Receba por email.
Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Roberto Midlej
Publicado em 12 de agosto de 2024 às 05:15
A voz, já fragilizada, não escondia as dificuldades que Batatinha passava em razão de um tratamento de câncer. Mas o registro, ainda assim, acabou gerando um dos mais belos e mais bem produzidos discos já gravados na Bahia: Diplomacia, de 1998. Como bem disse o crítico Pedro Alexandre Sanches no jornal Folha de S. Paulo, em maio daquele ano, “Diplomacia revoluciona porque é um achado quanto à voz de Batatinha. Pela primeira vez, nos poucos registros que deixou gravados, o cantor transfere integralmente à interpretação a dor que sempre imprimiu às composições”.
O centenário de nascimento de Oscar da Penha, o Batatinha, completou-se na semana passada. Houve uma ou outra reportagem celebrando a data e algumas rodas de samba também o homenagearam. Mas se o leitor quer festejar em grande estilo o aniversário do sambista, o melhor mesmo é ouvir e reouvir nas plataformas de música aquele álbum lançado há 26 anos e que, quase como um azarão, acabou vencendo o Prêmio Sharp de Música (hoje chamado Prêmio da Música Brasileira) na categoria samba, derrotando artistas consagrados como Zeca Pagodinho.
Por trás do disco Diplomacia, estavam dois nomes fundamentais: os produtores Jota Velloso e Paquito, que, inconformados com o pouco reconhecimento ao sambista que já passava dos 70 anos, resolveram encarar a empreitada de produzir um disco dele. Na época, os dois produtores, junto com Jorge Portugal, haviam escrito uma série de artigos sobre música baiana, defendendo que a indústria da axé music - então no auge - deveria contemplar a música que não era ligada diretamente ao Carnaval, onde Batatinha se enquadrava.
Mas, sabendo que a indústria estava muito ocupada tratando de questões de seu interesse - especialmente o retorno financeiro -, Paquito e Velloso se deram conta de que, se queriam produzir o disco, teriam que correr atrás por outras vias. Concorreram a um edital da Braskem, mas não foram aprovados. No entanto, já haviam tido uma série de conversas com Batatinha, que havia cantado para os dois cerca de 70 músicas e daquela lista sairiam as canções que iriam para o álbum. Estava tudo gravado em fitas cassete, só com a voz do sambista e uma caixinha de fósforo.
Mesmo sem garantia de financiamento, os produtores começaram a selecionar as canções que iriam para o álbum, se um dia fosse viabilizado. Mas, enquanto faziam a seleção, receberam uma notícia surpreendente, que os desanimou e, claro, deixou-os preocupados com a saúde de Batatinha: o músico havia sido internado e estava se tratando de um câncer na próstata. “Eu estava em casa e recebi uma ligação de Jota, que me deu a notícia. Imaginávamos, claro, que diante disso, não haveria álbum”, lembra Paquito. Mas, se os dois produtores haviam se desanimado, Batatinha foi na contramão. Ligou para a casa dos pais de Jota e deixou um recado: sairia do hospital e iria direto para as gravações.
Intérpretes
Ainda sem o dinheiro garantido, os produtores apelaram ao governo do Estado, que, sabendo da urgência do caso, assegurou que financiaria o projeto. Paquito e Jota então terminaram a seleção das músicas e começaram a pensar em quem seriam os intérpretes convidados, além do próprio compositor. Surgiram, então, os nomes de Caetano Veloso e Jussara Silveira, que já haviam gravado músicas de Batatinha em álbuns próprios, mas, desta vez cantariam outras canções. Pensaram também em Chico Buarque. Todos aceitaram, sem impor condição alguma. E, claro, não poderia ficar de fora Maria Bethânia, que, logo em seu primeiro álbum, em 1965, já havia gravado uma música dele, Só Eu Sei.
Jota e Paquito, ainda preocupados com a saúde de Batatinha, conversaram com o médico do sambista, que o liberou para as gravações. Foram para o estúdio e Batatinha soltou a voz. “A gravação foi um pouco tensa, porque ele estava muito abatido no primeiro dia. O técnico chorava, emocionado. Mas Batatinha queria muito gravar. E a partir do terceiro ou quarto dia, ele melhorou. Um dia, ele tinha consulta médica e resolveu faltar para ir ao estúdio. Ele sabia que o disco seria uma espécie de testamento”, observa Paquito.
E realmente foi o último legado artístico que o músico deixou. Batatinha morreu em 3 de janeiro de 1997, aos 72 anos, sem ver o disco Diplomacia concluído. Mas chegou a ouvir algumas gravações ainda no hospital, que lhe foram levadas por Paquito e Jota. “Levamos o material em fita cassete para ele ouvir. Mas ele estava usando muita medicação e estava impaciente, meio irritado. A serenidade, que era a coisa mais linda dele, infelizmente, já não tinha. Era o oposto do que ele realmente era”, lamenta Jota, cujo primeiro ídolo foi Batatinha.
Jota, que foi criado em uma família de artistas - Caetano e Bethânia são seus tios -, diz que o primeiro ídolo dele, sem contar os parentes, foi o sambista. “Eu era criança e ouvia as músicas que Bethânia tinha gravado dele. Era, para mim, um ídolo diferente dos demais, porque os outros viraram estrelas. E Batatinha era meu ídolo desconhecido dos outros. Tinha uma cumplicidade afetiva pela vida dele”.