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'Bloco afro não pode ter vergonha de ganhar dinheiro', reflete Alberto Pitta

Criador do Cortejo Afro e artista plástico diz, em entrevista ao CORREIO, que blocos afro, além de 'segurar a estética' do Carnaval, agem onde o Estado não chega

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 18 de fevereiro de 2023 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO

De um franjeado de Mata Atlântica com vista para a Bacia do Cobre e o Parque de São Bartolomeu, surge Alberto Pitta, 62 anos. “Se eu perco  de vista o lugar que eu venho, eu sou nada”, diz, vestido de branco e de frente para o verde da mata e o escuro das águas, o criador Cortejo Afro, que neste Carnaval completa 25 anos do propósito de promover um efeito estética para a cidade. 

Tudo que chega nos circuitos Osmar e Dodô, onde o Cortejo Afro desfila sábado, domingo e segunda, respectivamente, sai de Pirajá, onde Pitta nos recebeu dois dias antes do início da festa. As mãos que costuram as fantasias são de gente “da área”, assim como é do bairro a força por trás do bloco. “Essas organizações [blocos afro] têm uma questão familiar forte que segura, não abriram mão do bairro, da história do lugar. Por exemplo, você tem um Araketu, quando ele sai de Periperi para virar pop, se ferra”, opina.Em 25 anos, o Cortejo Afro introduziu novas estéticas no Carnaval – foi o primeiro bloco afro a desfilar com roupas brancas com estampas brancas –, pôs as segundas no calendário dos ensaios carnavalescos e atraiu para seu círculo intelectuais e famosos, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Regina Casé. “Agora, quem estamos incluindo somos nós. Eu estou incluindo, quando trago pessoas não negras para dentro do Cortejo para compartilhar das nossas coisas. Isso não é problema”.O ateliê de Pitta divide espaço com o Instituto Oyá, criado por Mãe Santinha, mãe dele e ialorixá (falecida em 2015), e o Terreiro Ilê Axé Oyá. O artista plástico, que desde 2019 assina peças para a marca carioca Farm, dá aulas aos alunos do Instituto. É o lado social dos blocos afro. "[Depois do Carnaval], nós, dos blocos afro, ficamos aqui cuidando dos filhos de ninguém, entre aspas, dos filhos que ninguém quer. Ficamos na comunidade resolvendo B.O. que deveria ser resolvido pelo Estado. Mas eu, particularmente, venho falando: ‘olha, a gente não pode ter vergonha de ganhar dinheiro com o Carnaval não’".Por quase duas horas, Pitta falou ao CORREIO sobre a trajetória dos blocos afro, o que está por trás da dificuldade dessas organizações, a perda de estética de parte da festa e como evita contradições na condução do Cortejo. Ele exemplifica: "Não posso fazer um show para a classe média branca até meia noite e, duas horas da manhã, meus músicos estarem no ponto esperando um ônibus". Leia íntegra: 

CORREIO: Para o Cortejo, foi difícil organizar o Carnaval de 2023, depois de dois anos sem a festa?

Alberto Pitta: Sempre foi difícil. Para todos [risos]. Eu fiz uma música para os 21 anos do Ilê, um dos trechos é: ‘lindo é subir o Curuzu, difícil é chegar na cidade’ [música "Ilê Impar"]. É uma metáfora para dizer o quão difícil é fazer bloco afro, que é completamente diferente de tudo que se faz no Carnaval de Salvador.

O bloco afro tem, nos seus itens, as coisas do axé, e tudo isso custa [dinheiro]. O check list é surreal. O Cortejo faz 25 anos e traz como tema o Logun Ede, o orixá menino que velho respeita. Esse menino é o Cortejo que faz 25 anos frente a um Olodum, um Ilê Aiyê às portas do 50 anos. Agora, obviamente, é muito difícil.

Gilsoney, presidente do Filhos de Gandhy, falou recentemente sobre as dificuldades de vender fantasias. O Cortejo Afro vendeu fantasias o suficiente?

O Cortejo é um bloco feito para os amigos e pessoas que conhecemos a cada ano. É um bloco de convidados. Não tem foco profissional da venda da fantasia [a fantasia custa R$ 300). O Cortejo faz 2 mil fantasias e doa 70%: sai a comunidade, saem os terreiros de candomblé, tem toda essa política de inclusão. Fora outras pessoas da cidade que convidamos. 

