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Marina Branco
Publicado em 25 de dezembro de 2024 às 02:00
"Transgressão imputável da lei penal por dolo ou culpa, ação ou omissão; delito". Essa é a definição de crime no dicionário. Crime, assim, é tudo aquilo que vai contra a lei e merece não somente ser proibido, como também punido, vigiado e controlado. Há mais de 50 anos, uma menina cometia um crime nas ruas de Camaçari: o futebol.
Dilma Mendes escondia as garrafas de água dos meninos que jogavam bola na rua mais longe. Assim, eles demorariam mais tempo para se hidratar, deixando um dos times com um a menos. Era o momento do crime dela entrar em ação. A baiana deixava de ser gandula e se tornava jogadora por dois minutos, levando a redonda em embaixadinhas, dribles e passes - e mostrando aos irmãos e amigos que sabia jogar.
De 1941 até 1979, o futebol feminino era proibido no Brasil, e a prática era considerada criminosa. Mas Dilma desafiou o mundo, a ordem e a lei, e decidiu tornar, no país, a modalidade tão gigante quanto, sem ela, jamais poderia ser.
“Os passos que eu dei são porque eu sempre tive na minha cabeça - e fui criada dessa forma - de que nós, mulheres do esporte, somos vítimas da sociedade. Mas a gente não pode estar no lugar de vitimista porque, senão, a gente não dá passos. E foi diante dessas circunstâncias da vida que eu dei os meus passos”, afirmou.
Inconformada em ficar longe dos campos, Dilma insistiu e ajudou a construir o primeiro time de futebol de sua cidade. No início, foram mais de 30 meninas. Mas que se tornaram três logo no dia seguinte, quando os pais proibiram a maioria de jogar. Três jogadoras escassas para uma modalidade que precisa de 22.
A solução, então, foi encontrada no futsal, que, por precisar de menos jogadoras, abria uma porta mais acessível para todas elas. Em um time misto com os meninos, Dilma e suas parceiras saíam de Camaçari em um trem às 5h da manhã e voltavam às 17h. O destino era o Severino Vieira, em Salvador.
Foi lá que o caminho da maior técnica de futsal do mundo no profissional começou - e garantiu mudar para sempre a história do esporte feminino na Bahia.
Em suas idas a Vieira, Dilma ouviu falar de um time de campo em Valéria que abria espaço para o futebol feminino. Foi pelas palavras de Natalino, torcedor fanático, que ela conheceu o Ypiranga, time pelo qual começou a jogar com suas meninas. Com o futebol feminino proibido até 1979, elas atuaram pelo clube até meados de 1986, ainda sentindo as dores da proibição.
Depois de uma semana inteira de treinos, chegavam à Fonte Nova e eram impedidas de entrar, pelos mais diversos motivos e preconceitos. A solução, então, era jogar nos campinhos do Dique do Tororó, resistindo e persistindo.
“E não era só a proibição. Tinha também a postura do preconceito, do racismo, a partir do momento que os atletas do Ypiranga iam jogar nos grandes clubes sociais de Salvador e não podiam entrar. A gente tinha que entrar pelo portão da garagem ou pelo portão que os funcionários passavam. Nós somos mulheres pretas e o Ypiranga era 99% de atletas negras. Então a gente teve essa outra luta para ocupar os espaços que a sociedade nunca nos deu”.
Com o tempo, outros times femininos foram nascendo em Salvador. Bahiano de Tênis, Flamengo de Feira, Tejan de Alagoinhas, Panteras de Ipiaú. No Bahia, Vitória, Catuense e Leoni, ainda nem pensar. Mas era um começo.
Assim surgiu o primeiro campeonato feminino, ainda não registrado pela Federação. Realizado pela TV Itapoan, o torneio contou com 16 clubes, incluindo o Ypiranga. Com apoio de presidência e clube, as meninas alçaram a Copa Salvador e seguiram treinando.
Em meio às lutas e insistências, Dilma começou a sentir que, para avançar no esporte feminino, seria preciso entregar resultados, provas de que valia a pena. E, no campo, a exigência numérica a limitava. Por isso, nos anos 90, ela foi buscar o futuro no futsal.
