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Millena Marques
Publicado em 22 de julho de 2023 às 05:00
Acarajé é a comida de Iansã, orixá das tempestades e com fama de briguenta no panteão afro-baiano. Talvez, por isso, mudar a cor do bolinho frito mais famoso de Salvador tenha rendido treta dentro e fora da internet. Inspirada na estreia do filme da Barbie, a baiana Adriana dos Santos, conhecida como Drica, pode ter exagerado na pimenta ao tingir o sagrado de rosa. A ideia marqueteira dividiu opiniões. De genial a blasfêmia, na última semana, todo mundo deu pitaco na polêmica. Até quem nem gosta tanto assim de acarajé.>
Apesar do sucesso de vendas do ‘acarajé da Barbie’, em Itapuã, onde Drica tem seu tabuleiro, e da avaliação positiva de profissionais da publicidade pela sacada de mestra da baiana, a questão sobre uma possível descaracterização de um elemento, que é símbolo identitário da cultura de matriz africana, gerou acirrado debate entre outras baianas de acarajé, antropólogos e pesquisadores das ‘comidas de santo’. Vale lembrar que o acarajé - e seus modos tradicionais de preparo – é acervo imaterial tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).>
No início da semana, após a divulgação do bolinho cor-de-rosa tomar fôlego nas redes sociais, Adriana viu seu perfil profissional ganhar 8 mil novos seguidores no Instagram, ultrapassando a casa dos 97 mil. De acordo com a proprietária do Acarajé da Drica, a ideia surgiu de uma admiração dela e da filha pela Barbie, mas também como uma estratégia de marketing, a exemplo de outras empresas do ramo alimentício, que começaram a mudar a cor dos alimentos, como pães de hambúrguer, pizzas e até mesmo crepes, para impulsionar as vendas na carona da estreia do filme.>
“A gente já tinha o perfil do Instagram bem avançado e nossos seguidores gostam dessas ‘trends’ [tendências]. Fizemos o experimento em uma pequena quantidade de massa e vimos que o sabor não mudou”, afirma Drica, salientando que não venderia o bolinho caso o sabor fosse modificado. A intenção era vender apenas combos e barcas, mas a repercussão chegou a gerar uma disputa da nova versão da iguaria com a tradicional e clientes que foram a Itapuã na quarta-feira (19) buscavam o acarajé cor-de-rosa.>
A presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé (Abam), Rita dos Santos, afirma que a invenção desrespeita um elemento ligado diretamente à tradição de religiões de matriz africana. “Baiana de fato é aquela que, mesmo não sendo de religião de matriz africana, respeita e sabe a origem do acarajé. [A nova versão] brinca com a cultura e com o sagrado de uma religião”, pontua Rita dos Santos. >
Por não ter modificado o sabor do bolinho, Drica acredita não ter desrespeitado movimentos baianos de defesa da cultura afro. Mas, mesmo recebendo o apoio de boa parte dos consumidores, as críticas a deixaram angustiada. “Recebi várias críticas, mas não quero absorver. Não estou mais lendo comentários nas redes sociais, para não me abater, porque eu fiquei muito abalada”, disse a baiana, que resolveu abreviar o tempo em que pretende comercializar o acarajé rosa. >
Para o presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia, Leonel Monteiro, qualquer alteração feita em um bem cultural traz danos à imagem e a perpetuação da tradição ancestral. “Não é um simples elemento de alimentação. Estamos falando de um produto que tem a sua origem na cultura ao orixá e que possui sua tradicional forma de ser feita”, explica, reforçando, como Rita dos Santos, o desrespeito ao sagrado. >
Ao analisar a aceitação do quitute cor-de-rosa por boa parte do público, Leonel Monteiro destaca a falta de conhecimento da maioria dos consumidores, comparando a forma de repercussão da invenção com os possíveis transtornos que seriam gerados caso a anilina cor-de-rosa fosse utilizada para a confecção da hóstia, o pão consagrado que simboliza o corpo de Cristo para os cristãos católicos durante a comunhão. “Imagine o alvoroço que isso iria causar. Isso demonstra a falta de entendimento sobre a preservação dos nossos bens culturais. Temos que respeitar o sagrado, ainda que não pertençamos a um segmento religioso. ”>
O escritor e jornalista colombiano Nelson Cadena, morador de Salvador há 50 anos, analisou a versão Barbie da iguaria por duas vertentes: pelo tombamento histórico do acarajé, que prevê a preservação de um item alimentício identitário, mas compreendendo a ação promocional de Drica, apontada como algo passageiro por ele.>
“A gente tem que compreender que a Drica quis fazer uma ação promocional, como muitos fizeram. É uma coisa passageira. A gente sabe que os baianos não vão aprovar o acarajé cor-de-rosa no cotidiano, muito menos com mistura de anilina ou de ingredientes que não são adequados para o preparo da iguaria”, opina Cadena.>
A publicitária Adriele Gama, uma das fundadoras da Liga Propaganda e Marketing, avalia a estratégia de Drica como uma ferramenta de enriquecimento da cultura, de forma inovadora e inteligente, mostrando ao mundo que as baianas estão surfando na 'onda pink'.>
"A pizza é tombada pela Unesco e, no entanto, nós estamos o tempo todo querendo reinventá-la. Não considero [o acarajé rosa] uma ofensa, mas uma forma de enriquecer ainda mais a cultura", pontua.>
Vilson Caetano Júnior, babalorixá e antropólogo, doutor em Ciências Sociais e com pós-doutorado em antropologia, contesta a motivação da campanha do acarajé rosa ao avaliar o contexto histórico da idealização da Barbie, boneca branca, loira, magra de uma forma a frequentemente ser associada à anorexia e norte-americana. Do outro lado está o acarajé, elemento associado a uma comida africana que faz menção à ancestralidade dos orixás e também tem um significado político. >
“É uma comida que traz a memória de pessoas que, desde cedo, quando escravizadas, alimentaram a cidade. Não precisamos do acarajé rosa. Não precisamos homenagear a Barbie”, pontua Vilson. >
A ‘onda pink’, proveniente das estratégias empregadas na divulgação do filme da Barbie, inundou o mercado de vários segmentos. No entanto, o problema está na alteração de elementos identitários em prol da necessidade de vender. É o que aponta Tobias Muniz, comunicador e pesquisador de Cidades, Cultura e Povos Tradicionais. “A partir do momento que o acarajé se torna patrimônio tombado, ele preserva a história de um povo. É um elemento nacional, étnico, de um grupo, que não pode ser descaracterizado”, afirma.>
*Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro>