do amor que floresceu em segredo, já estavam mais que desconfiadas. “Quando chegou a hora do parto, ela foi para um lugar afastado, onde as águas do rio eram mais correntes. Lá, desesperada, Mariá deu à luz e, tomada pelo medo e pela tristeza, jogou o bebê no rio”.
Mariá retornou para casa profundamente abatida. Com o tempo, as lavadeiras começaram a perceber algo peculiar: uma pequena cobra, com traços que lembravam o rosto de uma menina, surgia diariamente nas tábuas onde elas lavavam os tecidos. Curiosas e inquietas, decidiram relatar o ocorrido ao padre, que estava em missão na região, mencionando a presença constante da enigmática criatura no Velho Chico. O religioso decidiu realizar uma missa para trazer a verdade à tona.
“No dia da celebração, com a igreja lotada, o padre avisou que a cobra entraria para procurar sua mãe. A pequena serpente foi de mulher em mulher, enquanto todas repetiam: ‘Eu não sou mãe da cobra’. Quando chegou perto de Mariá, a serpente reconheceu sua mãe pelo cheiro do leite. O padre a confrontou e a acusou de abandonar seu filho. Nesse momento, Mariá se transformou em uma grande serpente, que desapareceu em direção ao altar”, relata a coordenadora de cultura.
Segundo a crença dos moradores mais antigos da ilha, é nesse altar onde a grande cobra Mariá vive até hoje, protegendo a estrutura da igreja, erguida no final do século 17, por volta de 1690, para abrigar a imagem de Nossa Senhora Santana.
“A igreja foi tombada entre 2013 e 2015, e durante as obras de restauração, os trabalhadores ficaram impressionados com a robustez das paredes. Com dois altares laterais e um altar-mor, é embaixo deste último que, segundo a lenda, a serpente está escondida. Os devotos mantêm a igreja com muita dedicação. Seu interior, com um sino antigo, um púlpito de madeira de cedro e outros detalhes históricos, emana uma sensação mágica para quem a visita. Durante a festa da padroeira, no dia 26 de julho, os fiéis relatam milagres e conquistas obtidas através da fé”, descreve Giselda.
Essa narrativa é tão forte que até hoje os moradores acreditam na existência da serpente e contam a história com respeito. Muitos dizem ouvir sons vindos do altar, e a zeladora da igreja frequentemente convida pessoas para rezar e acalmar o ambiente. A coordenadora municipal de cultura diz que a igreja é um patrimônio histórico e cultural, com grande valor material devido à sua arquitetura antiga e também imaterial, por guardar a lenda da serpente e a fé da comunidade.
“Infelizmente, os padres mais recentes não reconhecem o valor dessa lenda, mas os moradores, que cresceram ouvindo essas histórias, têm muito respeito por ela. Curiosamente, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) deixou materiais importantes guardados na igreja, e não houve nenhum roubo, pois a comunidade acredita que o local é protegido por duas guardiãs: Senhora Santana e a serpente”.
Acredita-se também que a serpente, assim como a santa, são responsáveis por blindar a igreja de catástrofes naturais, como as enchentes sofridas pelos xiquexiquenses em 1949, ano em que as águas do Rio São Francisco em fúria invadiu a cidade, destruindo casas, desabrigando e ilhando centenas de pessoas. Assim como outra, ainda mais forte, 30 anos depois.
“A igreja e a lenda da serpente são um reflexo da riqueza histórica e cultural da região, perpetuando uma tradição que mistura fé, história e imaginação popular. A igreja, para nós, é um patrimônio histórico e cultural, com grande valor material devido à sua arquitetura antiga e também imaterial, por guardar a lenda da serpente e a fé da comunidade.”, finaliza Giselda.