Lá, os desafios eram outros, misturando um esporte novo com dinamismos complicados. “O futsal é dinâmico, o contato é muito próximo, então o raciocínio tem que ser rápido, o domínio e o passe têm que ser quase perfeitos. Não é que o futebol não mereça - mas, na época, qualquer jogador podia ser jogador de campo, mas nem todo jogador podia ser jogador de futsal”.
Por isso, Dilma precisou estudar. Entender a fundo a nova modalidade e levar, com seu conhecimento, o reconhecimento que o futebol feminino merecia. “Eu não entendia muito e, como na minha vida, eu sempre gostei muito de tudo que eu não entendo. Eu percebi que precisava estudar futsal. Talvez eu tenha me tornado uma treinadora por causa desse estudo”.
Tudo deu certo. As mulheres treinadas por Dilma foram campeãs brasileiras de futsal em 1993, com o mesmo time que jogava em campo. Mas, ainda assim, o reconhecimento não passou a existir.
Dilma seguiu no futsal feminino até 1995, quando jogou seu último Campeonato Brasileiro. Em 2000, mais uma mudança de rota: virou treinadora no masculino.
“Foi o único caminho que eu vi. Trabalhar com o masculino, porque, se uma mulher ganhasse alguma coisa, eles veriam que a mulher pode estar em qualquer lugar, basta ela ter competência e estudo para escolher onde ela quer ficar. Fui buscar essa visibilidade, porque a gente continuava ganhando as coisas, mas era invisível”.
Se a intenção era vencer, Dilma conseguiu, novamente contra tudo e todos. Enquanto orientava seu time na beira do campo, em campeonatos com 31 treinadores e uma única treinadora, os questionamentos eram incessantes. “Cadê o treinador da Bahia? Será que essa mulher sabe mesmo o que está fazendo?”, diziam os adversários e até mesmo colegas, que insistiam em ir na beira do campo assistir a seus direcionamentos.
“As pessoas não acreditavam que uma mulher podia entender de esquema tático, de padrão de jogo, de sistema. Mas pagaram para ver e, muitas vezes, eu adorei a burrice de alguns. Eu ganhei vários jogos porque eles não acreditavam e faziam jogadas ensaiadas perto de mim. Eu ia anotando e falava a meus jogadores para fazerem gols com as jogadas do time adversário”.
De bons em melhores resultados, Dilma seguiu estudando e conheceu o fut7 em 2011. Lá, viu uma possibilidade de levar seu time ao primeiro Campeonato Baiano de Fut7, criando um novo padrão de jogo e movimento tático que ia do futsal à nova modalidade - e que, até hoje, é estudado em grupos de estudo com treinadores de todo o país.
Entre seus estudos, Dilma estuda os projetos sociais que fomentam o futebol feminino e tenta diagnosticar onde estão os obstáculos para seu crescimento. Para ela, o segredo está nos planos que queimam etapas.
“Times profissionais têm uma lei que exige o futebol feminino, mas, para cumprir com isso, pegam projetos que fazem com que meninas que sonham em ser jogadoras joguem com atletas além da sua idade”, comentou.
“É queimando essas etapas que vemos no Campeonato Baiano uma equipe tomando 20, no Campeonato Brasileiro tomando 12 em plena televisão. E a gente não se preocupa com essas meninas que vão se tornar mulheres e não vão mais conseguir fazer a prática do futebol, porque isso marca qualquer atleta”.
Foi no fut7 que apareceu a grande oportunidade da vida de Dilma: treinar a Seleção Brasileira - feminina, diga-se de passagem. Em 2016, o convite chegou e, com muita dor, foi recusado, para que ela pudesse cuidar de sua mãe, que na época tinha mais de 90 anos. Mas é como a própria Dilma diz: “muita gente me falou que Deus só dá uma oportunidade, mas a mim, Ele deu duas”.
Em 2019, o mesmo convite voltou, para substituir um treinador que havia sido campeão mundial. Se existe a ideia de que ‘em time ganhando não se mexe’, o Brasil decidiu mexer por Dilma, mulher preta do Nordeste, que disputou a nível nacional com o time masculino e fez história no esporte.
Lá, os desafios continuaram. “Eu fui campeã, mas o melhor treinador era sempre aquele que perdia de mim. Fui campeã da América, o cara é quem foi o melhor. Foi Argentina, Colômbia, México, Rússia. Eu até ria comigo mesma, porque entre 12, 14, às vezes 20 seleções, sempre fomos campeãs ou vices. Em 2020, eu fui vice. Quando eu era campeã, o vice era quem ganhava. Agora, quando eu era vice, o campeão ganhou”.
