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Roberto Midlej
Publicado em 22 de março de 2025 às 10:49
Em 1988, uma dúvida tomava conta do Brasil: quem matou Odete Roitman, personagem de Beatriz Segall? A pergunta, embora representasse o maior mistério de Vale Tudo, estava longe de ser a parte mais interessante da novela de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères. A trama exibida na faixa das 20h tinha muitas outras virtudes: personagens que seduziam o público, um elenco soberbo e, principalmente, diálogos muito densos, como raramente se vê na TV hoje em dia. É compreensível, portanto, que haja tanta expectativa em torno da estreia do remake, que acontecerá no próximo dia 31. >
Logo na abertura, Vale Tudo mandava seu recado e, com os versos ácidos de Cazuza, prenunciava o que viria em suas cenas. A canção interpretada por Gal Costa, uma mistura de rock e samba, retratava um país desorientado, mergulhado em um cenário decadente: “O meu cartão de crédito é uma navalha (...) Não me subornaram/ Será que é meu fim?”, cantava Gal.>
Tal qual a música, a trama exibida na faixa das 20h era um retrato de um Brasil que, embora recém-saído da ditadura militar, estava tomado pela desesperança. Uma gravíssima crise econômica rondava o país: a inflação de 1987, ano anterior à exibição de Vale Tudo, havia superado os 350%. Hoje, se passar dos 10%, entramos em pânico.>
A crise moral - essa, sem dúvida, se estende até hoje e, ao contrário da inflação, não arrefeceu - estava retratada logo no primeiro capítulo. Numa cena que se tornou clássica, o avô de Maria de Fátima (Glória Pires), interpretado por Sebastião Vasconcelos, dava uma lição à neta. Fiscal da Alfândega na fronteira do país, muito íntegro, ele não cedia ao apelo da menina, que lhe implorava para, em troca de suborno, liberar a mercadoria de um amigo dela sem taxação. >
O avô recusava o suborno e a garota reagia: “Não vem com conceito abstrato de dignidade, princípio, honra… Não! Quero que me explique na prática: a quem o senhor vai prejudicar se levar uma grana pra deixar um amigo da sua neta passar umas bobagens?”. E o avô retrucava: “Na prática, Fátima, quem deixa passar mercadoria sem cobrar imposto está prejudicando o Brasil e prejudicando você”.>
O estudioso Mauro Alencar, consultor e doutor em teledramaturgia pela USP, observa: “Era um momento de impunidade, descrença, de levar vantagem em tudo. As pessoas não suportavam isso. Ou seja, o Brasil do ‘milagre econômico’ - que foi gestado nos anos 1970 e que teve reflexo nos anos 1980 - não existia mais. Lembremos que uma novela anterior a essa foi Brega & Chique, uma versão comédia de Vale Tudo”, diz Mauro, autor do livro A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil.>
Tabus>
Mas, se o cenário da época era desolador, havia uma ponta de esperança no futuro: naquele mesmo ano de 1988, uma nova Constituição havia sido aprovada e havia a promessa de um país mais inclusivo e democrático. Por isso, a novela não deixava de fora temas sociais, como as questões agrárias. Por alguns capítulos, Afonso (Cássio Gabus Mendes) teve um sério embate com a mãe, Odete, porque ele queria negociar com invasores de uma fazenda da família, enquanto a vilã queria recorrer à força policial para retirar os sem-terra daquela propriedade.>
Relações homoafetivas também não eram assunto frequente nas novelas, mas o trio criador de Vale Tudo foi ousado para os padrões da época e criou um casal de lésbicas, formado por Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska). Embora o romance ficasse nas entrelinhas, era muito óbvio que as duas se amavam. Numa cena, elas acordavam juntas num mesmo quarto, mas isso era o máximo que se admitia nos anos 1980, tanto que Cecília acabaria morrendo num acidente de carro. E, embora nunca tenha sido admitido publicamente pela Globo, sabe-se que a morte da personagem aconteceu por causa de uma reação conservadora de parte do público.>
É chocante percebermos hoje que na novela só há dois personagens negros: Gildo (Fernando Almeida) e Zezé (Zeni Pereira). Outros dois meninos pretos aparecem como marginais: um deles furta Raquel logo nos primeiros capítulos e o outro participa de um golpe e vai parar numa instituição que cuida de menores infratores. “Havia duas personagens pretas e em posição subalterna. A Zeni Pereira parece saída de Escrava Isaura para Vale Tudo. E tinha Gildo, que era um trombadinha e depois Raquel perdoa. Ou seja, tinha o branco sendo condescendente com o preto”, observa Mauro.>
Mas a antiga versão de Vale Tudo ainda vale muito ser vista, especialmente por causa do desempenho encantador de seus atores e atrizes. Se, por um lado, a maldade de Odete Roitman é capaz de nos fazer odiá-la, não há como não se deixar seduzir pelo desempenho de Beatriz Segall. “Vale Tudo pegou em cheio porque Odete Roitman é uma vilã requintada, sensual, muito assertiva sobre as mazelas do Brasil. As pessoas se encantavam porque ela dizia os problemas todos que tinha um país crescido de maneira aleatória, desconjuntada como o Brasil”, diz Mauro Alencar.>
Elenco>
E o que dizer sobre Heleninha, a filha de Odete, interpretada por Renata Sorrah? O problema dela com o alcoolismo desperta no espectador um inevitável desejo de socorrê-la, especialmente porque a mãe não trata o vício da filha como uma doença, mas como uma “fragilidade”. É impossível não se emocionar com as cenas em que Heleninha se divide entre ceder ou resistir ao vício. >
Num dos capítulos, ela pega uma garrafa de uísque e passa mais de três minutos no dilema: beber ou não beber? São mais de três minutos ao som da belíssima canção Todo Sentimento (Chico Buarque e Cristóvão Bastos), interpretada por Verônica Sabino. A personagem não dá sequer uma palavra, mas nem precisa: Renata Sorrah diz tudo o que precisa mesmo assim.>
A duração das cenas é outro ponto que impressiona e, no caso de Vale Tudo, é mais uma virtude. Mas isso, claro, graças à habilidade que o trio roteirista tem em criar diálogos ricos e profundos, sustentados por um elenco formado por Regina Duarte, Antônio Fagundes, Nathália Timberg, Sérgio Mamberti, Pedro Paulo Rangel… e não nos enganemos, pois essa excelência tem uma explicação: todos esses atores têm origem no teatro, que sempre será a grande escola de interpretação. Na novela, são frequentes cenas de sete ou oito minutos entre apenas dois personagens, sustentadas principalmente pelo talento raro desses mestres na arte de interpretar.>