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Superação, falta de ética e abismo social brasileiro estão em série sobre Luva de Pedreiro

Jovem baiano só usou o celular pela primeira vez aos 19 anos, meses antes de se tornar um dos mais populares influenciadores digitais brasileiros

  • Foto do(a) author(a) Roberto  Midlej
  • Roberto Midlej

Publicado em 23 de novembro de 2024 às 08:31

Luva de Pedreiro, entre os pais - Biza e Vadinho
Luva de Pedreiro, entre os pais - Biza e Vadinho Crédito: divulgação

Imagine você, leitor, se tornar, em poucos meses, um dos influenciadores mais populares do mundo e frequentar o ambiente glamouroso do futebol, onde circulam os maiores astros, como Neymar, Mbappé, Cristiano Ronaldo, Messi… E, mais que isso, ser reconhecido por todos eles. Além disso, começa a fazer publicidade para grandes marcas. Mas, ainda assim, não põe um centavo no bolso. Ao contrário, continua levando uma vida miserável, num casebre de um povoado baiano onde vivem 180 pessoas. Para comprar uma roupa, precisa pedir autorização ao seu empresário.

É isso que mostra o documentário Luva de Pedreiro - O Rei da Jogada, que estreou no streaming Max. A produção revela também os bastidores da absurda relação do baiano Luva de Pedreiro com seu primeiro empresário, Allan Jesus, que, depois de passar meses administrando a carreira do influencer, não repassou um centavo ao rapaz. Quer mais? Para romper o contrato, o jovem, hoje com 23 anos, precisava desembolsar na época uma fortuna de R$ 5,2 milhões. Isso, sem ter recebido absolutamente nada do “patrão”.

De origem muito pobre, Iran de Santana Alves - nome de batismo de Luva - é filho de Vadinho e Biza. Ele, analfabeto, é um homem tão simples que, ao depor para o doc, confunde o valor da multa citada acima e fala em R$ 5,2 mil em vez de R$ 5,2 milhões. O primeiro valor para Seu Vadinho já soava impagável, o que mostra sua absoluta falta de noção que tinha - ou ainda tem - de dinheiro. Dona Bisa é analfabeta funcional e Iran cursou até a sétima série. Teve que largar a escola para ajudar os pais na roça.

No primeiro episódio, a série vai até o povoado de Tabua, onde Iran começou a gravar seus vídeos com um celular que havia recebido em troca de uma bicicleta. E a bicicleta, imagine, havia sido recebida em troca de meia dúzia de galinhas que ele criava na terrinha dos pais. Com o aparelho, o rapaz, então com 19 anos, começou a gravar, despretensiosamente, vídeos em que marcava belos gols de bola parada, quase todos no ângulo. Depois, veio a inspiração que faltava para torná-lo ainda mais popular nas redes: o grito “Receba!” e a comemoração característica. Detalhe: para conseguir fazer as postagens, Luva precisava caminhar por quase uma hora atrás de sinal de celular. Enquanto isso, passava a noite com os pais em uma casa que na verdade era apenas um cômodo e não era raro ser despertado por um rato caindo em cima do peito.

Iran revela que foi enganado por Allan e o empresário resistia até a entregar uma cópia do contrato para que o influenciador submetesse a um advogado. E o chantageava, dizendo que, se não assinasse, perderia aquela oportunidade única. Mesmo diante de tantas acusações, nem Allan nem os advogados dele aceitaram depor para o doc.

Com um vilão e um herói pré-determinados, a série acerta nessa fórmula quase novelesca e cria momentos muito interessantes até de certo suspense, especialmente quando Luva começa a ser alvo de disputa de dois empresários. A produção é, sobretudo, um retrato da absurda desigualdade que é este país: de um lado, mostra uma vida repleta de luxo, viagens de primeira classe e ternos que custam alguns milhares de dólares. Do outro, uma vida miserável, dormindo entre ratos, sem direito a infância nem a escola. Luva, felizmente, conseguiu passar de um lado para o outro.

A migração libanesa para o Brasil sob o olhar sensível de Marcelo Gomes

Sim, é verdade que todas as atenções do público interessado especialmente no cinema brasileiro estão voltadas para Ainda Estou Aqui, com muita justiça. Mas não deixe de prestar atenção também ao belíssimo Retrato de Um Certo Oriente, que estreou nesta semana. Nele, o diretor Marcelo Gomes volta a tratar do tema da migração, como fez em seu primeiro filme, Cinema, Aspirinas e Urubus (2005). Desta vez, os irmãos libaneses Emilie (Wafa'a Celine Halawi) e Emir (Zakaria Kaakour) são obrigados a deixar seu país em razão de uma guerra. Se não fugirem, Emir será obrigado a ir para o campo de batalha. No navio em que vêm para o Brasil, Emilie conhece Omar (Charbel Kamel), um libanês muçulmano, ao contrário dos irmãos, que são católicos. O choque de costumes, língua e cultura são sensivelmente retratados no filme, que tem uma estonteante fotografia em preto e branco. Se você, como este colunista, é apaixonado pela língua portuguesa, fique atento à cena em que Omar ensina algumas palavras em português a Emilie. É a prova de que o cinema não precisa de aparatos nem de milhões de dólares para emocionar. Como se diz por aí, às vezes, “menos é mais”. E Marcelo Gomes sabe usar esse princípio como poucos no Brasil. “Esse tema da migração me interessa muito porque o migrante tem uma forma de olhar o mundo completamente especial porque ele é o estrangeiro que aprende a sobreviver na terra que ele adotou e esse é um elemento bem singular. E cinema é sobre singularidades e eu gosto muito desse tema”, disse Marcelo Gomes à coluna.