Mas a gente também precisa vender e, como temos dificuldade com a venda, é importante termos pessoas no bloco, buscamos uma forma de captar recursos para garantir nossa saída. As fantasias são um item para colocar o bloco na rua, mas há uma série de outras coisas que também são muito caras."E se você quer fazer, tem que fazer bem feito. Não adianta tratar pobreza com pobreza, achar que qualquer coisa serve".No caso do Cortejo, tem que ser o melhor, temos que pagar bem a produção, as costureiras, os sapateiros, quem faz o carro alegórico, quem faz adereços, alegorias, para que as pessoas se sintam estimuladas a apresentarem o melhor. Sou um artista que convida vários outros, não quero só a minha cara. Tem minha assinatura porque acompanho tudo, mas eu quero que o artista traga, contribua, mostre coisas.

O Cortejo traz muitos famosos para desfilar no bloco. Por que é interessante convidá-los além da comunidade?

Eu sempre falo: gosto de escrever nos panos para quem não sabe ler. O Cortejo Afro acaba promovendo um encontro de analfabetos, são pessoas que nunca tiveram oportunidade de ir para escola e outras que vêm da Academia e olham para o pano e não sabem ler os signos e símbolos milenares, mas o cara que não foi para escola sabe.  Alberto Pitta e Regina Casé são amigos de longa data (Foto: Fernando Torres/Divulgação) Mas quando as pessoas aparecem e compram a fantasia, esse recurso vem para a comunidade de alguma forma. Isso paga a produção, que não é pouca. Nós fizemos um carro alegórico, que é uma instalação chamada “trança-atlântico”, a história das travessias dos navios negros através dos cabelos.

Convidamos 21 trançadeiras do Centro Histórico para trançar uma embarcação, porque as tranças serviam, no período da escravidão, como mapas, rotas de fuga e eu vou levar essa história para o Carnaval.

O Ilê Aiyê permanece com o propósito de so trazer pessoas pretas. O Cortejo Afro não foca nesse aspecto, muitas pessoas brancas desfilam. Por quê?

Sempre digo: se existe uma estética baiana, o Ilê é responsável por ela. Tá tudo certo. Eu, se fosse um homem branco dos olhos azuis, me contentaria em ver o Ilê passar. Acho que ali não se discute, não se discute, nem deve. E espero que Vovô [presidente e co-fundador do Ilê] mantenha isso, porque é isso mesmo.

Por outro lado, pessoas não-negras, que são as pessoas brancas aliadas saem no Olodum, no Cortejo Afro, no Afoxé Filhos de Gandhy, Malê, Muzenza, só não saem no Ilê. Só o Ilê manteve isso. É uma reserva de pretitude, ta tudo certo. Mas o Cortejo não, é de outro dia. Mesmo o Olodum que tem 45 anos, também.

Graças a Deus, essas organizações têm uma questão familiar forte que segura. Essas organizações não abriram mão do bairro, da história do lugar. Por exemplo, você tem um Araketu, que eu gosto muito, sou amigo de Vera [Lacerda, fundadora], mas quando o Araketu sai do bairro de Periperi para virar pop, ele se ferra."O Araketu era uma coisa suntuosa, saia no horário, hiper organizado, era de interesse dos grandes artistas. Mas quando ele vai virando uma coisa comercial que a classe média branca pega para si e não se liga nos signos e símbolos e cores que Augusto Cézar, um artista e pai de santo, fazia...".Quando começa a abrir mão disso para usar uma abadá com as costas parecendo uma placa de outdoor com um monte de patrocinadores, termina se perdendo no processo.

Leia mais: 6 bandas famosas de Salvador que são símbolo de seus bairros

Falo assim: cadê o Araketu? Se você vai publicar isso, se Vera vai gostar, paciência, mas tudo mundo avisou: ‘isso vai bater no teto’. E quando bate no teto e não tem mais para onde ir, acabou.

Então você considera trazer diversidade de pessoas para o Cortejo uma forma de resistir às dificuldades? 

