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Fernanda Santana
Publicado em 1 de julho de 2023 às 05:00
O rosto é a primeira apresentação de alguém, mas são os olhos, se mais redondos ou caídos, por exemplo, que podem transmitir altivez ou ingenuidade. Por isso, quando Filomena Orge analisou o olho esquerdo que desenhou em um papel descartou o rascunho e disse: “Essa não é Maria Felipa”. Os olhos não pareciam os de uma guerreira.
A perita criminal e desenhista Filomena Orge estava empenhada em dar um rosto a Maria Felipa, cuja imagem, por mais de um século, só existia na memória oral de moradores da Ilha de Itaparica. Há dois meses, ela estudava a mulher que é tida como uma das heroínas da Independência na Bahia por parte dos historiadores e baianos.
Até aquele junho de 2004, quando recebeu o convite de uma faculdade privada para um desenho artístico do rosto e do busto de Maria Felipa, Filomena nunca tinha ouvido falar nessa personagem histórica. “Me surpreendi quando recebi o convite”, lembra.
Era esperado que se sentisse assim. Como perita, trabalhava com retratos falados de criminosos, a partir do depoimento de vítimas, não de personagens históricos.
O início do trabalho da desenhista, graduada em Belas Artes pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e especialista em desenho de faces, convergiu com o período em que Maria Felipa começava a ganhar destaque nas narrativas sobre o 2 de Julho.
No festejo da Independência daquele 2004, Felipa apareceu representada pela primeira vez no cortejo que vai da Lapinha até o Campo Grande, por iniciativa do Conselho da Comunidade Negra da Bahia.
De acordo com a tradição oral, Maria Felipa se destacou na defesa de Itaparica, em 1823, como parte da Campanha da Independência, que reunia índios, negros livres e escravizados na luta pela liberdade. Nesse percurso, ela surrou portugueses com folhas de cansanção. Mas a existência dela não é consenso – mais adiante nesta reportagem, você entenderá o porquê.
Filomena leu e ouviu à exaustão os supostos feitos e características de Maria Felipa até se sentar, em casa, para desenhar o primeiro rosto que descartou no lixo. Voltou ao papel em seguida e depois de cinco dias, a apagar ali e acrescentar luzes acolá, surgiu, agora sim, a face da mulher que seria conhecida por Maria Felipa.
Ela tinha a maçã do rosto alta, maxilar e queixos marcados e um olhar que parece te enxergar. Ao ver aqueles olhos, Filomena sentiu verdade, diferentemente da primeira experiência. "Vi veracidade e possibilidade e comunicação. O resto veio sem dificuldade”, conta Filomena.
Antes de entregar o retrato falado final, no entanto, um acidente doméstico quase jogou fora os dias de trabalho, que pode ser visitado na Casa de Maria Felipa, no bairro do Curuzu, em Salvador.
Mulher negra de origem sudanesa. Natural de Itaparica. Capoeirista. Corpulenta, alta e forte o suficiente para surrar portugueses. Essas eram algumas das referências bibliográficas que Filomena recebeu e aprofundaria nos meses de pesquisa.
O convite para realizar o retrato falado veio da escritora e mestre em Educação Eny Kleyde Vasconcelos Farias, que só em 2010 publicaria o livro Maria Felipa, Heroína da Independência da Bahia”.
À época, Eny era professora da Faculdade Olga Mettig, envolvida em uma pesquisa sobre a guerreira Felipa, que, até então, não tinha rosto.
O grupo envolvido no trabalho acadêmico, afinal, não havia encontrado fotografias, nem pinturas da guerreira, apenas relatos em livros e falas da memória oral. A fotografia chegou ao Brasil em 1840, 13 anos depois da Independência na Bahia e restrita à nata da elite econômica.
Um colega de Filomena da época da Escola de Belas Artes da Ufba quem a indicou para Eny, que visitou Filomena para explicar melhor o que precisavam e, mais importante, apresentar Maria Felipa.
O retrato falado é a imagem de uma pessoa construída a partir da memória de quem a viu, como vítimas ou testemunhas de um crime. "Você viu alguém e lembra dela, que sumiu, mas você tem a lembrança. A partir das informações abstratas, o desenhista cria um rosto", explica Filomena. É um trabalho que combina técnica e subjetividade.
Técnica porque os desenhistas seguem métodos para construir um retrato falado, como o fato de o rosto humano obedecer a distâncias entre o chamado triângulo de identificação: olhos, nariz e boca. E subjetivo pois são esses profissionais quem assimilam as informações e ilustram o que lhes dizem, as pessoas ou livros.
Para colocar a abstração no papel e dar rosto ao que é memória, o desenhista primeiro pergunta ao informante as características gerais da pessoa retratada (como se ela é homem ou mulher, idosa ou jovem), as específicas (a cor do cabelo, a profundidade dos olhos) e as particularizantes (sinais que identificam uma pessoa, como deformações).
Na elaboração de retratos falados de criminosos, o procedimento era mais simples: ouvir quem precisava ser ouvido e desenhar. Mas para perfilar no papel uma Maria Felipa havia algumas pedras pelo caminho. A maior delas era o fato de que ninguém que viu a dita heroína poderia contar a Filomena detalhes do rosto e corpo dela.
Esta é Maria Felipa: o que dizem os livros sobre a heroína
Restavam à desenhista os livros sobre Maria Felipa, a pesquisa sobre o contexto em que ela viveu e entrevistas a pessoas que se dizem descendentes dela.
As obras escritas já apresentavam as características físicas gerais de Felipa. Foi em um deles, por exemplo, que Filomena descobriu que a retratada era de linhagem sudanesa (povos da África Ocidental, sem ligação com o Sudão). Ao consultar outras referências escritas, Filomena descobriu o que isso poderia significar fisicamente.
