Harildo Déda tinha como missão de vida dar continuidade ao teatro

Ícone indiscutível da dramaturgia, Déda morreu aos 83 anos

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  • Maysa Polcri

Publicado em 20 de setembro de 2023 às 07:28

O corpo de Harildo Déda foi velado no Teatro Martim Gonçalves e depois levado para Aracaju, local do sepultamento
O corpo de Harildo Déda foi velado no Teatro Martim Gonçalves e depois levado para Aracaju, local do sepultamento Crédito: Ana Lucia Albuquerque/CORREIO

Todos aqueles que passam pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA) levam um pouco de Harildo Déda (1939-2023) em seu DNA. Ícone do teatro baiano, o mestre da dramaturgia inspirou gerações de artistas ao longo da vida e continuava a orientar os mais novos mesmo aposentado. O humor irônico, sua marca, dividia espaço com o coração generoso de quem aproveitou o próprio talento para impulsionar uma legião de alunos. A despedida do eterno professor, que faleceu aos 83 anos na terça-feira (19), foi realizada no Teatro Martim Gonçalves e reuniu dezenas de admiradores.

O dom de Harildo Déda para a cena extrapolou os limites dos palcos de teatro. Além das atuações em mais de 70 peças e direção de outras 20, participou na televisão de produções como ‘O Pagador de Promessas’, ‘Dona Flor e seus Dois Maridos’ e ‘Carga Pesada’. No cinema, atuou em filmes consagrados como ‘Tieta do Agreste’, ‘Central do Brasil’ e ‘Cidade Baixa’. A capacidade de se reinventar também foi colocada à prova durante a pandemia, época em que ministrou cursos online mesmo com a idade avançada.

Professor aposentado da UFBA desde 2009, Déda não abandonou o espaço onde se formou e era figurinha carimbada nos corredores da Escola de Teatro da UFBA, no Canela. Estava sempre pelo jardim, onde sentado em um banco e na companhia de um bom livro, dava comida aos pombos e conversava com quem se aproximava. “Ele era uma presença cotidiana na Escola, todas as decisões tomadas por nós tinha participação de Harildo Déda. Minha maior alegria era saber que iria encontrá-lo aqui, que tomaríamos um café juntos e conversaríamos”, diz Cláudio Cajaiba, diretor da Escola de Teatro.

Harildo Déda participou da banca que examinou os aspirantes a alunos da Escola até 2019. Um dos estágios do processo seletivo era um monólogo avaliado por ele e outros dois professores. Clara Mendes, estudante do sexto semestre, foi uma das alunas avaliadas pelo ator e diretor. “Eu estava muito nervosa, lembro que falei para ele que também era de Sergipe e conversamos sobre isso”, lembra a conterrânea de Harildo Déda, que nasceu em Simão Dias (SE).

O artista continuava a inspirar e apadrinhar novas levas de atores. Um deles é Daniel Marques, de 23 anos, que se tornou assistente de Harildo Déda em 2018. Desde então, eles viraram amigos e não desgrudaram mais. “Com mais de 60 anos de carreira, ele assistia mostras de alunos do primeiro semestre. Era uma necessidade dele que o teatro continuasse e que ele pudesse ser esse agente de continuação”, conta emocionado. Para quem buscou ensinamentos direto da fonte, o sentimento é de gratidão. “Ele sempre foi muito acessível e ensinou que teatro é prática. Eu não sou outra coisa senão ele”, completa.

Heraldo Déda atuou em mais de 70 peças e dirigiu outras 20
Harildo Déda atuou em mais de 70 peças e dirigiu outras 20 Crédito: Angeluci Figueiredo

O Teatro Martim Gonçalves, onde amigos e admiradores se despediram de Harildo Déda, também foi palco do último espetáculo em que participou como ator, em 2019. A peça ‘Em Família’, dirigida por Marcelo Flores e com texto de Oduvaldo Vianna Filho, teve duas temporadas e Déda como protagonista. O espetáculo foi a nona montagem da Companhia de Teatro Os Argonautas, em que Déda foi parceiro em diversos trabalhos.

Harildo Déda interpretou Seu Sousa, chefe de uma família que é despejada por não ter mais condições de arcar com as despesas. Havia a expectativa que a peça tivesse mais uma temporada neste ano, mas Déda já estava com a saúde debilitada. Em 2018, a peça foi indicada ao Prêmio Braskem de Teatro na categoria Melhor Espetáculo.

Marcelo Flores, diretor de ‘Em Família’, acredita que a legião de artistas formados na Bahia e no Brasil por Déda representa o seu maior legado. “É difícil escolher uma coisa só, mas ele formou milhares de artistas com seus espetáculos como ator, diretor e professor. O maior legado foi sua capacidade de se multiplicar”, falou.

A paixão pelo teatro se manteve latente na vida de Harildo Déda mesmo nos momentos finais da vida, como conta a atriz, ex-aluna e amiga Márcia Andrade. Ela foi uma das pessoas que acompanhou Déda durante a semana que esteve internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital Português. “A matéria mais difícil que Harildo deu foi essa do final. Ele se manteve lúcido, citava Shakespeare e brincava com a gente”, conta.