Vejo como uma forma de incluir. Eu estou incluindo, quando trago pessoas não negras para dentro do Cortejo para compartilhar das nossas coisas. O privilégio da inclusão parte do Cortejo, e isso não é problema. Agora eu não posso perder de vista o lugar de onde venho, quem eu sou, o que eu faço e o que eu herdei."Se eu perco isso de vista, em qualquer lugar que eu chegar eu sou nada. Quando eu atravesso o Atlântico, eu vou chegar como Alberto Pitta, desse franjeado de Mata atlântica, da Bacia do Cobre, do Parque de São Bartolomeu, que é a minha vista".Tenho dito muito que isso tem acontecido muito com os jogadores de futebol, quando eles ascendem de verdade, eles não sabem nem de onde vieram. 

É tudo muito semiótico mesmo ou você percebe ou você dança. Então, você tem que saber quando você está agradando ou sendo enganado. Então, é para e pensar: ‘opa, eu vim de um lugar, eu tenho uma história’.

Você já se viu nesse lugar de pensar se tinha se perdido?

Nunca precisei. Onde eu vou, eu não esqueço de absolutamente nada. Se tem uma coisa que tenho de terrível, é a minha memória. Se eu te encontrar daqui a 20 anos, te direi a roupa que você estava hoje. Se não, não adianta, se não você não passou por aqui, se não você não aconteceu na minha vida. O que estamos fazendo aqui pode mudar vidas. 

Por isso são importantes signos e símbolos colocadas como arte visual. Quando levo para o Carnaval um navio trançado e um jovem preto de 12 anos vê aquilo... Ele vai chegar em casa, vai brincar daquilo, depois a leitura dele pode levar para outro lugar e depois, pode virar história.

Como você saiu saiu do lugar de um menino que queria ser jogador de futebol para esse tradutor de símbolos?

Acho que você tem que perceber logo o que vai acontecer com você. Talvez se eu tivesse realizado o sonho de ser jogador de futebol na época que eu queria ser, nos anos 80, eu estivesse muito ferrado. Lá atras eu percebi e minha mãe também, meu pai não apoiava. Mas o bairro sabia que eu tinha uma condição de acontecer. Mas teve um momento que eu precisei trabalhar.

Minha mãe disse que eu precisava saber alguma coisa, ter uma profissão, e me ofereceu para trabalhar uma pessoa, quando eu tinha uns 14, 15 anos. Era tipo meu mestre, José Ribamar, um cara da Paraíba, que fazia escudo de colégio. Ele fazia todas as escolas de salvador, as grandes – Antônio Vieira, Iceia... Eu fazia isso, mas ao mesmo tempo, já havia acontecido o Ile Aiyê."Como eu fazia estampa, o bairro dizia: 'ah, Pitta, você faz estampa, você vai estampar a fantasia do meu afoxé'. E aí, pronto, as pessoas foram me descobrindo".Fui virando artista por perceber o Carnaval negro baiano e comecei a virar esse cara que fazia os blocos. Na época, eu não tinha acesso a livros de arte africanos. Comecei a fazer releituras de estampas africanas de máscara. Por conta disso, fui o primeiro a assinar. Pitta lançou livro sobre a própria trajetória artística (Foto: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO) Quando surgem os blocos afro, por exemplo, se o tema de um bloco é Angola, você pega tudo de Angola e faz uma fantasia. No meu caso, eu ia fazendo minha onda e assinando. Eu fui assinando estampas baiana africanas, aquilo era meu, ou era meu também, e até hoje faço isso. Depois, todo mundo foi assinando. 

Regina Casé te chama de zelador do que há de bom na Bahia. O que você, nesse papel, vê de possibilidades boas perdidas no caminho em Salvador?

Muita coisa. Sempre falo que o Cortejo Afro surge para recuperar as cores perdidas do Carnaval baiano, a estética que o Carnaval de antes, com muito menos recurso, tinha. Quando se tira isso do povo e vai para a profissionalização, tem que ter cuidado.

O negócio da festa atropela a estética que garante a festa. Há alguns anos, os blocos de trio tinham muito menos recurso que hoje, mas eram muito mais bonitos e interessantes. Era tudo pintado à mão, você via a arte naquilo, nas mortalhas, no abadá."Ou seja, o interesse estético existia. Hoje, não, você entrega um pedaço de pano com patrocinadores atras, desenhos que não se consegue ler, e é isso. Aí você pergunta: ‘que bloco é esse?’. A pessoa nem sabe, ela diz ‘ah, não sei não, tô aqui pelo artista’".Isso é um equívoco. Quando as pessoas perceberem isso vão entender melhor as coisas. Hoje, por exemplo, se pensa em levar o Carnaval para a Boca do Rio. Para mim, tudo certo, desde que não seja em detrimento dos circuitos Dodô e Osmar.