O reconhecimento só veio de verdade em 2023, quando Dilma foi finalmente eleita melhor treinadora de fut7 do mundo, após quatro Copas Américas e um Mundial conquistados.
A notícia veio por um de seus atletas, que mostrou um card com a mensagem. A reação imediata dela foi o riso: “é fake news, não tenha dúvida!”. Mas, ao abrir seu e-mail, viu o convite para a premiação no México no ano seguinte.
“Esse título não é sobre Dilma, é sobre todas as mulheres brasileiras que não tiveram chance. A gente tem tantas amigas e ex-atletas que não tiveram a oportunidade de estarem vivas para ver essas coisas, e eu ainda consegui estar aqui, aos 61 anos, para passar por isso. Então não é só sobre Dilma, é sobre todas nós”.
Se Dilma construiu a Seleção Brasileira feminina de fut7 do zero, isso é ainda mais realidade quando olhamos para a braçadeira de capitã, enrolada no braço de Miraildes Maciel Mota - a Formiga.
A atleta que marcou a história na Seleção Brasileira de futebol foi descoberta por Dilma nas quadras do Lobato, em Periperi. “Primeiro, eu achei que era um menino, e depois vi que era uma menina jogando com os homens. E era ela. Eu esperei ela jogar e perguntei onde ela morava. Fui falar com a mãe dela. Ela jogava bem, e tinha coragem de estar no meio dos homens, com aquela vontade, descalça. Nós dividimos essa parceria com Dona Celeste, a mãe dela, até os 12 anos, quando ela veio morar comigo na Casa do Atleta”.
Dilma levou Formiga em todas as competições do time que treinava, Euroexport Campomar. Levava a filha de coração para campeonatos como o Brasileiro em Goiás - que ela nem mesmo pôde jogar, por não ter 16 anos. Foram quatro anos assistindo de perto, até que, aos 16, foi campeã brasileira de futsal - com gol na final, consagrando o primeiro e único título da modalidade que a Bahia tem.
As duas jogaram juntas nesse campeonato - ainda que, para treinar o time, Dilma tenha atuado durante apenas dois minutos na final - e seguiram assim até 1995, no Rio Grande do Sul, em Capão da Canoa, quando Formiga apareceu para o mundo e Dilma se aposentou como jogadora. Vinte anos depois, o convite para se reunirem chegou.
“O masculino estava levando Falcão, peças bem fortes. E o feminino não podia ficar atrás. Então eu chamei ela, e ela também se apaixonou pelo fut7. Quase 25 anos depois, hoje eu posso ser treinadora dela de novo”.
Hoje, Dilma é subsecretária do Esporte, Lazer e Cultura em Camaçari e curadora do Museu do Futebol em São Paulo, levando a história do Ypiranga e do futebol feminino às exposições eternizadas. Nas paredes, fotos da televisão de tubo mostram as atletas do aurinegro assistindo a um jogo do Catuense na concentração, compondo as pesquisas sobre o feminino da Bahia e do Nordeste.
Acima de tudo, estão penduradas nas paredes do museu as lembranças da Seleção Brasileira feminina de 1988, que, sem nenhum registro na Confederação Brasileira de Futebol, representou o país em uma copa experimental na China.
No museu, Dilma uniu fotos que traziam apenas Formiga, Roseli, Cici, Cris e Marta a imagens de mulheres desconhecidas que embasaram o futebol feminino na Bahia. Uniu os recortes de jornais sobre a proibição de 1964 aos títulos conquistados e à história escrita.
O legado continua, o caminho continua longo e o futebol feminino segue jogando, desde sempre, com o apoio de uma de suas principais pioneiras. O crime, hoje estampado nas paredes de museus, é carregado com orgulho nas vozes que seguem lutando pelo futuro das mulheres no esporte.
“Que a gente possa ecoar essa voz a outras mulheres. Que essas outras mulheres não desistam. A gente fala muito de sonhos, de foco, mas, na verdade, a gente precisa ter uma disciplina muito grande no que a gente colocou como meta de vida. O Brasil deve muito às mulheres. O Brasil pagou sua primeira prestação, mas ainda tem muitas a pagar às mulheres no esporte, às mulheres no futebol”.