Os sudaneses são descritos como altos e corpulentos, “inclinados a movimentos revolucionários”, no livro Fluxo e Refluxo, resultado de 20 anos de pesquisa do etnógrafo francês Pierre Verger sobre o tráfico de escravos do Golfo do Benim para a Baía de Todos-os-Santos.
Ao encontrar supostos descendentes de Felipa, Filomena constatou neles algumas dessas características e acrescentou novas ao repertório de referências. A testa alta foi um dos elementos físicos acrescidos a esse mosaico.
Para ver Maria Felipa, Filomena ainda precisava entender o que era ser uma mulher negra, escravizada liberta, no século 19, na Ilha de Itaparica. "Era preciso saber como uma mulher negra daquele período estaria vestida, como se comportava, o que fazia”, conta. A bata e torso combinavam com as informações disponíveis em museus.
O trabalho para revelar uma Maria Felipa ao mundo era feito nos momentos de folga de Filomena. Se tinha intervalos no almoço, sentava para desenhar. O desenho custou R$ 150 e Filomena cedeu os direitos de imagem. “Pedi o valor que pedia para qualquer outro desenho [...] No momento que aceitei, sabia que estava assumindo um compromisso muito sério, uma missão”, afirma.
Filomena sempre começa seus desenhos pelo olho direito. Se não transmitirem uma humanidade palpável, apaga tudo ali mesmo. Quando achou ter concluído o retrato de Maria Felipa, levou-o para que colegas de trabalho vissem e respondessem a uma pergunta: “O que vocês sentem ao ver esse rosto?”.
Todos foram unânimes: “uma guerreira”. Ali Filomena teve certeza de que a tarefa estava cumprida.
No dia marcado para entregar o desenho, ela decidiu fazer os últimos reparos no rosto de Felipa. Enquanto preparava o almoço, no entanto, cortou o dedo na cozinha. Sem se dar conta do volume de sangue que jorrava dele, Filomena viu um pingo vermelho cair sobre o nariz pronto de Maria Felipa.
Filomena.
Perita Criminal e desenhistaÀs 13h30, a professora Eny Kleyde chegou à casa da desenhista para buscar o retrato, protegido sob uma folha de papel manteiga. Quando tirou a capa de proteção e viu a imagem, ela chorou. “Meu deus, é Maria Felipa”, disse Eny.
Maria Felipa nasceu escrava, mas conseguiu a liberdade e fez dela a luta da sua vida, segundo Eny Kleyde Vasconcelos Farias em Maria Felipa, Heroína da Independência da Bahia. Ela era "alta e cedo aprendeu a trabalhar como marisqueira e lutar capoeira" e usava bata, saias rodadas, torso e chinelo, mesmo que fosse para vigiar dia e noite trincheiras de batalhas e "prevenir a chegada do exército inimigo".
A primeira vez que Maria Felipa aparece na literatura é no livro A Ilha de Itaparica: História e Tradição, escrito por Ubaldo Osório Pimentel mais de um século depois da guerra e publicado em 1953. Pimentel é avô do também escritor João Ubaldo Ribeiro e deu à filha o nome de Maria Felipa.
Em 2010, quando publicou um livro sobre Felipa, Eny Kleyde se juntou ao catálogo de referências sobre a dita heroína da Independência.
A história de Maria Felipa, no entanto, é objeto de divergência entre historiadores. Principalmente porque a existência dela não está confirmada por documentos históricos, embora viva na memória oral e seja exaltada na Ilha de Itaparica.
Há historiadores que afirmam que Felipa, na verdade, simboliza uma parcela das pessoas que lutaram pela Independência da Bahia – as mulheres negras. Outros, como Jaime Nascimento, negam a existência dela.
Jaime Nascimento.
Historiador, professor e pesquisadorPara Jaime, Felipa é uma personagem fictícia de Osório Ribeiro. "Se quiser me convencer com provas, ok, ou então diga que é como uma questão mítica, como dos fundadores de Roma (os gêmeos Rômulo e Remo, segundo a lenda, foram arremessados no rio para que morressem, mas uma loba os alimentou. Rômulo fundou Roma)”, diz.
A representação narrativa da participação de mulheres nas lutas pela independência na Bahia surge nos anos 1920, mas restrita a Joana Angélica e Maria Quitéria. “Quitéria, apesar de ter lutado e sido condecorada por Dom Pedro, só teria o nome discutido com mais força 100 anos depois”, afirma a historiadora Victoria Fares.
Isso porque a historiografia oficial costumava destacar as figuras masculinas, como a do Corneteiro Lopes e Madeira de Melo. Para Victoria, o ingresso de mais mulheres (a maioria, brancas) nas universidades, a partir dos anos 70, contribuiu para novos trabalhos sobre a participação feminina na luta pela liberdade na Bahia.
A partir de 2010, a intensificação das pesquisas sobre gênero e raça, continua a historiadora, também impactou na diversidade das pesquisas historiográficas: mulheres e homens negros e indígenas que não viam suas tradições escritas, passaram a contá-las e reivindicar mais espaço para elas.
Victoria Fares
HistoriadoraNa última década, o debate sobre Maria Felipa cresceu a ponto de uma nova imagem ser associada a ela e figurar em revistas e redes sociais. Na foto, uma mulher negra, com torso e brinco nas orelhas, olha para câmera fixamente.
Filomena,
a perita que desenhou a itaparicana.Ícone, mulher ou a força de uma ideia, Maria Felipa tem um rosto – e ele é de batalha.
O projeto Bahia livre: 200 anos de independência é uma realização do jornal Correio com apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.