Hoje, o que existe é muito de toldo feio, toldos horrorosos, com um monte de isopor, e sombreiros com as marcas das cervejarias. Se a cerveja é vermelha, o Carnaval fica vermelho. Se é amarela, a cidade fica amarela. 

Os blocos afro são uma tentativa de segurar essa beleza? 

Os blocos afro seguram a estética do Carnaval. A primeira coisa que um bloco afro pensa é o pano. Se você tem o tecido e consegue fazer as fantasias do bloco, você tem o bloco, independentemente de qualquer coisa.

Se der um problema no carro de som, as pessoas estão vestidas e vão, porque o bloco teve cuidado com a fantasia, o ato de se sentir bem.

Agora, obviamente, você tem que garantir as outras coisas para não estragar o Carnaval dos outros. E isso é difícil. Qualquer coisa não serve, então se gasta muito.  Alberto Pitta em seu ateliê (Foto: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO) E os blocos afro conseguem ganhar dinheiro no Carnaval?

Não. E quando alguém consegue comprar um carrinho, fica com vergonha. Porque as pessoas vão dizer, vão falar sobre isso. A gente precisa desconstruir isso também, porque, depois do Carnaval, os caras do Camaleão, do Eva, do Crocodilo, quando acaba o Carnaval, vão para os Estados Unidos, vão para Europa, vão comprar lixo novaiorquino e trazer para cá e ninguém fala absolutamente nada. E tá tudo certo.

Os grandes cantores do axé music vão descansar na Europa e nos Estados Unidos, para Disney, Orlando, vão fazer compras. E nós, dos blocos afro, ficamos aqui cuidando dos filhos de ninguém, entre aspas, dos filhos que ninguém quer. Ficamos na comunidade resolvendo B.O. que deveria ser resolvido pelo Estado. Esse é o problema."Mas eu, particularmente, venho falando: ‘olha, a gente não pode ter vergonha de ganhar dinheiro com o Carnaval não’. Eu tenho uma BMW, mas não foi o Cortejo que me deu, foram outros caminhos".Mas minha BMW também é velha, eu chamo de resto do colonizador, porque um ‘zero’ eu não tenho condições de comprar [risos].

Você acha que falta expertise empresarial a alguns blocos afro para atuar como atores fundamentais que são?

A gente não pode perder de vista que 40 anos em cartaz só show da Broadway. E os blocos afro estão há mais de 40 anos em cartaz. Por que o Ilê Aiyê não acabou? Por que o Malê de Balê, o Muzenza, estão aí? Por que o Cortejo segurou 25 anos quando eu achei que ia trazer um efeito estético para a cidade e, com 10 anos, eu estava a fim de dizer: ‘oh, o recado tá dado’? "Ainda penso, acho que a qualquer momento o Cortejo pode deixar de sair. Já demos o recado, entendeu?".Temos nossa forma de fazer Carnaval e essa questão empresarial, óbvio, pode melhorar, mas se estamos aqui é porque sabemos fazer, fazemos até sem o dinheiro. Olha quantos blocos de trio deixaram de sair. Se não tiver dinheiro, essa gente não faz o Carnaval, não se arrisca, deixa de ser interessante."Ninguém é santo, eles não sofrem se estão saindo ou não, quem sofre somos nós quando não conseguimos colocar o afoxé".É sofrimento e infarto, tranquilamente. Temos outro tipo de compromisso. Quem não tem compromisso, se não tiver patrocínio de R$ 2 milhões, não vai sair não.

Hoje, o Cortejo consegue patrocínio?

Hoje, o Cortejo afro conseguiu apoios importantes, além de ter sido contemplado pelo programa Ouro Negro e apoio da Bahia Gás. Fora isso, são pessoas, amigos, que ligam e perguntam : ‘já fez a banda? Quanto custa o seu carro?’. Porque eles acreditam. Se a Paula Lavigne [produtora e empresária] me liga e diz ‘Tem R$ 20 mil para você’, vou lá pegar e fazer todas as alegorias."Quando ela vir o bloco, eu vou mostrar onde está o dinheiro. Quando Flora e Gilberto Gil perguntarem 'como está aí?', eu digo o que falta, e quando eles ajudam, eu mostro onde esta o dinheiro. Também não quero digam que me dão nada".Ninguém me dá nada e eu não peço por mim, eu peço para o bloco, porque vou fazer uma entrega para a cidade. É bom para a cidade que o Cortejo saia. 