Márcia Andrade esteve em cena com Harildo Déda no espetáculo Em Família. “Nós fizemos coisas lindas aqui no teatro. Ele era de uma delicadeza como diretor e ator, tinha uma compreensão humana de tudo. As pessoas iam se apaixonando e se desabrochando com ele”, completa. Mesmo os que conviveram com Déda afirmam que ele se confundia com seus personagens, sendo a personificação do próprio teatro.

Em 2019, Harildo Déda foi homenageado pela Fundação Gregório de Mattos (FMG), que deu o nome do ator a uma das salas do Espaço Cultural Boca de Brasa, na Barroquinha. No alto da porta, uma mostra fotográfica exibe registros de Déda em cena. Nas laterais, duas placas trazem um texto do dramaturgo Paulo Henrique Alcântara sobre ele. Após a surpresa, Déda ministrou uma oficina de teatro para 25 participantes.

Amigos e admiradores se despedem de Harildo Déda

A partir das 10 horas da manhã de terça-feira (19), uma multidão começou a ocupar o Teatro Martim Gonçalves, na Escola de Teatro da UFBA, para homenagear Harildo Déda. A despedida se prolongou até o final da tarde foi marcada por muita emoção. Como não poderia ser diferente, amigos reverenciaram Déda através da arte. Maria Adélia, atriz que na década de 70 fez parte do grupo Teatro Livre da Bahia ao lado de Déda, emocionou a todos ao recitar uma poesia.

A professora e coreógrafa Rita Brandi guiou uma dança com os braços que foi acompanhada por todos aqueles que estavam presentes. Os movimentos foram os mesmos que ela tinha apresentado a Déda no hospital, um dia antes. A plateia que assistiu o último ato de Harildo Déda era formada por diversas gerações de atores e atrizes que, em comum, partilham o sentimento de gratidão ao ator. A todo momento algum deles subia ao palco e utilizava um dos microfones para prestar homenagens. 

Emocionado, o reitor da UFBA Paulo Miguez, que foi aluno de Déda em 1975, lamentou a partida do colega. “Eu vim me despedir do meu professor, que me deu aulas exatamente neste lugar onde nos despedimos hoje. É um momento de tristeza para a Universidade Federal da Bahia, que perde um professor e um construtor”, afirmou. Ao longo dos 30 anos que lecionou na Universidade, Déda ajudou a consolidar a Escola de Teatro da UFBA.

Amigos e admiradores se despediram de Déda no mesmo palco em que ele atuou pela última vez, em2019
Amigos e admiradores se despediram de Harildo Déda no mesmo palco em que ele atuou pela última vez, em2019 Crédito: Marina Silva/CORREIO

Para Fernando Guerreiro, que tem uma longa história como diretor teatral e hoje é o nome à frente da Fundação Gregório de Mattos, “Harildo Déda sempre foi uma referência para todo mundo no teatro”.

"Quando eu comecei na carreira, Harildo já era consagrado. Então ele sempre foi uma referência para todo mundo no teatro. Ele sempre foi alguém que eu já tinha na minha cabeça que eu tinha que dirigir em algum momento, e que eu teria que ter próximo como professor. Eu tive a oportunidade de trabalhar com Harildo em alguns momentos, como foi o caso de Equus, que teve ainda Vladimir Brichta no elenco. E depois um Beijo no Asfalto”, relembra.

Arany Santana, atriz e ex-secretária de Cultura do Estado, também prestou homenagens ao amigo. “Harildo foi um grande mestre para todos nós. Entrei na Escola de Teatro em 1976 e criamos uma relação estreita ao longo de todos esses anos”, falou emocionada. Depois do velório no teatro, o corpo de Harildo Déda foi levado para Aracaju (SE), local do sepultamento.

Sergipano, Déda veio para Salvador ainda criança para estudar

Antes de abraçar de vez o lado artístico e se transformar em um ícone do teatro, na década de 60, Harildo enfrentou uma extensa trajetória. Aos 12 anos, ganhou uma bolsa de estudos e saiu da pequena cidade de Simão Dias, em Sergipe, para estudar no Colégio Dois de Julho, em Salvador. Por pressão do pai, tentou cursar Letras e Direito, mas não seguiu adiante. A vocação era mesmo de artista.

Com 18 anos, foi para os Estados Unidos com uma nova bolsa de estudos. “Naquela época era uma verdadeira aventura. Para você ter ideia, assisti TV pela primeira vez nos Estados Unidos”, revelou em uma entrevista concedida ao CORREIO, em 2009. Voltou para o Brasil pela saudade dos pais e entrou para o Centro Popular de Cultura, escola livre de teatro que engaja politicamente seus participantes.

Harildo Deda em Galileu
Harildo Deda em Galileu Crédito: Sora Maia

Déda se formou na Escola de Teatro da UFBA em 1970 e oito anos depois retornou aos Estados Unidos para um Mestrado em Artes Cênicas. De volta a Salvador, deu início aos trabalhos como diretor teatral. Apesar de ter nascido no estado vizinho, foi a Bahia que lhe deu régua e compasso. “Sergipano, mas sou um ator baiano”, costumava dizer.