O Cortejo furou uma bolha nesse sentido de trazer um movimento estético. Como você chegou a esse modelo?

Quando nos fizemos, eu convidei Jota Veloso, Aloisio Menezes, Mariene de Castro. Eles ficaram um bom tempo, a Mariene já cantava, mas de fato, para ser conhecida, foi o Cortejo, isso foi importante para ela e para nós. E aí eu percebi: a estética é essa, a conversa é essa, eu não posso ser um Ilê Aiyê, Filhos de Gandhy ou um Olodum, mas posso construir outros signos e símbolos que possam vir a ser tão interessantes quando.

Daí que tem o sombreiro [nas apresentações do Cortejo]. Eu descobri o Veco Araújo e disse que ele ia ser aquilo, naquele papel de perfomancer.  Veco, o dono do sombreiro (Foto: Matheus Ross/Divulgação)  Outra coisa, o Cortejo traz a estampa do branco sobre branco, coisa que as pessoas achavam uma loucura. Eu fiquei muito tempo saindo assim, branco sobre branco. Hoje, introduzimos outras cores, mas o branco estará sempre ali. 

Quando você testou esse novo modelo de cor?

Eu saí do Olodum, em 1997. E saí para fazer o Cortejo, porque eu queria um bloco que pudesse primar mais pelas intervenções estéticas e instalações artísticas. Mas, eu não podia fazer outro bloco igual.

Sabia que não podia usar o amarelo, vermelho e verde do Ilê, o azul e branco do Gandhy. Nem as cores pan-africanistas do Olodum, do Malê e do Muzenza. Aí me veio o que eu chamo de "contracor". Eu já fazia algo assim timidamente e comecei a estampar branco sobre branco. Fantasia do Gandhy com o amarelo (Foto: Arquivo CORREIO) Nos primeiros anos, as pessoas diziam: ‘que bloco é esse? Parece que abriram as portas do hospício’. "Era tudo muito estranho, para todo mundo, porque não tinha as cores dos blocos afro. Quando começaram a criticar, eu vi que consegui. O problema dessas coisas é quando não se fala nada, quando passa incólume. Gosto quando briga, critica, quando dá pau".A tinta branca que estampa é muito cara, é 10 vezes mais cara que qualquer cor. Elegância pode estar em qualquer lugar, mas sofisticação custa dinheiro. O show do Cortejo é caro, chegar lá é caro. Ninguém nunca sai de Pirajá para pegar um ônibus com um tambor do Cortejo nas costas para fazer o show.

Você vê contradição se isso ocorrer?

Não posso fazer um show para a classe média branca até meia noite e, duas horas da manhã, meus músicos estarem no ponto esperando um ônibus. A gente tem que garantir a van para levar e buscar nos bairros deles. Se não, é uma contradição. Você faz a festa, faz a música, e de madrugada vai para a fila do ônibus. Não.

O Cortejo é isso desde o primeiro ano, se não, não vale. Quando exijo isso, exijo de mim também, se não, não serve. Não posso ir para casa pensando nisso. 

Em 2019, houve uma grande crítica relacionada ao amarelo que você colocou na fantasia do Gandhy. Como você enxerga essa crítica hoje?

Eu acho que eu estava certo. Quando o Gandhy me convidou para fazer, eu disse: ‘olhe quem vocês estão convidando, eu não vou para o Gandhy para fazer o que vocês fazem há décadas, se eu for assinar o Gandhy eu vou fazer alguma coisa para mexer na cidade'. Eles me convidaram para uma data perigosa, que era uma data fechada: 70 anos.

Comecei a convencê-los de que era bom mexer em algumas coisas sem perder a tradição. Ele não perdeu a tradição, apenas fez um deslocamento. E eles toparam.

A primeira coisa era entender o Gandhy como uma joia rara: a joia rara faz 70. Quando você pensa em joias você pensa, por exemplo, na joalheria Tiffany. No azul Tiffany. Terminou virando um azul Tiffany a cor da fantasia. Mexi no azul do Gandhy e as pessoas não perceberam muito [risos]. Meti um amarelo, dourado, de Oxum, e aí foi que tomei pau. 

Por qual motivo? O amarelo lembra Oxum e o Gandhy, um afoxé com 8 mil homens, não tem como não ter, ali dentro, um quê de machista. 

Você acha que a crítica que recebeu se trata disso?

É sobre isso também. Primeiro a frustração, entre aspas, do Afoxé Filhos de Gandhy, tapete branco da paz, e vem um cara e joga um amarelo. Eu tinha vários motivos: a joia rara, fazer com que a fantasia do Gandhy virasse um objeto de desejo, porque aí sim vira essa joia rara fazendo 70 anos."Quando coloco amarelo que as pessoas rejeitam, e rejeitaram, ai foi para imprensa, virou meme, virou banana de Pijamas, viralizou, eu pensei que estava em apuros. Porque uma boa parcela começou a rejeitar. Aí eu pensei: 'o que é que eu faço?' Aí eu corri para a casa de Gilberto Gil, que é o grande folião, símbolo do Afoxé".Eu contei para ele que precisava falar que eu fui convidado para fazer a fantasia do Gandhy e tinha mexido muito na fantasia [risos]. Comecei a falar, por uns 15 minutos. Aí ele me olha e diz: ‘Duas perguntas’. Aí eu gelei. Aí ele perguntou: ‘vocês avisaram aos foliões? ’. Eu falei que não sabia, mas achava que sim. Ele não se conformou muito e perguntou: ‘você mexeu no turbante?’. Aí eu disse que não. Aí ele disse: ‘ah, então tá tudo certo, Pitta, tapete branco é visto de cima’.

E eu ia mexer no turbante, ah, eu ia mexer no turbante, ia fazer outra história [risos]. 

Mas ia ficar branco?

Ia ficar branco, talvez [risos]. Mas eu ia mexer no turbante, acho que ia fazer um prata, para brincar com o ouro.

Você, hoje, é um artista plástico reconhecido. Inclusive fez coleções para uma marcas mais famosas do Brasil, a Farm. Como foi esse encontro?

Elas que me descobriram. Talvez por conta do Carnaval, ou por causa dos artistas, então eles vieram, primeiro visitar, conhecer o que a gente faz. Ficaram aqui o dia inteiro e foram embora. Uma semana depois ligaram e falaram: 'vamos trabalhar'. 

Elas chegavam muito cedo porque queriam de fato aproveitar. No primeiro dia todos com seus computadores, falei para fechar, porque eu não trabalho com computador. Aí a gente começou a cortar e colar figurinhas. No terceiro dia, já estavam meio estressadinhas [risos]. Quando viram, tinham uma coleção. 

Você falou na contradição que pode ser voce fazer um ensaio de Carnaval, e os músicos voltarem de ônibus lotado para casa. Estamos no bairro de Pirajá. As pessoas daqui conseguem vestir Alberto Pitta?

Conseguem. Não através de Farm. Mas nós temos o nosso espaço aqui e faço muita coisa para cidade. Talvez o bairro não me conheça tanto quanto la fora, mas isso é natural. Não posso achar que o bairro inteiro vai vestir Alberto Pitta, não vai. E quem ascende, tem uma condição, vai la e compra na Farm, com certeza. Tem gente que se esforça muito, e eu acho um equivoco, para pagar R$ 600 reais so num vestido só para estar. Mas isso também é legitimo.

Você tem vontade de se tornar uma referência, de Pirajá? 

Primeiro, de Pirajá. As pessoas me conhecem, só não reverenciam. Mas quando olham, saco que me conhecem. Eu sempre falo que o bloco é feito para o bairro, o dinheiro vem para o bairro. Toda essa turma que está trabalhando aqui é da área. A grande banda é daqui. 

O Instituto Oyá, que Mãe Santinha fundou, tem esse trabalho com as crianças. São mais de 150 crianças atendidas diariamente. Tem aulas, também, comigo aqui. Temos aqui um grupo de educadores, de apoio psicológico a crianças com problemas em casa. Muitas chegam com fome e a gente tem que cuidar disso.

Se eu vendo uma tela e posso ajudar, vou fazer isso. Meu interesse de, de fato, entrar no mercado de arte, também é por isso. Um metro de tecido custa R$ 200, mas uma tela estampada custa R$ 40 mil. E se tenho essa condição, não posso deixar de fazer. A gente tem que estar ligado em tudo. 

O Correio Folia tem patrocínio da Clínica Delfin, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Jotagê e AJL.